30 novembro 2010

rui cóias / despede-se de outra vida






2.



Despede-se de outra vida, de uma terra já vergada,
quem regressa com a chave do inverno marcada nos seus passos e,
nesta
hora, renuncia ao próprio alento.
Porque esta é mesmo a sua morte. Quando
a paisagem traz a vida para mais alto, a vida em que se move o
devir do tempo
que assim serve os seus próprios fins
quando os jacintos empalidecem nas longas escadarias
como coisas que se tocam, atingidas.
Porque o inverno não se ouve, nem define,
mas sujeita o sangue a todas as histórias que terminam. Porque
o inverno não se lembra,
mas vê fulcros que expandem nas encostas, vê o fio de mel que viaja
na penumbra
de uma ponta da terra a toda a terra.
Porque o inverno não é o que parece. Mas é a bruma dos frutos
novos
e o orvalho em que o passado se efabula no presente
em plenos frios, com raízes entranhadas.
Porque esta é mesmo a sua morte; em tudo o que viu antes, que não
conhece fim,
em tudo o que se afasta a um passo do caminho
abandonado para sempre
no silêncio que quer aproximar-se, que não ouve mais do que silêncio.
Porque a morte regressa doutra vida – porque
sabe-o no sulco em que os passos, vendo atrás as clareiras,
pressentem o flagelo
em que o rosto, no intervalo delas,
é essa vida a chamar das áleas decrescentes,
a recuar em vistas mortais, em quilómetros, nessas vastidões.






rui cóias
cinco poemas
relâmpago
revista de poesia nr 26
abril 2010
fundação luís miguel nava
2010





29 novembro 2010

gil t. sousa / das viagens




28


regresso ao livro
que me declara sábio

que não me abandonem
os ventos
quando de novo navegar
o marítimo corpo
da ausência


é que me abro
à oração dos desertos
e sigo a minúcia dos milagres
até ao deslumbre
do que morre


(que torre é esta
que se atravessa na madrugada
e me serve o oculto canto
da paisagem que te esconde?)






gil t. sousa
falso lugar
2004




26 novembro 2010

ingeborg bachmann / o tempo aprazado






Vêm aí dias difíceis
O tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.
Em breve terás de atar os sapatos
e recolher os cães nos casais da lezíria,
pois as vísceras dos peixes
arrefecem ao vento.
Mortiça arde a luz dos tremoceiros.
O teu olhar abre caminho no nevoeiro:
o tempo até ver aprazado
assoma no horizonte.


Do outro lado enterra-se-te a amante,
a areia sobe-lhe pelo cabelo a esvoaçar,
corta-lhe a palavra,
impõe-lhe silêncio,
acha-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.


Não olhes em volta.
Ata os sapatos.
Recolhe os cães.
Lança os peixes ao mar.
Extingue os tremoceiros!


Vêm aí dias difíceis.






ingeborg bachmann
o tempo aprazado
(últimos poemas 1957-1967)
trad. judite berkemeier e joão barrento
assírio & alvim
1992






24 novembro 2010

mário cesariny / a 10.000 metros de profundidade




II


A 10.000 metros de profundidade
o rosto deambulador
do soldado
que não quis morrer
grita o seu radioso segredo:

Abre as portas do teu coração
é tão fácil perder
o homem das águias
que nunca mudam

Ele
em verdade
está só
e nunca
foi ouvido








mário cesariny
pena capital
(estado segundo)
assírio & alvim
1982





23 novembro 2010

arsenii tarkovskii / cresce a névoa da vista – esse poder






Cresce a névoa da vista – esse poder,
Duas luras em diamante invisíveis;
Surdo pela tempestade de outrora
E o bafo da casa de meu pai;
Nós cegos numa trança de músculos
Como bois velhos no campo arado;
E na noite não brilham mais
As asas do meu dorso.





arsenii tarkovskii8 íconesversão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987



22 novembro 2010

luis alberto de cuenca / abre todas as portas







Abre todas as portas: a que conduz ao ouro,
a que leva ao poder, a que esconde o mistério
do amor, a que oculta o segredo insondável
da felicidade; a que te dá a vida
para sempre no gozo de uma visão sublime.
Abre todas as portas sem te mostrares curioso
nem ligar nada às manchas de sangue
que salpicam as paredes das habitações
proibidas, nem às jóias que revestem os tectos
e aos lábios que na sombra procuram os teus,
nem à palavra santa que espreita nas ombreiras.
Desesperadamente, civilizadamente,
contendo o riso, secando tuas lágrimas,
no extremo do mundo, no final do caminho,
a ouvir como assobiam as balas inimigas
em volta e como estão cantando os rouxinóis,
não duvides, irmão: abre todas as portas.
Embora não haja nada dentro.






luís alberto de cuenca
tradução de josé bento
canal revista de literatura nr.5
janeiro de 1999
palha de Abrantes







19 novembro 2010

louise glück / paisagem





2.


O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.

Era um tempo
de espera, de acção suspensa.

Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.

Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.

O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.

O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.

Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.

Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes

não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.

Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.

O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes

não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo

perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.

Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.





louise glück
paisagem
tradução de rui pires cabral
telhados de vidro
nr. 12 maio 2009
averno
2009







15 novembro 2010

carlos eurico da costa / de vermelho a morte






«o rosto anseia pelo canto»

juan barea, cantaor




I

Se vejo o meu ser compelido — gemo. E oro aum deus de coragem e destino. A terra oferece-me o que quero — o seu corpo, os seus rios, e tenho de encerrar o meu destino, aquele destino, empurrar o braço no gesto que o alcance, dizê-lo.
Rainha do céu, minha terra em ti me contenho, tu limitas-me, és um mundo, esfera que brilha no rosário, semente de consolação. Não me alonges, leva-me (chega-me) ao teu seio, deixa, deixa contaminar-te do meu suor, queria renegar mas volto de novo a habitar-te.

II
Que morte apetecida, que boca soluçante pela manhã. Flores a corolar a caveira de cristal e azul. Flores de laranja e metal. Garganta golpeada no canto. Leque de madeira rara e marfim flamejando na cabeça negra, branco, cinza.
O acto de dizer, de não querer a minha vergonha. Trago o meu destino — um sal que me consome — em invenções de mal, sentado no meu trono, despedaçando o reino.
Anavalhe-se o que sobra, em fenda alastrada pelos tecidos, cante-se com coragem e sangue contraindo a vocalidade, os destinos mais estranhos da nossa condição: o que nasce no corpo, o que amamenta a imaginação, célula cerebral, leite da terra — logo, um minério hoje descoberto, a aberração da memória. A morte.








carlos eurico da costa
colóquio letras nr. 12
março 1973
fundação calouste gulbenkian
1973







12 novembro 2010

antónio ramos rosa / que cor ó telhados de miséria






Que cor ó telhados de miséria
onde nasci
de tanta pequenez de tão humildes ovos
de nenhum querer
a que horas nasceram as estrelas que
um dia foram
a que horas nasci?

Não vim embarcado não me encontrei
na rua
não nos vimos
não nos beijámos
nunca parti

Não sei que idade tenho






antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





11 novembro 2010

cruzeiro seixas / ao que encontrei tanto e tanto



Ao que encontrei tanto e tanto
acrescentei.

Recordo essas horas esses dias.

Tudo o que era morto ressuscitava
os animais encontravam-se
e altos monumentos brancos cresciam em cada praça.

O nosso sangue circulava livre nas montanhas e no mar
e os músculos erguiam árvores
que nos cobriam com a sua ilimitada confiança.

Nós todos éramos dois.

Um dia queimamos o fundo do mar
e o incêndio alastrou às vagas absurdas
ao sangue misterioso.

Estavas pálido como a água
jamais alguém empalideceu assim.


Que horas eram meu amor distante?

Ao que encontrei tanto acrescentei
nesta tarde exageradamente tranquila.







cruzeiro seixas
o que a luz oculta
arte e manifesto, galeria
porto
2000





09 novembro 2010

nuno vidal / lachrimae coactae







A locusta sagrada vinha pela noite
rilhava a esperança posta para amanhã
nas pancadas repetidas das gelosias.
O pulso apertava o fim sem chegada
mas que fazia morrer cada dia
tinha
de haver sempre para quê?

Aqui era a decrépita restaurada mão
aleivosa do amor a dobrar-nos
no cadafalso, com escarninha mesura.
Pelo soalho cotão, o cheiro
restado dos lençóis, doçura
tudo em rodilha, cinza, exaltação.

Pelo lento valado do verão
de tentearmos encontros, as vésperas
num visco enorme de sol tardio
julgando cada dia por roubado
ao destino que não pertencia
e corria por outro regato.
Meu Deus, a tua sede cortada.

Tens sempre o teu albergue, os teus
inestimáveis bens comungados
e porém. Os espoliados d´aquém
mar, que diabo os carregue?
Mas não fiques, não oiças
não quero, eu só quero que
a noite não suceda.

Eu desamparo-te o foral eu
nem vale que me cale
quedo-me sem pátria que nem
tinha e houvera unhas tangia
uma canção de protesto triste.






nuno vidal
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990





06 novembro 2010

gil t. sousa / era um passo novo



27


era um passo novo
um timbre de rua nova
numa cidade calada

a tua mão na água dormente
a dança do teu olhar
sobre o peso

do tempo sábio
segui-te o sonho
como uma ave

e regressei
ainda mais só





gil t. sousa
falso lugar
2004






04 novembro 2010

manuel francisco t. / não te esqueces?




















veneza é um peixe obscuro
inventado por ticianos náufragos.
a peste ensinou-nos na pele ver
a última tela víbora imagem

do bispo. em gelos esquecidas
ardem estas estátuas o corpo
veneziano, peixe que em
nós se instala.

deixa-o vir, disse. a espia doce
aceitou no hotel dês avenirs
refúgio gnóstico d´enviados espaciais.

deixa, sim, um aeroplano destes tudo
será, raiz e lenta lágrima, ele
em jardins saberá. eu digo-lhe.







manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990





02 novembro 2010

sophia de mello breyner andresen / a escrita







No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho
Lord Byron usava as grandes salas
Para ver a solidão espelho por espelho
E a beleza das portas quando ninguém
Passava


Escutava os rumores marinhos do silêncio
E o eco perdido de passos num corredor
Longínquo
Amava o liso brilhar do chão polido
E os tectos altos onde se enrolam as sombras
E embora se sentasse numa só cadeira
Gostava de olhar vazias as cadeiras

Sem dúvida ninguém precisa de tanto espaço vital
Mas a escrita exige solidões e desertos

E coisas que se vêem como quem vê outra coisa

Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa
Imaginar o alto pescoço espesso
A camisa aberta e branca
O branco do papel as aranhas da escrita
E a luz da vela – como em certos quadros –
Tornando tudo atento





sophia de mello breyner Andresen
ilhas
caminho
2004