(…)
durmo.
durmo de pé atravessando quartos, as minhas mãos não dormem —
talvez eu sorria estremecendo,
estremecendo.
as minhas mãos saem do sono, para os lados, mexem, mexem,
os pés estão acordados
e levam com um sorriso o meu sono pelos espaços vivos e brancos, sem som —
estou de pé estremecendo.
depois tenho quatro patas
como um perfume que partisse
ou uma flor que partisse à procura do seu perfume.
digo que tenho uma aflita quadrupedia,
como um cão nu que fosse em busca da sua flor desaparecida em toda a parte,
neste clima aberto à volta do clima.
as minhas patas saem do sono
para saber como é o espaço exasperado do clima,
andam pelos soalhos do clima —
e ao alto do movimento
há um sorriso em lume brando numa pessoa estremecendo,
aprendi como é devagar —
comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder —
aprendi devagar.
entretanto, se me falarem de rosas não me falem de rosas —
falem-me da espinhosa arte de ser rosa,
da arte do devagar.
mexes-te muito, digo eu,
e penso: mexes-te muito pouco —
é que eu sou o muito mais possível devagar, respondo,
é que eu sou o sangue procurando, pelos tubos quentes,
o pavor do coração.
sou o sangue em busca de como há-de bater nas mãos e nos pés,
através das galerias,
como um ramo de ventania a bater no espaço da ventania.
mexes-te pouco, é o sono que te leva,
as mãos tremem,
os pés apanham os passos um pouco atrás,
o coração é terrível como um órgão oculto —
mas a boca exposta
é que é o órgão do amor.
durmo, durmo, durmo em todas as direcções —
abrem luzes como quem espanca neve,
tornam claro como quem desdobra lençóis,
tiram do sono como quem abre torneiras
sobre as ervas espantadas.
oh, deixa-me tu passar, digo-me eu,
dá-me a superfície inteira desta noite irregular,
a profundeza deste sono
onde apenas se mexe uma incrível sabedoria à força de lentidão.
é isto que levo no corpo -
a nudez, a nudez.
e a nudez põe o sono às costas,
caminha, sabe, encontra, perde e caminha —
toda exposta em seu espaço branco.
não te importes com a água fria
que atravessa a primeira imagem da tua ciência —
tu abraças o amor como se abraçasses uma chaga ardente:
a lepra, a loucura, a visão
.
(...)
herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968