passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram
ruy belo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004
passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram
ruy belo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004
Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: Governador do mar e da terra, para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com os homens na terra observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (1). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo após o bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Proedo minorisfit proeda majoris (2).
Mas não bastam, peixes, estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes. Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos? Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes; contra vós se tecem as nassas; contra vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os anzóis; contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com urna guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim e sereis felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza, Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhe repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por que o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.
Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima, em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por quê? Porque houve quem os engodou, e lhe fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem esta ambição de hábitos.
Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honra da e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não tem gasto. E que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra; dá-lhe uma sacadela e dá-lhe outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano!
Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas, não é maior ignorância e maior cegueira deixares-vos enganar, ou deixares-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
(1) «Tem cuidado, não caias nas mãos de um mais potente, quando vais em perseguição de um outro.»
(2) «O ladrão do menor acaba por ser vítima do maior.»
padre antónio vieira
sermões
Não sei quem te perdeu
se eu se outro alguém
— oiço cães velhos
a ladrar lá fora,
os mesmos cães de sempre
que tu também ouvias
abafadamente pela janela,
com o teu ponto cruz
as minhas telas
os nossos filmes e CDs,
a nossa casa,
o nosso lar,
os nossos cães
não me fales mais
dessa solidão de papel
eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar
eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar
o teu nada
é só mais um perfume!
e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis
gil t. sousa
poemas
2001
(…)
Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.
Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.
Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.
(…)
italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002
Conforta-me saber agora
que um dia, não sei bem quando,
terei quem me limpe o granito polido
de folhas velhas e de pó
e talvez me sinta
numa árvore próxima,
num fruto,
numa erva,
e de par em par
formando um elo,
a presença de alguém
que foi sem saber ser,
que perdeu nos dedos os porquês
e amor,
alguém viveu, amor,
alguém sorriu, amor,
alguém se fumou até à morte,
alguém se pensou até à morte,
se debateu de mais até à morte
sobre o sentido das pegadas nestes trilhos
traçando no chão o seu caminho
sem traçar o seu destino.
E amor,
este coração devoluto
deu guarida a sem-abrigo em excesso,
que serviu de garagem e armazém,
de hotel e pensão rasca,
de cabide e asilo, de casa de alterne
e solar de ricos
é agora um sanatório
abandonando-se a si mesmo
no desgaste de dois murmúrios.
Mas amor, olha-me nos olhos
e não chores,
evita que os teus joelhos
sangrem sobre a pedra que me cubra
e sente-me no verde de qualquer musgo
e anda para a frente e sê feliz
tem filhos e filhas e escreve um livro
sobe à tua serra e corre e grita
e sente o eco dos teus gritos,
amor,
não te abandones assim, ao Deus-dará,
não te abandones assim sem sentido
nessa tristeza,
porque amor,
neste coração devoluto
uma morada
uma casa branca
um fruto.
o céu
é a parte mais venenosa do olhar
é um vício inútil
como uma ideia
e leva-me os dias
numa suave cegueira
para os largar
em lugares impossíveis
mais raros
do que o próprio azul
com que me esmaga
de encontro
a
este instante
gil t. sousa
poemas
2001
III
[ amores sucessivos]
O mais frequente é que o homem ame várias vezes durante a sua vida. Este facto levanta uma série de questões teóricas, para além das questões práticas que o apaixonado terá de resolver por sua conta. Por exemplo: esta pluralidade de amores sucessivos faz parte da natureza masculina ou será um defeito, um resíduo vicioso de primitivismo, de barbárie? Seria o amor único o ideal, o perfeito, o desejável? Haverá, nesta matéria, alguma diferença entre o homem normal e a mulher normal?
Evitaremos, para já, qualquer tentativa de resposta a tão perigosas questões. Sem tomar a liberdade de opinar sobre elas, consideremos, sem mais, o facto indiscutível de que o homem tem quase sempre muitos amores. Como nos referimos a formas plenas deste sentimento, fica excluída a pluralidade da coexistência e retemos apenas a pluralidade da sucessão.
Não implicará este facto uma dificuldade séria para a tese aqui sustentada, segundo a qual a escolha amorosa revela a natureza essencial da pessoa? Talvez, mas antes convirá lembrar ao leitor a observação trivial de que essa variedade de amores pode ser de duas espécies. Há indivíduos que amam várias mulheres ao longo da sua vida; mas todas elas reproduzem com uma insistência evidente o mesmo tipo de feminilidade. Às vezes, a coincidência é tão grande que as mulheres partilham as mesmas características físicas. Esta espécie de fidelidade larvada, em que através de muitas mulheres se ama, em rigor, uma única mulher genérica, é extraordinariamente frequente e constitui a prova mais directa da ideia que sustentamos.
Mas, noutros casos, as mulheres sucessivamente amadas por um homem, ou os homens preferidos por uma mulher, são, na realidade, de tipo muito diferente. Considerado o facto a partir da nossa ideia, significaria que a natureza essencial do homem teria mudado de urna época para outra. Será possível uma mudança tão radical do nosso ser? É um problema crucial, talvez decisivo, para uma ciência do carácter. Durante a segunda metade do século XIX era habitual pensar que o carácter se formava do exterior para o interior. As experiências da vida, os hábitos que criam, as influências do meio, as vicissitudes do acaso, os estados fisiológicos iriam decantando, como um sedimento, aquilo a que chamamos carácter. Não haveria, portanto, urna estrutura essencial, urna estrutura íntima anterior aos acontecimentos da existência e independente deles. Seríamos feitos, como a bola de neve, da poeira cio caminho que vamos percorrendo. De acordo com este modo de pensar, que exclui um núcleo radical da personalidade, não se põe, evidentemente, o problema das mutações radicais. O chamado carácter modificar-se-ia constantemente: à medida que se vai fazendo vai-se também desfazendo.
Razões de bastante peso, que não é oportuno enumerar aqui, inclinam-me, porém, a acreditar no contrário; parece-me, pois, mais exacto dizer que vivemos de dentro para fora. Antes que sobrevenham as contingências externas, o nosso carácter interior está já formado no essencial, e embora as circunstâncias da existência influam de alguma forma sobre ele, é muito maior a influência que o carácter exerce sobre os acontecimentos. Somos por norma incrivelmente impermeáveis em relação ao que nos acontece quando não está em sintonia com esse carácter inato que, em última instância, somos. Nesse caso dir-se-á também não podemos falar de mudanças radicais. Aquilo que éramos ao nascer, seremos na hora da nossa morte.
Não, não. Esta opinião goza, precisamente, da elasticidade suficiente para se moldar aos factos em toda a sua amplitude. Permite-nos distinguir as pequenas modificações que são introduzidas pelos acontecimentos exteriores no nosso modo de ser das outras modificações mais profundas que não obedecem a motivos casuais, mas à própria natureza do carácter. Eu diria que o carácter muda, se por esta mudança se entender propriamente urna evolução. E esta evolução, como a de qualquer organismo, é provocada e dirigida por razões internas, inerentes ao próprio ser, inatas, como o seu carácter. O leitor terá certamente a impressão de que por vezes as transformações daqueles que lhe são próximos lhe parecem frívolas, injustificadas, quando não decorrentes de motivos inconfessáveis, mas que noutros casos a mudança possui toda a dignidade e todo o sentido de um crescimento. É como o rebento que se torna árvore, a nudez que precede a renovação das folhas, o fruto que se segue à fronde.
Eis, pois, a minha resposta à objecção precedente. Há pessoas que não evoluem, caracteres relativamente estagnados (em geral, os de menos vitalidade, o protótipo do «bom burguês»). Jamais modificarão o seu esquema de escolha amorosa. Mas há indivíduos de carácter fecundo, rico de possibilidades e de destinos, que esperam ordeiramente o seu momento de explosão. Quase se poderia afirmar que esta é a norma. A personalidade sofre ao longo da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, mais ainda, a homogeneidade fundamental com os nossos sentimentos passados, um belo dia percebemos que entrámos numa nova fase ou modulação do nosso carácter. É a isso que chamo uma mudança radical. Nada mais, mas também nada menos. O nosso ser profundo parece, em cada uma destas duas ou três fases, rodar uns graus sobre si mesmo, deslocar-se para outro quadrante do Universo e orientar-se para novas constelações.
Não será um acaso sugestivo que o número de amores verdadeiros pelo qual um homem normal costuma passar seja praticamente sempre o mesmo: dois ou três? E, além disso, que cada um desses amores seja cronologicamente localizável em cada uma destas fases do carácter? Não me parece, pois, exorbitante ver na pluralidade de amores a mais flagrante confirmação da doutrina aqui insinuada. A preferência por um novo tipo de mulher, corresponde rigorosamente a um novo modo de sentir a vida. O nosso sistema de valores alterou-se em maior ou menor grau — mantendo sempre uma fidelidade latente com o antigo — qualidades que antes não estimávamos, que talvez nem se quer percebêssemos, passam para primeiro plano, e um novo esquema de selecção erótica interpõe-se entre o homem e as mulheres que passam.
Só um romance oferece instrumental adequado para ilustrar esta ideia. Eu li extractos de um romance, que talvez nunca venha a ser publicado, cujo tema é, precisamente, este: a evolução profunda de um carácter masculino vista através dos seus amores. O autor — e é isso que me parece interessante — insiste também em mostrar a continuidade do carácter ao longo das suas transformações e os seus contornos divergentes, esclarecendo assim a lógica viva, a génese inevitável destas transformações. E uma figura de mulher reúne e concentra em cada etapa os raios dessa vitalidade em evolução, como essas figuras espectrais que se conseguem formar com luzes e reflectores sobre uma atmosfera densa.
ortega y gasset
estudos sobre o amor
trad. de elsa castro neves
relógio d´água
2002
a árvore está completa
e nua
e vai
sobe cor a cor
o olhar do homem
que hesita
do homem
que a si próprio
multiplica os dias
e os firma
no indiferente cair
das folhas
um a um
os dias e as folhas
na paisagem do homem
que a árvore
se aplica
a ceifar
como se a morte
fosse o consumar
dos sinais
de um ser
flor ou homem
eu
ou paisagem
o homem está completo
e nu
e parte
vai
esbate-se
debate-se
no desígnio
expresso
de um tempo
de um silêncio
que sem notícia
chega
gil t. sousa
poemas
2001
91 Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. O cerco aperta-se de todas as civilizações, das que sobretudo sentem em si um pólo unificador. Imaginá-la inundada do islamismo ou tingida de preto de uma inundação africana ou asiática. Imaginá-la surpreendida no entretém do seu vazio. Pensá-la servil como os escravos pedagogos em Roma, a servir de ilustração aos seus novos senhores. Ou pensá-la coalhada de electrodomésticos e computadores, na ausência de uma alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. Pensá-la dessorada, fluidificada, viscosa na indiferenciação total do seu ser. Pensar a Europa. Chorar sobre ela.
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001
O que é grave
é nós sabermos
que depois da ordem
deste mundo
uma outra existe.
Que outra?
Não o sabemos.
O número e a ordem das suposições possíveis
é neste campo
justamente
o infinito!
E o infinito o que é?
Não sabemos exactamente o que seja.
É uma palavra
que nós usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
perante a desmedida
possibilidade,
infatigável e desmedida.
E o que vem a ser exactamente a consciência?
Não sabemos exactamente o que seja.
É o nada.
Um nada
de que nos servimos
quando não sabemos qualquer coisa
para designar
qual a faceta que desconhecemos
e então
falamos em
consciência,
pelo prisma da consciência,
quando há cem mil outros prismas.
E então?
Parece que a consciência
estaria em nós
ligada
ao desejo sexual
e à fome;
mas poderia
perfeitamente
não ter qualquer ligação
com isso.
Diz-se,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver;
e imediatamente
a par do apetite de viver,
é o apetite de comida
o que imediatamente nos vem ao espírito;
como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e gente que tem fome.
Pois também isso
acontece
ter fome
sem apetite;
e então?
Então
o espaço do possível
surgiu-me um dia
como um grande peido
que eu tivesse dado;
mas nem o espaço,
nem o possível
sabia eu exactamente o que fossem,
nem nisso sentia necessidade de pensar;
eram palavras
inventadas para definirem coisas
que existiam
ou não existiam
frente à
premente urgência
de uma necessidade:
a de suprimir a ideia,
a ideia e o seu mito
e em seu lugar instituir
a manifestação tonante
desta explosiva necessidade:
dilatar o corpo da minha noite interna,
no nada interno
do meu eu
que é noite,
nada,
irreflexão,
mas que é explosiva afirmação
de que há
algo
a que dar lugar:
o meu corpo.
Mas então
reduzir o meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
em formação
dentro de mim?
Não sei
mas
sei que
o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro
o porvir,
o ser,
o não ser,
o eu,
o não eu,
nada são para mim;
mas há uma coisa
que é qualquer coisa,
uma só coisa
susceptível de ser qualquer coisa,
uma coisa que eu sinto
por ela querer
SAIR:
a presença
da minha dor
de corpo,
a presença
agressiva
jamais cansativa
do meu
corpo;
e por mais que me apertem com perguntas
e que eu me esquive a todas,
chego a um ponto
em que me vejo constrangido
a dizer não,
NÃO
portanto
à negação;
e esse ponto
é quando me apertam,
quando me amolgam
e me dão tratos
até de mim sair
o alimento,
o meu alimento
e o seu leite,
e então que fica?
Fico eu sufocado;
E não sei que acção será essa
Mas apertando-me assim com perguntas
até à completa ausência,
ao nada
da questão,
apertaram-me
até sufocar
em mim
a ideia de corpo
e de ser um corpo,
e foi então que eu senti o obsceno
e que me peidei
de irrisão
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.
É que me apertavam
contra o meu corpo
e contra o corpo
e foi então
que eu fiz ir tudo pelos ares
porque no meu corpo
não se toca nunca.
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
trad. luiza neto jorge
& etc
1975
I
O Pai Natal coberto de lantejoulas ia subindo a ladeira com um ar circunstancial. O cumprimento que me dirigiu, corrigido por um gesto de perfeita cortesia, era tão naturalmente rico de proteínas que se comia à mão, em fato de baile.
Os dias iam correndo pela mão daquela cujo nome se vai ocultar na Península da Gata, a norte do Carvoeiro.
«É assim que cumpres?», perguntou Júlia Bahamas. Respondi que não era ainda tempo de colher maçãs e que também as uvas estavam por amadurecer. E acrescentei, exclamativamente:
«Ó Estações!»
Mas aí já ninguém ouvia ninguém, o círculo apertava-se coberto de espuma.
II
Estava tudo tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre pela cruz vermelha do asco mais inocente.
Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver. Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.
III
Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.
Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo fenómeno, afinal.
mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980
filipa gonçalves
sem nome (8)
caneta s/papel
150 x 180 cm
xiv bienal de v. n. cerveira
as novas cruzadas
A pouco e pouco o dilúvio entrou e fechou a porta atrás de si
A dor que hesitara entre o corpo e o espírito
pousou os cabelos na fronte e deixou-se ir com o dilúvio
Já dormiu nos pátios, uma fresta de muro (mundo) íngreme
era a sua fascinação nocturna
O impossível avançou para ele e passado ficou
cheio de partes dispersas e o princípio de um ventre mosaico
no vitral da sala
As imagens levam em si memórias silenciosas
em troca de um pântano entontecido, uma mistura açucarada
que já ninguém lembra entoando cânticos antigos
e estendendo os braços extinguem a luz
Reflectia, sentia, verticalmente repuxado pelos planos que
antes encenara, empurrando para a frente
o tecto do corpo longo de um riso quadriculado
manhãs ínfimas da extremidade de troncos humanos
procuram na quebra dos braços a transpiração de outras
mãos
sobre as suas, oferecem-se à ternura dos
tormentos misteriosos e aí permanecem
vestem cinza sóbrio e elegante: casaco cinza,
calça cinza, gravata cinza
Formam uma mancha cinza na obscuridade
constroem
uma rua baça e escura com escadas de latão grosseiro, onde
um degrau leva as mãos amarradas por ser um degrau solitário
no início de uma tarde de Inverno
por detrás de cada silêncio nasce um homem
de pés descalços e traz um som áspero que se renova
ciclicamente
A muralha vai
de um
ao outro extremo da terra
ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra
Na religião, o Futuro está atrás de nós. Na arte, o Presente é o eterno, O mestre-do-chá defendia só ser possível a verdadeira apreciação artística aos que a encaram como uma influência viva. Assim, procuraram regular o quotidiano das suas vidas pelo elevado padrão de requinte que prevalecia na sala-de-chá. Fosse qual fosse a circunstância, havia que manter a serenidade de espírito, e a conversa deveria conduzir-se de modo a nunca perturbar a harmonia da ambiência. O corte e a cor do traje, a pose do corpo e a maneira de caminhar podiam ser transformados em expressão da personalidade artística. Estes preceitos não deviam ignorar-se com ligeireza, pois até se tornar a si próprio belo ninguém tem direito a aproximar-se da beleza. Assim, o mestre-do-chá esforçava-se por ser algo mais que o artista — a própria arte. Era o Zen do esteticismo. A perfeição está em todo o lado, basta decidirmos reconhecê-la. Rikiu adorava citar um velho poema que diz: «Aos que anseiam apenas pelas flores, eu mostraria com agrado a primavera desabrochada que subsiste nos botões obstinados dos montes cobertos de neve.»
Foram de facto diversas as contribuições dos mestres-do-chá para a arte. Revolucionaram completamente a arquitectura clássica e as decorações interiores, e estabeleceram o novo estilo que descrevemos no capítulo sobre a sala-de-chá, um estilo a cuja influência se sujeitaram inclusivamente os palácios e mosteiros erigidos depois do século dezasseis. O versátil Kobori Enshiu deixou exemplos notáveis do seu génio na vila imperial de Katsura, nos castelos de Nagoya e Nijo, e no mosteiro de Kohoan. Todos os jardins célebres do Japão foram planeados pelos mestres-do-chá. É provável que a nossa cerâmica jamais atingisse aquela altíssima qualidade de excelência se os mestres-do-chá não lhe houvessem emprestado a sua inspiração, uma vez que a manufactura dos utensílios utilizados na cerimónia-do-chá exige o maior dispêndio de engenho por parte dos nossos ceramistas. Os Sete Fornos de Enshiu são sobejamente conhecidos de todos os estudiosos da cerâmica japonesa. Muitos dos nossos tecidos trazem os nomes dos mestres-do-chá que lhes conceberam as cores ou o padrão. Em verdade, é impossível encontrar algum sector da arte em que os mestres-do-chá não tenham deixado marcas do seu génio. Na pintura, e nas lacas, parece quase supérfluo mencionar o imenso serviço que prestaram. Uma das maiores escolas de pintura deve a sua origem ao mestre-do-chá Honnami-Koyetsu, afamado também como artista lacador e ceramista. Perto da sua obra, a criação esplêndida do seu neto, Koho, e dos seus sobrinhos-netos, Korin e Kenzan, quase cai na penumbra. Toda a escola Korin, como geralmente é designada, é expressão do Cháismo. Nos traços largos desta escola parecemos encontrar a vitalidade da própria natureza.
Por maior que tenha sido a influência dos mestres-do-chá no campo da arte, ela não é nada quando comparada com a que eles exerceram na conduta da vida. Sentimos a presença dos mestres-do-chá não apenas nos usos da sociedade polida, mas também no arranjo de todos os nossos detalhes domésticos. Muitos dos nossos pratos delicados, bem como a maneira de servirmos os alimentos, são invenções suas. Ensinaram-nos a vestir somente trajes de cores sóbrias. Instruíram-nos no espírito próprio para nos aproximarmos das flores. Acentuaram o nosso amor natural pela simplicidade, e mostraram-nos a beleza da humildade. Na verdade, através dos seus ensinamentos o chá entrou na vida do povo.
Os que, entre nós, desconhecem o segredo de regular adequadamente a sua existência neste mar tumultuoso de problemas tolos a que chamamos vida, estão num estado de tristeza constante, embora tentem em vão parecer felizes e contentados. Vacilamos ao tentar manter o nosso equilíbrio moral, e vemos prenúncios da tempestade em cada nuvem que paira no horizonte. Contudo, há alegria e beleza na espiral das vagas que se encapelam rumo à eternidade. Por que não entrar no seu espírito, ou, como Liehtse, cavalgar o próprio furacão?
Quem apenas viveu com o belo pode morrer em beleza. Os últimos momentos dos grandes mestres-do-chá foram de um requinte sofisticado tão completo quanto o haviam sido as suas vidas. Procurando constantemente harmonizar-se com o grande ritmo do universo, estavam sempre preparados para entrar no desconhecido. O «Ultimo Chá de Ríkiu» evidenciar-se-á para sempre como o auge da grandiosidade trágica.
A amizade entre Ríkiu e o Taiko Hideyoshi vinha de há muito, e era elevada a estima em que o grande guerreiro tinha o mestre-do-chá. Mas a amizade de um déspota é sempre uma honra perigosa. Vivia-se uma época fértil em traições, e os homens não confiavam sequer nos seus parentes mais próximos. Rikiu não era um cortesão servil, e ousara amiúde discordar do seu feroz patrono. Tirando partido da frieza que existia há algum tempo entre o Taiko e Rikiu, os inimigos deste último acusaram-no de estar implicado numa conspiração para envenenar o déspota. Foi segredado a Hideyoshi que a poção fatal lhe seria administrada com uma chávena da beberagem verde, preparada pelo mestre-do-chá. Para Hideyoshi a suspeição era terreno suficiente para execução imediata, e não houve apelo que demovesse a vontade do irado governante. Um só privilégio foi concedido ao condenado — a honra de morrer pela sua própria mão.
No dia destinado à autoimolação, Rikiu convidou os seus principais discípulos para uma última cerimónia-do-chá. Enlutados, na hora estipulada os convidados encontraram-se no alpendre. Quando olham para o caminho do jardim as árvores parecem estremecer, e no restolhar das folhas escutam-se murmúrios de fantasmas desabrigados. Como sentinelas solenes perante os portões do Hades estão as lanternas de pedra cinzenta. Uma onda de incenso raro solta-se da sala-de-chá; é o chamamento que ordena aos convidados que entrem. Um a um avançam e tomam os seus lugares. No Tokonoma está pendurado um kakemono um escrito maravilhoso de um monge antigo, discorrendo sobre a evanescência de todas as coisas terrenas. A chaleira cantante, à medida que ferve sobre o braseiro, soa como uma cigarra derramando os seus lamentos ao Verão em declínio. Pouco depois o anfitrião entra na sala. Um a um são servidos de chá, e um a um esvaziam silenciosamente as suas chávenas, sendo o anfitrião o último a fazê-lo. De acordo com a etiqueta estabelecida, o convidado principal pede agora permissão para examinar o equipamento-do-chá. Rikiu dispõe frente a eles os diversos artigos, com o kakemono. Tendo todos expressado admiração pela sua beleza, Rikiu presenteia com um destes artigos cada um dos convivas reunidos, como lembrança. Só a malga reserva para si mesmo. «Jamais esta chávena, poluída pelos lábios da desgraça, será usada pelos homens.» Fala, e quebra o recipiente em bocados.
A cerimónia termina; os convidados, dificilmente retendo as lágrimas, despedem-se pela última vez e deixam a sala. A um apenas, o mais próximo e mais querido, é solicitado que fique e testemunhe o fim. Então, Rikiu remove o seu fato-do-chá e dobra-o cuidadosamente sobre a esteira, desvendando assim o imaculado vestido branco de morte que até aqui se ocultara. Com ternura fita a lámina reluzente do punhal fatal, e dirige-se-lhe assim, em versos singulares:
Bemvinda sejas,
Ó espada da eternidade!
Através de Buda
E também de Daruma
Cravaste o teu caminho!
Com um sorriso no rosto, Rikiu entrou no desconhecido.
kakuzo okakura
o livro do chá
trad. fernanda mira barros
biblioteca editores independentes
2007