28 maio 2007
deixou um rasto de sombra riscado de luzes
deixou um rasto de sombra riscado de luzes
sobre o incauto coração
e as nuvens enfeitavam as janelas fechadas
carimbou a sua posse com marcas de anil fechado
anil irisado anil nacarado
e as árvores murmuravam lampejos frementes
prendeu nas suas penas as almas românticas
as almas sem reflexo
e o sol tingia de carmim as mãos dos inocentes
imaginou um cenário de cordeiros degolados
sobre aras pagãs
e isaac morria às mãos do anjo mensageiro
apoderou-se irredutivelmente dos vazios
dos nadas das agonias
e madalena morria aos pés do prometido
amalgamou os universos destroçados os
estreitos vales das mortes
e
enfim
a revolta dos desprotegidos
ergueu-se nos caminhos calcados
sacudiu as desgraças obrigatórias
estendeu céus resplandecentes
deixou silhuetas nos horizontes
refez os destinos
reviveu
levantou a cabeça
ámen
m.f.s.
25 maio 2007
marguerite duras / textos secretos (1)
Ontem à noite, depois da sua partida definitiva,
fui para aquela sala do rés-do-chão que dá para o parque,
fui para ali onde fico sempre no mês de junho,
esse mês que inaugura o Inverno.
Tinha varrido a casa,
tinha limpo tudo como se fosse antes do meu funeral.
Estava tudo depurado de vida,
isento,
vazio de sinais, e depois disse para comigo:
vou começar a escrever
para me curar da mentira de um amor que acaba.
Tinha lavado as minhas coisas,
quatro coisas,
estava tudo limpo, o meu corpo, o meu cabelo, a minha roupa,
e também aquilo que encerrava o todo,
o corpo e a roupa,
estes quartos,
esta casa,
este parque.
E depois comecei a escrever...
marguerite durastextos secretos
trad. tereza coelho
quetzal
1999
24 maio 2007
gin beijos
dizes-me que a cama do teu quarto
está por fazer que saíste e todas
as lojas estavam fechadas hoje
é domingo que ontem sábado dissemos
muitas coisas muito amor gin beijos
se terei um pouco de pão ou de ternura
para te emprestar
pablo garcia casado
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004
21 maio 2007
cesariny
autografia
um filme de miguel gonçalves mendes
(…)
M.C. – Não é não querer, é não saber. E saber que estamos num país em que não se pode dizer o que realmente interessa. É assim desde o D. Afonso Henriques.
Era uma altura em que a minha gente estava viva. Tanto de amigos verdadeiros como de gente para passar um bocado na cama, tudo isso funcionava, com a polícia a correr atrás, a chatear-me. Também havia maneira de chatear a polícia. E agora, nem polícias nem ladrões. É um deserto.
M.C. – A chamada consideração, não quero dizer glória, consideração literária, ou artística, para mim não tem significado. Nenhum!
Queres ver como é?
Também hás-de ter isso, quando começares a receber grandes prémios, de curta-metragem na Alemanha.
É assim, eu estou assim num pedestal, muito alto, a dizer versos: blá, blá, blá.
Depois está uma data de malta cá em baixo: eeehhhh.
Depois deixam-me ir para casa sozinho.
Isto é a glória literária à portuguesa.
Tá bom?
E não creio que isto que eu estou a dizer seja muito interessante, sabes!?
M.C. – Eu acho que sou um poeta bastante sofrível, numa época em que o tecto está muito baixo. Percebes o que eu quero dizer? Um grande poeta numa época em que não há Anteros, não há Camilos Pessanhas, não há Guerras Junqueiros, não há Pessoas, se quiseres. Compreendes? Há para aí uma data de gente a publicar uma data de livros de poesia, que aquilo há-de ir parar tudo, não sei… muito longe. Há-de ir parar muito longe.
Isto é horrível de dizer. Mas talvez porque os meus poemas, digamos, de amor, a esses poemas nunca falta um condimento muito forte de revolta. É talvez isso que os torna mais fortes e não o miau miau, «daquela triste e leda madrugada, toda cheia de mágoa e de piedade», é o miau miau do gato a quem apertam demais o rabo. Espero que os meus leitores se apercebam disso, não são poemas de amor: «Estavas linda Inês, posta em sossego», são também, não sei, uma espécie de grito. São do contra.
M.C. – Acabou! E não julgues que eu não tenho saudade desse tempo, em que andava pelos cafés ou pelas ruas.
Nunca escrevi um poema em casa, nunca, não me perguntes porquê. Pelas ruas, era como voar. Foi-se!
Não sei se pode aplicar aquela coisa de quando o verbo se faz carne. No princípio era o verbo, mas depois fez-se carne, e ossos, e pessoas. Talvez achasse mais poesia nisso.
Porque de certa maneira os poetas são todos um bocado onanistas. Em vez de estar a dar a queca, como era sua obrigação, estão: ái, ái, dha, dha.
(…)
a phala
de s. jerónimo a cesariny
1#2007
assírio & alvim
2007
20 maio 2007
as palavras
(…)
durmo.
durmo de pé atravessando quartos, as minhas mãos não dormem —
talvez eu sorria estremecendo,
estremecendo.
as minhas mãos saem do sono, para os lados, mexem, mexem,
os pés estão acordados
e levam com um sorriso o meu sono pelos espaços vivos e brancos, sem som —
estou de pé estremecendo.
depois tenho quatro patas
como um perfume que partisse
ou uma flor que partisse à procura do seu perfume.
digo que tenho uma aflita quadrupedia,
como um cão nu que fosse em busca da sua flor desaparecida em toda a parte,
neste clima aberto à volta do clima.
as minhas patas saem do sono
para saber como é o espaço exasperado do clima,
andam pelos soalhos do clima —
e ao alto do movimento
há um sorriso em lume brando numa pessoa estremecendo,
aprendi como é devagar —
comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder —
aprendi devagar.
entretanto, se me falarem de rosas não me falem de rosas —
falem-me da espinhosa arte de ser rosa,
da arte do devagar.
mexes-te muito, digo eu,
e penso: mexes-te muito pouco —
é que eu sou o muito mais possível devagar, respondo,
é que eu sou o sangue procurando, pelos tubos quentes,
o pavor do coração.
sou o sangue em busca de como há-de bater nas mãos e nos pés,
através das galerias,
como um ramo de ventania a bater no espaço da ventania.
mexes-te pouco, é o sono que te leva,
as mãos tremem,
os pés apanham os passos um pouco atrás,
o coração é terrível como um órgão oculto —
mas a boca exposta
é que é o órgão do amor.
durmo, durmo, durmo em todas as direcções —
abrem luzes como quem espanca neve,
tornam claro como quem desdobra lençóis,
tiram do sono como quem abre torneiras
sobre as ervas espantadas.
oh, deixa-me tu passar, digo-me eu,
dá-me a superfície inteira desta noite irregular,
a profundeza deste sono
onde apenas se mexe uma incrível sabedoria à força de lentidão.
é isto que levo no corpo -
a nudez, a nudez.
e a nudez põe o sono às costas,
caminha, sabe, encontra, perde e caminha —
toda exposta em seu espaço branco.
não te importes com a água fria
que atravessa a primeira imagem da tua ciência —
tu abraças o amor como se abraçasses uma chaga ardente:
a lepra, a loucura, a visão.
(...)
herberto helder
apresentação do rosto
(as palavras)
editora ulisseia
1968
17 maio 2007
como se fosse a minha vida
De noite não escrevo cartas,
qualquer que seja a luz, para onde quer que seja.
E já não me assusta o elevador
vertiginoso, desde que o sono
me habituou à queda.
Na luz do fim da tarde agora brilha
para sempre a minha varanda amarela.
Campos salgados, colinas esburacadas,
já não me assustais.
Como se fosse a minha vida,
fecho as janelas, vou comendo
pão, poupo energia.
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em Mateus
quetzal editores
1994
15 maio 2007
espera
Aguardo a tua vinda!
E, embora me entristeça
Enquanto aguarde,
É tão linda a promessa
Que chego a desejar que venhas tarde!
armando pinheiro
espelho
editorial inova
1978
14 maio 2007
poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe
Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio da ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
daniel faria
poesia
quasi
2003
13 maio 2007
sonata triste para a lua de granada
a Marga
"Le ciel est par-dessus le toit."
paul verlaine
Esta cidade fita-me com os teus olhos,
pestaneja,
porque agora depois de tanto tempo
vejo outra vez o piano que sai de casa
e me chega de forma diferente,
abordando as ruas
desta cidade antiga e tão formosa,
que permanece solitária como a desejaste,
carregando com as suas praças
entre as margens perdidas do anseio,
ao abrigo do mar.
Se estivesses aqui
nada teria mudado senão o tempo
o estranho cadáver dos seus rios
que continuam submersos
como os deixaste.
Agora
sinto outra vez o corpo encher-se de cata-ventos
e vejo-o estendido
sobre gerações de janelas antigas
enquanto a noite avança solitária e perfeita.
Somos de uma cidade
carregada de paciência,
que não conhece o sonho dos jardins de inverno,
nem viveu a estranha presença do amor.
Como pequenas veias
as lojas esperam amanhã para abrir
e o desejo não existe
mais além da lua das vitrines.
Já sonhámos o que havia para sonhar,
vivemos aqui
onde a história esquece os seus carris vazios,
onde a paz é negra e se recolhe
em praças fechadas,
próximo de tabernas velhas,
na orla habitada do mistério.
Uma vez ou outra sonhamos
com um mundo diferente:
era na altura o império perdido do açúcar
e chegavam viajantes
atraídos pelo cheiro da indústria.
As ruas encherem-se de motores ruidosos
e a frivolidade
como uma trepadeira brilhante no olhar
ofereceu-nos de súbito
carne tépida, candelabros.
Parece que os lembro
abraçados ao mundo em fatos de linho,
na pele formosa de uma época
que nos deixou as suas árvores,
o coração gravado
nas cigarreiras e uma dedicatória
nas fotografias.
Agora
quando o destino já não é uma desculpa,
apenas solidão,
e os céus estão sob o telhado
como os deixaste,
tudo recorda um sonho sujo
de madrugada.
Aqui não tivemos batalhas senão a espera.
A guerra foi um camião que nos buscava,
parado à porta,
partindo com os olhos acesos
de espião
ao abrigo do mar.
Mais tarde
entre canções tristes de marinheiros louros
tudo ficou adormecido.
De varanda a varanda
ouvimos o pós-guerra pela rádio,
e longe,
sob as cruzes frias das praças,
antigas sombras negras passeavam,
segurando nas mãos
a nossa sobrevivência.
Esta cidade é íntima, formosamente obscena.
e as tuas mãos são pálidas
latejando nela
e a tua pele amarelenta, queimada do tabaco,
que lembra agora
A luz artificial da iluminação.
Volto para ti. Meu coração de mocho
recebem-no as sua pernas.
Como testemunhos silenciosos da história
afago as cúpulas perdidas,
palácios em ruínas,
fontes velhas
que recebem a lua
onde vão esconder-se os últimos abraços.
Verdes no cansaço
de todas as esquinas
esta cidade fita-me com os teus olhos de musgo,
surpreende-me tranquila
de amor e provoca-me.
Amanhece
um dia violáceo
que as ruas repartem com a chuva.
A solidão respira para lá
das gruas
e o meu corpo estende-se
numa luz em cio que adivinha
os lábios da serra,
a roupa nas torres de Granada.
A madrugada deixa
rastos de penumbra entre as mãos.
Oiço
uma voz que amanhece. Lentamente
os telhados sorriem cada vez mais extensos,
e assim,
como uma onda,
de entre a nuvem aberta de todos os arredores,
esta cidade surge nas alamedas,
sob os picos mais altos
onde a neve aguarda
que suba o mar, que nasça a maré.
luis garcia montero
tradução de manuel rodrigues
11 maio 2007
yorgos seferis
A água quente lembra-me todas as manhãs
que não tenho mais nada vivo ao pé de mim.
yorgos seferis
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
09 maio 2007
alma simétrica
faremos um pacto
alma simétrica
jamais vista em
qualquer horizonte
selaremos o pacto
com a linfa em que se banham
os nossos sentimentos
eriçados de tremendas
hesitações
guardaremos o pacto
no cofre mágico
das coisas verdadeiras
das coisas desejadas
na nossa decrepitude
esqueceremos o cofre
o pacto
as coisas verdadeiras
desejadas
nos limbos
das perdições
encheremos de ouro
os ramos
desfolhados das
árvores sem raízes
das árvores esvaziadas
da volátil seiva
do frágil fio
de prata
que une as coisas
desunidas
faremos uma cúpula
de águas
em sinfonias
transparentes
e luzes de palcos
habitados
seremos
os construtores das nossas
harmonias
os pais dos imanentes
regatos
da nossa hidrografia
novos deuses seremos
minha alma simétrica
m.f.s.
07 maio 2007
senhor…
Senhor, o amor é uma coisa que mete medo
não sabeis pois que se trata de um trabalho difícil
exige uma coragem e uma fé além do improvável
uma humanidade indizível
uma fraternidade cega
dinheiro e garrafas
crianças ao acaso
olhares nem sequer fulminantes
e charcos de céu
e festas campestres
quando o tempo permite
o amor quer idas à pesca, patins e chocolate negro
o amor quer a curva suave e a facilidade
é tão difícil, Senhor
não poderia descrevê-lo
em toda a sua volúpia
para lá dos seus mártires
e dos seus desastres hipócritas
o amor é pleno de alegria
e segue o seu caminho
na névoa dos primeiros passos
na roupa pendurada no inverno
na corda tensa
vai para onde calha
e muito lentamente
lentamente demais o amor segue
como um ouriço do mar oco cheio de areia
como um botão que se deixa por coser
é miserável
é uma pluma
move-se ao vento
quando o coração bate
é esplêndido lavado pela maré
mesmo na maré odiosa
é onda
e é belo
é onda e é belo e cheio de algas
é o silêncio
é a luz
uma coisa assim vulgar
hélène monette
poemas
tradução de rosa alice branco