27 junho 2006
22 junho 2006
um poema de: juan gelman
hoje chove muito, muito,
dir-se-ia que estão a lavar o mundo.
o meu vizinho do lado vê a chuva
e pensa em escrever uma carta de amor /
uma carta à mulher com quem vive
e lhe faz a comida e lava a roupa e faz amor com ele
e se parece com a sua sombra /
o meu vizinho nunca diz palavras de amor à mulher /
entra em casa pela janela e não pela porta /
por uma porta entra-se em muitos sítios /
no trabalho, no quartel, na prisão,
em todos os edifícios do mundo /
mas não no mundo /
nem numa mulher / nem na alma /
quer dizer / nessa caixa ou nave ou chuva que chamamos assim /
como hoje / que chove muito /
e me custa escrever a palavra amor /
porque o amor é uma coisa e a palavra amor é outra coisa /
e só a alma sabe onde as duas se encontram /
e quando / e como /
mas que pode a alma explicar /
por isso o meu vizinho tem tempestades na boca /
palavras que naufragam /
palavras que não sabem que há sol porque nascem e morrem na
mesma noite em que ele amou /
e deixam cartas no pensamento que ele nunca escreverá /
como o silêncio que existe entre duas rosas /
ou como eu / que escrevo palavras para regressar
ao meu vizinho que vê a chuva /
e à chuva /
ao meu coração desterrado /
juan gelman
“no avesso do mundo”
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa amaral
quetzal
1998
20 junho 2006
citações
(...) Fui jantar com o Roger [ Fitzroy Street] e encontrei-me com o Clive. Sentámo-nos à volta da mesa quadrada e baixa, coberta com uma bandana, e comemos de travessas, cada uma com uma espécie diferente de feijão ou alface: comida deliciosa, para variar. Bebemos vinho, e a terminar comemos um queijo branco e macio, com açúcar. Depois, pairando esplendidamente acima de personalidades, falou-se de literatura e de estética.
“Sabe, Clive, descobri um pouco mais acerca do que é essencial a qualquer arte: sabe, a arte é representativa. Diz-se a palavra árvore e vê-se uma árvore. Muito bem. Ora todas as palavras têm uma aura. A poesia combina as diversas auras numa sequência…” Foi mais ou menos assim. Eu disse que se pode, e é o que se faz realmente, escrever com frases, e não apenas com palavras; o que não fez avançar muito a discussão. O Roger perguntou-me se eu baseava a minha escrita numa textura ou numa estrutura; associei estrutura com enredo e portanto disse: “textura”. Depois discutimos o significado de estrutura e de textura na pintura e na literatura. Depois discutimos Shakespeare, e o Roger disse que a ele Giotto o entusiasmava precisamente da mesma maneira. Isto continuou até que me forcei a sair, precisamente às dez. E discutiu-se também poesia chinesa; o Clive disse que era demasiado longínqua para se poder compreender. O Roger comparou a poesia com as pinturas. Gostei muito de tudo aquilo (isto é, gostei da conversa). Há sem dúvida muita coisa que é perfeitamente vaga, e que não é para se levar a sério, mas esta atmosfera faz urna pessoa ter ideias e, em vez de se ter de as abreviar ou de as desenvolver em muitíssimas palavras, pode-se simplesmente dizê-las que há logo quem as entenda - ou melhor, quem discorde. O nosso velho Roger tem uma visão deprimente, não da nossa vida, mas do futuro do mundo; mas creio ter detectado a influência de Trotter e das massas, de modo que não lhe dei crédito . Mas quando saí para Charlotte Street, onde se deu o crime do Bloomsbury há uma ou duas semanas, e vi uma multidão atropelando-se na estrada e ouvi mulheres a insultarem-se e outras que, atraídas pelo barulho, acorriam, deliciadas — toda esta sordidez me fez pensar que ele era bem capaz de ter razão.
Hoje o dia tem estado perfeitamente quente e muito sereno, e nós só tivemos tempo, depois de acabar de imprimir uma página, de chegar até ao rio e ver tudo reflectido perfeitamente a direito na água. O telhado vermelho de uma casa tinha a sua nuvenzinha de vermelho no rio – as luzes acesas da ponte desenhavam longas listas em amarelo – muito tranquilo, e como se fosse o coração do Inverno. “
Virgínia Woolf, Diário primeiro volume 1915-1926, trad. Maria José Jorge, Bertrand Editora, 1985
19 junho 2006
pictures at an exibition / peter blume
17 junho 2006
15 junho 2006
estações
“Duas horas da manhã. Os ratos procuram nos caixotes os restos do dia morto: a cidade pertence aos fantasmas, aos assassinos, aos sonâmbulos. Onde estás tu, em que leito, em que sonho? Se te encontrasse, tu passarias sem me ver pois não somos vistos pelos nossos sonhos. Não tenho fome: esta noite não consigo digerir a minha vida. Estou cansada: caminhei toda a noite para semear a tua recordação. Não tenho sono: nem sequer tenho apetite da morte. Sentada num banco, embrutecida apesar de tudo pela aproximação da manhã, deixo de me lembrar que te procuro esquecer. Fecho os olhos... os ladrões não querem senão os nossos anéis, os amantes a carne, os pregadores as nossas almas, os assassinos a vida. Podem tirar-me a minha: desafio-os a nada lhe mudar. Inclino a cabeça para ouvir por cima de mim o remexer das folhas... Estou num bosque, num campo... É a hora em que o Tempo se disfarça de varredor e Deus talvez em trapeiro. Ele avarento, ele teimoso, ele que não consente que se perca uma pérola nos montes de cascas de ostras às portas das tabernas. Pai nosso que estais no céu... Verei alguma vez vir sentar-se a meu lado um velho de sobretudo castanho, com os pés enlameados por ter tido, para me alcançar, de atravessar sabe Deus que rio? Ele deixar-se-ia cair no banco, tendo na mão fechada um presente muito precioso que seria o bastante para tudo mudar. Abriria os dedos lentamente, um após outro, muito prudentemente, por que aquilo foge... Que seguraria ele? Uma ave, um germe, uma faca, uma chave para abrir a lata de conserva do coração?”
Marguerite Yourcenar, fogos, trad. Maria da Graça Morais Sarmento, Difel, 1995
08 junho 2006
post it / oswaldo roses
DOS POEMAS HEREJES
"Sólo la dulzura puede estar en la herejía,
en la rebeldía del amor frente a todo"
O. Roses
I
De este polvo que te ofrezco habrá un antes y un después,
irremediablemente tú dirás "antes" y, luego, "después",
¿no crees?;
porque el amor ha nacido en la carne
y para ella sencillamente
(si sufres, sufre ella y no Dios;
si mueres, muere ella y no Dios;
si se condena, es condenada ella y no Dios),
¡nada hay más sagrado que la carne que ama!
II
Te quiero un poco sí del cielo,
te quiero más palabra perdidamente profunda -más-,
te quiero con una cierta valentía del crepúsculo atronador,
te quiero niña,
te quiero a las cinco del invierno,
te quiero por cara entierraprejuicios,
te quiero ante los guerreros de tus pezones,
te quiero a silbos que te mecen,
te quiero perra y flor,
te quiero un poco azul y canibalesco.
oswaldo roses
06 junho 2006
post it / anderson henrique de sousa
o caminho do bem
Tantas estradas retas
que vão dar no céu
e o caminho sinuoso
é o que me chama,
com seus buracos, pedras
e ausência de cruzes.
Estradas que não se cruzam
nem se sobrepõem.
Se sigo o caminho pior
que só faz mal a mim
e a mais ninguém
sou cobrado pela boca do mundo
que me fez chorar
me fez querer
roubou minha vida
meus sonhos retém
e que me aponta a estrada reta...
o caminho do bem.
anderson henrique de sousa
31 maio 2006
29 maio 2006
post it / l. maltez
o dia chegou puro.
os olhares falavam num silêncio
onde as palavras tinham todas um nome
e a eternidade se fechava sobre um corpo
parado nas águas, entre os espaços
para assistirem ao nascimento das árvores
o grito do verão ressoava entre formas mudas,
delicadas, impregnadas de delírios imaginários.
alguém parte o silêncio e o transforma
em sons vergados, sensíveis às palavras vivas,
atrás fica uma vida, remexida desabaladamente
numa leveza, estrangulada entre dedos
olhares bailam enfeitiçados sobre as áscuas...
murmuram ao longe, frases ríspidas e frias
o vento arrasta soprando as vozes em pedaços,
agarrando a vida, que deseja invencível
lento, leve e moroso deixa respirar o dia.
mergulha na alegria suplicante da voz
onde ardem, na alma, chamas de desejo
assumido num jogo de amor único
escapa-se o pensamento, afunda-se
dentro da paixão voraz,
espelhada no sorriso dum peito aberto
o fio liga a veia, no abraço da morte
triunfante, a festa tornou-se imortal,
sufoca de júbilo,
entre palavras que passam a correr
o momento, amadurece na terra
cativo do nome que persegue...
l. maltez
24 maio 2006
estações
Alice Loureiro, 2001
em acrílico forte
não sei
a que cidade cheguei
lembro-me de ter vinte anos
e cegar
perdi
o que nenhum homem sabia perder
e alguém me disse:
- desenha a tua morte
e eu peguei nos meus olhos
e fiz este silêncio negro
porque os meus olhos
eram negros
e neles é que eu guardava
a vida e a morte
foi há muito tempo
pois sou um homem muito velho
sou tão velho
como a distância do caminho que percorri
lembro-me que fui
que fui, como o sangue vai numa veia
até ao coração
do nada
até sofrer a eternidade
como uma pedra ou um planeta
fui na gota de mim
ao oceano de mim
e agora cheguei
sem saber onde cheguei
estou no mais abstracto
de um ser
estou na minha alma
ou no meu sonho
estou na essência
do que faz enlouquecer
sinto-o na cor forte
que me devolve os olhos
no estranho calor
que me concede humanidade
não sei
a que mundo cheguei
sou um velho
que ensaia o seu olhar
e há esta cidade estranha
onde não corre o vento
onde nenhum céu vigia
nenhum horizonte define
estou sentado
num prado de aço
e nenhuma estrada
foi escrita
nenhum rio
foi pintado
nenhum ser
foi dito
sou um velho
e ensaio o meu olhar
exerço-o no invisível
que precede as coisas
que está antes do objecto
antes do ser
e tenho nas mãos
a ciência dos gestos
tenho a Arte
sou o talento da vida
por isso
gota a gota
dou-me
um mar
dou-me
os homens e as mulheres
e dou-me em cada um
a voz
todas as vozes
até ao esplendor do grito
e nesse rumor
nesse quase cantar
é que oiço o nome
do que me chama
não sei
que cidade me espera
sou um velho
sou um pássaro cego
que voa adormecido
os seus vinte anos
gil t. sousa
poemas
2001
20 maio 2006
um poema de: mário cesariny
do capítulo da devolução
Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo no meu
leito, um corpo estranho e surdo um corpo incompreensível
aquele desespero que deixou de ter forças para erguer os portais do
outro reino tristeza de menino a quem tiraram tudo, até
a tinta e as flores e o prazer de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de tomar banho
no cosmos, olhar o cosmos como os que ainda podem
interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até à janela, aspiras
com cuidado o oxigénio que o espaço te oferece, apontas
rindo a meiga criatura que pela rua arrasta a sua condição
de animal fulminado
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas ambas, tão claras,
tão seguras, são as mãos de um soldado a arder em febre,
aves a percorrer o seu novo deserto
mas tu sabes, tu vistes, e mais do que eu; a mão do homem é doce e
iluminada como a noite como um rasto de fumo sobre
os hospitais
tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras angélicas e
gratas, a fazer a manhã de outras paragens; outra sombra,
outros olhos semelhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu cansaço e a
minha miséria, os teus braços e os meus, altos como
cidades, altos como flores
parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais que descer as
escadas, fechar ainda a porta do teu quarto, atravessar de
um pulo a minha própria vida
agora posso sonhar até deixar de te ver
belo rio sem lágrimas
mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1982
13 maio 2006
reflexões / os modos das modas culturais
Mimmo Rotella, Pepsi, 1979, Serigraph
Les femmes nuiles suivent la mode,
les prétentieuses l’exagèrent, mais
les femmes de goút pactisent agréa-
blement avec elle.
Marquise du Châtelet
O jogo nacional dos italianos cultos compõe-se de três lances, jogados pelo doutor Branco contra o doutor Preto (para maiores esclarecimentos sobre a dinâmica dos «jogos» veja-se Eric Berne, A que Jogo Jogamos; compreender-se-á mais adiante porque me apresso a citar uma fonte de inspiração: senão seria submetido ao segundo lance do leitor Branco como autor Preto)
Primeiro lance.
Preto: «Gente daquela deviam matá-la! »
Branco: «O provincianismo italiano do costume. Na Inglaterra, há pelo menos dez anos que o homicídio foi demonstrado inútil. Se lesses...»
Segundo lance.
Preto: «Pensei melhor. Acho que não se deve matar nenhum ser humano.»
Branco: «Não me parece grande ideia. Já Gandhi disse isso.»
Terceiro lance:
Preto: «Bem, acho que Gandhi tinha razão. »
Branco: «Já sabia. Agora temos a moda do pacifismo! »
A fórmula é variável até ao infinito. 1) As crianças não deviam ler bandas desenhadas. Enganas-te, se te mantivesses ao corrente das investigações sociológicas americanas... 2) Bem, eu também as li e não as acho mal. Não me parece grande descoberta: há quarenta anos Gilberto Seldes em Seven Lively Arts... 3) Bem, estou de acordo com Seldes... Já sabia: agora temos a moda da banda desenhada!
Ou então: 1) Nos Noivos há poucos rasgos líricos refreados por uma estrutura impoética. Enganas-te: se lesses os estudos americanos sobre as estruturas narrativas... 2) Pensei melhor: a intriga também tem um valor poético. Que descoberta: já Aristóteles sabia isso. 3) Bem, sabes que tinha razão? Já sabia: agora são todos aristotélicos.
O jogo que propus não é fictício. Se há uma coisa que impressiona o orador estrangeiro num nosso círculo cultural é a objecção de que aquilo que ele está a dizer já o tinha dito mais alguém. Em geral, o estrangeiro não consegue compreender porque é que deve queixar-se O que não sabe é que, logo que se tenha ido embora, será acusado de conformismo quem se achar de acordo com as suas opiniões. Após três tentativas, o seu fã italiano não poderá citá-lo mais.
Do jogo não há saída, pois que se rege por três princípios lógico-antropológicos indiscutíveis, que são: 1) por cada afirmação feita num lugar pode-se encontrar uma contrária feita em precedência noutro lugar; 2) por cada afirmação feita numa dada época existe um fragmento dos pré-socráticos que a antecipa; 3) toda a afirmação de consenso com uma tese, se expressa por várias pessoas, toma as opiniões dessas pessoas definíveis como «afins» ou «conformes».
O jogo nacional que há pouco definimos torna os italianos particularmente sensíveis àquele perigo comummente indicado como «moda cultural». Ansiosos de actualização e severos para com aqueles que não estão igualmente actualizados, os italianos tendem a considerar parasitária toda a ideia proveniente de operações de actualização alheia e condenar a actualização — auspiciada — como moda. Pois que a ânsia de actualização os expõe ao risco da moda, a severidade para com a actualização alheia age como correctivo e faz com que as actualizações sejam rápidas e transitórias, isto é, «modas» precisamente. Em consequência, dificilmente se criam correntes e movimentos culturais, porque os Brancos velam pelos Pretos e estimulam a alternância das suas escolhas, tornando-se cada Branco por sua vez o Preto de qualquer outro que foi Preto por sua vez. A ânsia de actualização unida ao temor da moda neutraliza assim a actualização e encoraja a moda.
Esta situação teria urna sua funambólica substancialidade, e uma graça não ignóbil de ballet permanente da inteligência crítica, se o desenvolvimento dos meios de massa não tivesse introduzido um novo elemento no jogo: a presença dos italianos que seguem o futebol.
Estimulados pela rápida circulação divulgadora das revistas ilustradas e dos quotidianos, os italianos interessados no futebol vêm ao conhecimento do jogo jogado pela upper class. Deste apanham só algumas e não todas as deixas, de modo que o ciclo ignorância-informação-consenso-moda-repúdio se cumpre neles apenas por metade. Num certo sentido entram em jogo só no lance número três, quando o jogador Preto concorda com uma tese dominante expressa por outros, e fixam-se sobre a descoberta perdendo de vista o facto de o mesmo jogador, batido pelo Branco, abandonar repentinamente a tese e jogar outro desafio. Em consequência, nas classes sujeitas a moda dura mais tempo (como uso linguístico, recurso a argumentos tópicos, tiques verbais) do que acontece nas classes hegemónicas (sendo sabido que as subdivisões entre classe hegemónica e proletariado seguem aqui linhas de demarcação que não têm necessariamente atinência à realidade económica).
Eis então porque pode ser interessante seguir, ao longo do arco de um decénio, o nascer, o permanecer, o gangrenar de uma série de modas culturais. A sua permanência é testemunhada por vezos, citações, aberrações jornalísticas de vário género; o seu fim testemunha a volubilidade dos jogadores cultos, uma nossa dolorosa incapacidade de fazer germinar sugestões e ideias, linhas de investigação, temáticas, problemas.
De particular interesse será, pois, seguir esta aventura, como se está fazendo, ao longo de um decénio que foi (para usar a fórmula já célebre de Arbasino) o da excursão a Chiasso. Uma cultura italiana provinciana que durante o vinténio se tinha consolado com a sua própria timidez, acusando dela a ditadura que impedia de saber aquilo que acontecia algures (e acrescentamos: não era sequer necessário chegar a Chiasso para saber o que se publicava pelo mundo fora; Gramsci da prisão conseguia ler bastante), nos primeiros dez anos da libertação continua a cultivar as suas próprias culpáveis obscuridades: mas, enquanto sobem no horizonte os anos 60, de repente, entorna o caldo da actualização, e com ele empanturra os próprios filhos, das colunas das páginas culturais, com os chumbos das edições hard cover, nos quiosques pupulantes de paperbacks. As descobertas fazem-se excitação, a excitação hábito linguístico, o hábito linguístico tique, os tiques despropósitos.
O sombrio episódio da palavra «alienação» serve para demonstrar o que se queria: um termo venerável, uma realidade terrível, um dado cultural que os estudiosos manobram por sua conta sem traumas de repente torna-se moeda corrente. O uso, que desenvolve o órgão, enfraquece porém os termos. Daquele que está em exame fez-se desbarato, e foi bem que alguém denunciasse o seu excesso. Mas o temor do excesso fechou a boca até a quem podia falar com calma e consciência. Conheço um estudante de filosofia que há alguns anos estava a trabalhar numa tese sobre o conceito de alienação em Marx e que, entre 1961 e 1962 foi obrigado a mudar o título à sua investigação para poder ser tomado a sério. Mas noutros casos alguns mudaram decididamente, não só o título, o assunto. O que é triste.
Não sei se conseguiremos corrigir-nos. Eis um episódio que me sucede enquanto revejo as provas deste texto.
Conversa descontraída com um amigo que não vejo há muito tempo, agora professor numa pequena universidade de província, absorvido em problemas de filologia clássica mas atento aos acontecimentos culturais «na moda» — com distanciação, naturalmente, uma ponta de ironia, mas sempre com tensão intelectual. Conto-lhe que me encontrei na América com Jakobson. Sorri: «Tarde de mais. Precisamente agora que o estão a destruir...» — «Quem é que o está a destruir?» — «Ora, todos. Passou de moda, não?»
Bem, Jakobson nasce no século passado. Participa no círculo de Moscovo, passa através da revolução, chega a Praga, vive os anos 30, sobrevive ao nazismo, inicia a aventura americana, sobrevive à guerra, defronta-se com a nova geração estruturalista e é aclamado mestre, sobrevive aos mais jovens da nova geração, conquista os mercados culturais que o ignoravam, sobrevive aos seus setenta anos já feitos, sobrevive às novas escolas de semiótica eslavas, francesas e americanas, de que permanece um leader, sai de cada experiência com os reconhecimentos unânimes da cultura internacional, cometerá erros — decerto — mas sobrevive aos seus erros... Ai de mim, citado em Itália em 64, lido em 65, traduzido em 66, por volta do declinar de 67 não sobrevive à erosão da inteligência italiana. Quod nonfecerunt barbari, etc. Três anos de notoriedade em Itália espapaçam-no. Para crer ainda na validade das suas páginas é preciso ser-se muito jovem, muito ingénuo, muito retirado ou muito emigrado. Agora tratar-se-á de fazer envelhecer o mais rapidamente possível Chomsky, possivelmente antes que seja traduzido (se se jogar bem, o golpe surte efeito, a tempo). São empresas que dão trabalho, mas depois obtém-se a satisfação.
Não é preciso ser uma vestal do saber para reconhecer que o nascer e o difundir de uma moda cultural semeiam incompreensões, confusões, usos ilegítimos. Deploramos as modas culturais. Quem quer que tenha enfrentado seriamente um assunto que depois se tomou moda advertiu o mal-estar proveniente do facto de que qualquer palavra que ele tivesse usado já não seria interpretada segundo o contexto em que aparecia, mas agitada como pendão, etiqueta, sinal de trânsito.
É absoluta e tristemente verdade que hoje nem sequer um cientista das construções pode falar de estruturas sem passar por estruturalista à la page. E, todavia, na indignação contra as modas há qualquer coisa de arrogante e imodesto (lance três do jogo proposto), tão prejudicial como a moda.
As «modas» não nascem quando se tem uma cultura rigorosamente de classe ou rigorosamente especializada. Uma cultura de classe permite que temas e problemas circulem a um nível inatingível pelos demais: os gostos do duque de Berry não são moda, quanto mais não seja porque se resumem a um exemplar único manuscrito; ninguém pensará em estampar as imagens dos meses em lenços para utentes de mini-saia.
Uma cultura especializada defende-se pela sua impenetrabilidade. A palavra «relatividade» pode ter provocado uma certa voga, mas as equações de Maxwell não.
O problema da moda nasce então quando, por várias razões, o dado cultural viaja do vértice para a base por obra de técnicas escolares mais difusas (entendendo por estas qualquer técnica divulgadora, do cartaz ao semanário e à televisão). A divulgação recruta novos utentes para a cultura, para os encaminhar para a especialização, mas paga este recrutamento com o desperdício, com a consumpção: os termos e os conceitos que põe em círculo passam por demasiadas mãos para poderem voltar — ao cume da pirâmide de que partiram — íntegros como dantes.
Contemporaneamente, o excesso de especialização impõe uma tentativa de interdisciplinariedade. Interdisciplinariedade significa contacto e compreensão entre homens que trabalham em diversos sectores de especialização. O contacto exerce-se de dois modos: antes de mais, o técnico de um sector deve esclarecer o técnico de outro sobre o sentido dos seus discursos e os limites do seu universo de discurso; em segundo lugar, ambos devem procurar traduzir os elementos válidos no seu próprio universo de discurso em termos assimiláveis pelo universo de discurso alheio. Neste trabalho de extravasamento (em que toda uma cultura colabora) deita-se muito líquido ao chão. As tentativas de tradução geram metáforas apressadas, mal-entendidos, corridas forçadas à actualização aparente. Como para a divulgação do cume da pirâmide na base, o extravasar de sector para sector de igual nível produz inflação.
Mas, se isto é verdade, as modas culturais são a consequência inevitável de uma dinamização das culturas. Na medida em que é vital, tendendo a uma revisão e comunicação contínua entre os seus vários níveis, uma cultura produz uma moda para cada um dos aspectos em que se expõe. E não é que a moda se forme como borra, resíduo, franja externa ao processo cultural autêntico: constitui ao mesmo tempo o adubo, o terreno adubado. Pois que entrega e extravasar de saber não acontecem segundo modalidades de pureza absoluta, quem apreende ou traduz em termos próprios a aprendizagem alheia muitas vezes passa antes de mais através do território da moda cultural, pressentindo um problema de forma aberrante antes de o captar de modo exacto; a moda cultural e é assim essencial ao processo de uma cultura, de modo que, muitas vezes, só através do apelo da moda uma cultura recruta os seus leaders futuros.
Portanto, diante das modas que gera, uma cultura não deve colocar a si própria tanto o problema de as reprimir como o de as controlar. O trabalho de uma cultura consiste em produzir tanto saber especializado como saber espontâneo e difuso; e — ao criticar os excessos do saber espontâneo — não só ao reprimi-lo, mas ao fazer brotar dele conexões, ocasiões, outro saber especializado, num movimento mais ou menos ordenado em que o mal-entendido muitas vezes se toma serendipity. De uma coisa podemos estar certos, porém: uma cultura que não gere modas é uma cultura estática. Não houve e não há modas na cultura Hopi ou na cultura Aloresa. Porque não há processo. A moda cultural é o acne juvenil do processo cultural. Quando é reprimida demasiado violentamente, acelera-se simplesmente o advento de uma nova moda. E então a moda cultural como modelo permanente torna-se o aspecto mais visível dessa cultura, que se faz cultura das Modas Alternativas. Este é o nosso problema de hoje. Não devemos preocupar-nos porque existem modas culturais, mas porque são superadas depressa de mais.
A cultura francesa, que é mais madura do que a nossa, suporta perfeitamente a moda estruturalista há dez anos e não se envergonha disso, embora tenha consciência dos seus excessos. Aquilo que é preocupante, na cultura italiana, não são os milhares de imbecis que enchem a boca com a palavra «estrutura» nos casos mais imotivados, mas a consciência que destes imbecis se dará cabo o mais cedo possível com demasiado rigor. Subestimar a função bactérica (em sentido botânico) dos imbecis é sinal de imaturidade cultural.
Por outro lado, se uma cultura que não gera modas é uma cultura estática, uma cultura que reprime as modas é uma cultura reaccionária: consistindo o primeiro lance do conservador em carimbar como moda a novidade. Aristófanes com o socratismo, Cícero com os cantores Euphorionis, e assim por diante até às indignações dos homenzinhos selváticos de papiniana e giuliottiana memória.
Contanto que seja longa, uma moda restitui o rigor que tirou, sob outra forma. O perigo é quando é breve.
1967
Viagem na irrealidade quotidiana
Umberto Eco
Trad. Maria Celeste Morais Pinto
Difel
1993