30 junho 2010
umberto saba / trabalho
Outrora
a minha vida era fácil. A terra
dava-me flores frutos abundantes
Hoje arroteio um terreno seco e duro.
A enxada
bate em pedras, em tojos. Tenho de cavar
fundo, como quem busca um tesouro.
umberto saba
dez poetas italianos contemporâneos em selecção
trad. albano martins
dom quixote
1992
28 junho 2010
martin earl / vinho
Quanto mais ao sul mais chegados à terra
São as culturas, dobradas como velhos japoneses
Sobre as pernas, um braço esticado, a olhar
Para trás por sobre os ombros, para as figuras
Que os outros fazem, todos assim, ou de joelhos
Pelo arame fora, enquanto vai descendo o sol:
Um Deus verde enlaçado, ao qual a mágoa
Segue a toda a parte, como por sistema –
A sua hora um copo de vinho cheio de tempo,
Onda semeada no sangue, sulco aberto
No cérebro, engenho aguçado demais:
Saem-lhe as ideias, em latim, sem rima.
Mas quando, à altura dos olhos, vejo
Jorrar a luz da janela que o atravessa,
Como se viesse de algures dentro
Do copo, ou dos olhos de quem bebe,
Eis que trespassa o coração, vai direita
Ao medo e leva tudo, eu sei que vou ficar.
martin earl
sonnets from the portuguese
trad. de manuel portela
oficina de poesia
revista da palavra e da imagem
nr. 1 série II
junho 2002
24 junho 2010
gil t. sousa / é como acordar
20/
é como acordar.
mas aquilo que flúi quando acordas,
aquilo que te liga os dias donde vens
aos dias a que queres chegar,
aquela abundância de razão e de consciência
que te dá sentido à vida...
esse movimento está ausente
e sentes-te como um fumo.
qualquer coisa te pode esmagar,
qualquer gesto te pode transportar
a um chão que não existe,
a um caminho
que os teus passos não sabem percorrer.
e as tuas mãos ficam húmidas desse delírio.
e os olhos caem-te aflitos no lugar da doçura ausente.
e ficas sem gritar,
ergues-te sobre esse dia que chega
e tudo é maior do que possas ter para te agarrar.
e deixas-te ir, etéreo como um fumo…
podia ser esse o minuto da loucura.
podia ser esse o momento de abraçar a luz
e estalar docemente numa noite qualquer.
como uma fenda de fogo,
como um punhal de lume
que enfim te rasgasse o mundo.
gil t. sousa
falso lugar
2004
23 junho 2010
joaquim cardoso dias / em pé sobre a visão
em pé sobre a visão submersa dos anjos
nada é tão impossível para que não me dissesses
entre um barco ou outro deves lavar
os teus olhos sempre que voltes a olhar o mar
joaquim cardoso dias
o preço das casas
entrada de emergência
gótica
2002
22 junho 2010
antónio manuel azevedo / que mal podem as palavras
1
Não é sempre primeiro
o amor. E quando o trazemos
nos bolsos distraídos das mãos
é o voo da manhã.
Não é tudo. Imagina
A devastação.
2
uma alegria profunda nos protege
quero dizer obscura, quero dizer
silenciosa. Sim, sabemos tantos modos
de imitar o fim da pouca vida
que sobra sempre a matéria dos desertos
para errar os amores novos. Que mal
podem as palavras saber de ti.
3
É uma voz sem socorro. Sem lugares
para adormecer, sem destino
estreito destino para o que dizer te possa
do que passa mesmo quando não sinto
pisa mesmo quando não respiro
e fecho os olhos para te ver melhor.
Às palavras nada mais trarei.
4
Esta morte não podemos dormir.
De te perder ou de ter perdido
não estou hoje mais seguro.
Na praça as sombras dos homens
São tão pequenas para o meio-dia.
Crescem com a tarde para o fim
confundem-se de noite para repartir
o coração.
5
Desde que o mês é este
Oitavo mês mau para partidas
repito que não mais posso ter
em mim que não seja
tu. Desde que é esta a condição
a do frágil tempo de uma espera
mau para palavras repito
as que procuram saber
mais valeria o repouso
na imagem do amor
a que preserva. Ninguém
vai perguntar o que falta
sempre falta.
6
Da pedra de cada dia formar o rosto
pequeno e com brilho, o perfil sereno
da manhã, o olhar claro à tarde furtando
a cor sobre o longe do mar onde fica
o coração e anoitece.
À medida deste trabalho esperava ou pedia
a magia menor dos versos, a graça de voltar
sobre ser pobre em lembranças de ouro ou rosa
ao lugar em setembro da tua sombra e não achar
razão.
7
Dia seis, de reis
nesta república quase nada passa
o ano sim, o mês, a ocasião
o vento pela praça e por uma sorte estreita
ao abrigo da aragem de janeiro
passa um cão
e um dia assim como outro dia
sem epifania.
8
Da noite se diz
que antiquíssima
igual em tudo é
aos novos navegantes
em tudo propícia
às migrações lentas
do olhar.
9
Antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros
da sorte em pequeno mapa achar
certeza. A este fim
observaram os sonhos, seguiram a linha
da melhor mão, o sul das aves.
Cansaram em paciência as ruas
a vontade. De coração nenhum
partiam, dormiam de bruços
pelas horas da luz.
Instante não havia que se pudesse dizer
propício, era pela hora miúda
a pressa das palavras sobre o imóvel mundo
enganos repartindo. O lugar de tudo
ao norte, iam mandá-lo
à memória.
10
Também nós tivemos nas mãos
os cabelos mortos das nossas rainhas.
Os olhos iam para os lados do poente um dia
e outro dia. Víamos a sombra pousar
no ombro descarnado o último dedo
de luz abandonar a resistência da montanha.
Sentada junto às águas do teu rio
não viste nada, a escutar a chuva
da minha noite não posso ver-te.
Posso mostrar-te as memórias
que aprendi, a minha ilha de Circe.
antónio manuel azevedo
as escadas não têm degraus 3
livros cotovia
março 1990
20 junho 2010
josé saramago / tem o relógio horas tão vazias
Tem o relógio horas tão vazias que, breves mesmo, como de todas é costume dizermos, excepto aquelas a que estão destinados os episódios de significação extensa, (…), são tão vazias, essas, que os ponteiros parece que infinitamente se arrastam, não passa a manhã, não se vai embora a tarde, a noite não acaba.
josé saramago
o ano da morte de ricardo reis
16 junho 2010
andre breton e paul éluard / a ideia do devir
A perfectibilidade humana, pensámos muito nesta espécie de caça ao urso nas montanhas que se sapam a si mesmas antes de se tornarem montanhas que se sapam a si mesmas e são todavia montanhas. O urso em questão não desdenha de aparecer entre duas derrocadas ou duas elevações de buracos e outros acidentes do terreno. Nos seus olhos há vida e morte para dar e receber, o que não acontece sem urna certa consciência da estupidez. Vá! ao muro acabou-se. Mas aquilo que amava... Apontar! Talvez convenha cantar! Fogo! E dizer que talvez ainda me esperem!
A pequena volta que consiste em dar ao desgosto a forma de uma esperança terrível e desamparada não se faz sem o abandono de alguns cuidados de segunda ordem. A dor física nunca foi para nós senão a quinta roda do coche da carne. A confiança nunca se fez luz senão através dos postigos da observação. Prestar justiça nunca foi mais do que o primeiro termo e o menor de uma solução que pode cobrir os homens com o manto transparente da igualdade. Logo, nunca se está bastante seguro da vida para não se estimar dos outros.
Botão do uniforme que não escolhi, botão que tem em relevo a pequena granada do meu espírito, bem me diz que sou substituível. O céu era uma pena para o meu chapéu, a terra urna espora. O que me mata contudo é aquilo que merecia ter sido. Antes que se tivesse regulado os meus passos sobre a bússola a navegação muito longa prosseguia para me permitir produzir-me, eu, pequeno ciclone, muito orgulhoso. O navio sobe a escada em caracol da tromba. Lá no alto dos degraus está surpreendido por ter de saltar no ar para não mais se mirar sendo no futuro de um modo claro e franco. Estas luvas de repulsa que tenho calçadas não foram cosidas para mim. E depois também que mãos são estas que tenho estendidas e para as quais as minhas mãos se estendem, que olhares são estes que lancei para tudo, estes olhares que tudo abandonava, que recordações são estas que mantêm aquilo que será?
Sem ascendência, sem descendência. A caixa das cartas está vazia na extremidade do jardim ou melhor, não: ela atola-se na areia, está magnífica. Cada grão de areia é um aglomerado de parcelas provenientes da usura daquilo que só se usou para voltar a servir. O ponto que não alcancei está tão afastado como o ponto que alcancei. Foi daqui que parti, deste grão de areia mais pequeno que um dedal, ou deste cubo de praias indefinidamente a escorregar na mesa das repetições?
Se fosse para recomeçar, se fosse para recomeçar... A roseira de espuma do mar está de pé a meu lado neste retrato poeticamente definitivo. Ainda me comparo com aquele que não poderia ser. Este ancião olha ao longe os seus bisnetos atirarem uns aos outros bolas de neve através da sua barba, esta criança sonha que morreu, a segurança do dia seguinte faz a ponte sobre o abismo que o separa da véspera. Toda a autoridade com a qual me reduzo na minha fraqueza amalgama as construções dos homens e do tempo.
Certamente, é bem menos que a sorna se se considerar a diferença. Eis os pequenos remédios de hoje nos quais só entram ainda as flores do campo, eis sobre um coxim a última invenção toda emaranhada nos seus fios, eis o lindo ruído do esmagar de cascalho com os pés que se faz numa festa. No esquecimento completo dos terrenos estéreis, as descobertas em potência dormem o seu primeiro despertar. Aparecimento perturbante das noites escuras, um ser que se conheceu é um ser novo. Quantos corredores e que corrida! É tão longe que não haverá ninguém a esperar a chegada. Os primeiros terão mil e mil vezes alcançado os últimos, de tal modo, apesar de tudo, a pista é pequena: ora, como nos defendemos bem, e com razão, de contar as voltas… Nas nossas breves relações com a existência o essencial é que tenhamos mantido um pouco o ritmo. A memória perde-se das curvas do trajecto. É por urna linha indefinidamente recta que a direcção é dada, que o regresso se tornou impossível. E o corredor ultrapassa-se... Tornou-se invisível. O seu dorso loucamente curvado faz parte integrante da encosta que trepa. É necessário que o seu dorso se estenda paralelamente a todos os dorsos curvados, a todos os dorsos admiráveis. Desgraça para aqueles que deles tiverem tentado fazer um pedestal, que será feito com estes abrigos das suas mãos caindo incessantemente num sufocante perfume de terebintina, que será feito com esta poeira que ainda obscurece o mundo, que será feito também com estas carreiras do pior nas verduras do mal, com estes oásis do melhor nos desertos do bem. As invisíveis barreiras do pensamento humano, as invisíveis barreiras dos corpos semelhantes sepultarão ao tombarem todos os inimigos do género humano.
andre breton e paul éluard
amor
a imaculada concepção
tradução franco de sousa
estúdios cor
1972
14 junho 2010
fiama hasse pais brandão / idade
Conheci dias duradouros,
o sol tão longo entre manhã e tarde.
Um levantar súbito de luz
por trás da crista das heras no muro velho,
e depois descer no verão entre grades verdes
e para além do portão como a cair no Hades,
no inverno. Não havia tempo
nos dias longos, mas a passagem diária
do sol abençoado.
fiama hasse pais brandão
três rostos
poemas revistos 1985-1987
assírio & alvim
1989
13 junho 2010
amadeu baptista / estações
Miúdos de treze anos fumam erva
nas obras das traseiras,
a vizinha
recorre ao xanax e à catatua
para recuperar a adrenalina, o octogenário
dorme no cadeirão de orelhas secundado
pelo cão que a netinha
há-de supliciar até à raiva. Ronrona
a gataria pela lata de sardinha
que a louca do bairro distribui
ao final da manhã, ainda a esquina
está incandescente da matilha
que assediou o quarteirão durante a noite.
Camas desfeitas dos corpos dos amantes
lembram-me a tua ausência
incontornável.
amadeu baptista
estações
apeadeiro / revista de atitudes literárias
primavera 2002
quasi
2002
11 junho 2010
william carlos williams / pastoral
Quando era mais jovem
tinha a certeza
que devia fazer algo da minha vida.
Agora, mais velho,
caminho por vielas
admirando as casas
dos muito pobres:
telhados desengonçados
pátios cheios de
velho arame de capoeiras, cinzas,
móveis desconjuntados;
as cercas e os anexos
construídos com aduelas
e tábuas de caixotes, todos,
com alguma sorte,
sujos de um verde-azulado
cuja pátina
me agrada mais
que qualquer cor.
Ninguém
acreditará que isto
seja tão importante para a nação.
william carlos williams
antologia breve
tradução josé agostinho baptista
assírio & alvim
1993
09 junho 2010
maria gabriela llansol / se eu fosse aquela em que tu
210
«Se eu fosse aquela em que tu
Pensas, a que tu tens amor», dizia
Insistente a canção, à luz daquele
Candeeiro da Belle Époque. Tinha
Oito anos e olhava para o garoto
Sobre o seu supedâneo. Estive para
Dizer «Eu sou aquela em quem tu
Pensas» e estive para não dizer. E se
Tivesse dito? Seria aquele semântico
Tu que sempre me diria. E se dito não
Tivesse? Meu Eu gramatical ficaria
Apenas meu, é certo… mas tão incerto.
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
05 junho 2010
samuel beckett / dieppe
ainda a maré vazia
o cascalho morto
meia volta e depois os passos
em direcção às antigas luzes
1937
samuel beckett
trad. manuel portela
“relâmpago” nr.13
10/2003
04 junho 2010
gil t. sousa / passados
19
não te esqueças de me visitar. traz-me as fotografias de Veneza e aquele poema que me escreveste quando o nosso amor ainda era o que de mais magnífico acontecera nas nossas vidas e no mundo.
havemos de nos sentar nas mesmas cadeiras como se fossem as mesmas manhãs de sábado. havemos de olhar os mesmos telhados, divagar sobre a eternidade dos gestos e jurar comovidamente que as nossas almas se tocaram de uma maneira única e inesquecível.
eu hei-de esconder-te a minha interminável solidão e tu hás-de demonstrar-me, muito inocentemente, nas tuas palavras tão cheias de vida e de juventude, como a morte nos descobre mesmo nos lugares mais altos.
gil t. sousa
falso lugar
2004
01 junho 2010
antónio josé forte / a torre de pisa
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