30 dezembro 2007

remate para qualquer poema (ou qualquer ano, digo eu)





passeou pelos espelhos dos dias
suas clandestinas alegrias
que mal se reflectiram desertaram






ruy belo
todos os poemas I
assírio & alvim
2004




25 dezembro 2007

as maneiras




IV





(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a extrema tarefa de estrangular uma criança.)




«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.




Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido um crime redentor.

Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias, salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.

Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.

Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não saiba.

Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas corrosivas.

Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas. Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma. Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar concretamente o espírito na matéria do tempo.

E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade, nada esconde na manga.

Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.

Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.

A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa.












herberto helder
retrato em movimento (1961-1968)
poesia toda 2
plátano editora
1973









18 dezembro 2007

finita melancolia







todos os cânticos no gume lunar da água
recolhe a noite da remota língua
que te deixo como herança este aro de ferro
esta quilha de ventos apagando a memória
onde a topografia da morte nos aprisionou

a cinza das horas veste o ferido corpo
abandonado na milenar paisagem de grafite
fulgura o indício do magoado desejo
na densa escuridão dos teus passos


l


ergue-se a tarde do mar e sepulta
o corpo que recusa as notícias do mundo
e na corda azulínea das ondas arde o olhar
daquele que de ti se aproxima insone

talvez não haja mais palavras depois
deste últimos versos o rosto esquecido
contra o vidro a unha rasgando o nome
na poeira indica ao cansado navegante
o límpido plâncton da morte


l


o mínimo de tinta dentro da palavra
faz vibrar o eixo do tempo: a casa
onde o rumor procurado se ouve tímido
em teu peito adormecido como um rio

nos confins minerais do corpo nada impede
a floração quente da terra ou a tristeza
que na plúmbea água reacende a vida e
no limiar das obscuras mãos faz tremer
o coração da finita melancolia


l


o olho avança espiando a escuridão
sobre a pele vibra a boca daquele
que fala com uma víbora na língua
seduzindo o que no silêncio escuta

a dor vem como um estilete perfura
o xisto das artérias onde estrelas turvam
os sentidos daquele que escrevendo mata
o que escuta e o que fala

tudo se dilui na cegueira lenta de querer
o que dos corpos a escrita tenta guardar:
pequenos ossos caídos no fogo das emoções


l


os ombros queimados pelos negros sinais
duma idade em que a fala e os gestos
transbordavam cúmplices de um para o outro

levantas por fim a carta recebida ontem
contra a luz fosca da janela descobres
mil presságios na rubra poeira da tarde

regressas depois aos corpos e às cidades
enroscadas em sórdidos quartos onde pernoita
o amargo medo desta década sem paixão


l


o resplendor do sangue sufoca-te a boca
que já não pergunta nem responde nem sorri
e o sopro dos oceanos atordoa-te o corpo
naufragado na fímbria dos meus sentidos

imagina agora uma flor ou um revólver
na hulha nocturna disparando sémen ou
uma bala de ouro perfurando o peito
daquele que soube fingir a felicidade

e no centro dos seus olhos o poço
onde agoniza tua cabeça de cinza
iluminada


l


vivemos hoje num corpo cego e voraz
onde nenhuma cicatriz brilha ou fissura
a misteriosa memória da paixão arruinada

pernoitamos onde nos deixam e o coração
não é um relógio nem um espelho nem
a gazua para abrir venenosos segredos

ninguém dançará de alegria
sobre os vestígios incandescentes
de nossa alma carbonizada










al berto
finita melancolia
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990



16 dezembro 2007

agora que o caminho que devo percorrer








agora que o caminho que devo percorrer
é uma passagem sobre a estrada
que mete medo olhar, porque o abismo
implacável me chama.


agora que a esperança morreu
como um pássaro arredado do seu ninho
por irmãos mais fortes.


agora que é de noite todo o dia,
inverno todo o ano
e a semana só tem segundas-feiras,
onde olhar, onde virar os olhos,
que não encontre os olhos da morte?









amália bautista
estoy ausente
trad. g.s.
pretextos
valência 2004







do sermão de santo antónio aos peixes




Notai, peixes, aquela definição de Deus: Rector maris atque terrae: Governador do mar e da terra, para que não duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com os homens na terra observa também convosco no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina que vos deu o grande doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem (1). Guarde-se o peixe que persegue o mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte, que o engula a ele. Nós o vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo após o bagre, como o cão após a lebre, e não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo Agostinho: Proedo minorisfit proeda majoris (2).

Mas não bastam, peixes, estes exemplos, para que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes. Já que assim o experimentais com tanto dano vosso, importa que daqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em cerco e fazer guerra por tantos modos? Não vedes que contra vós se emalham e entralham as redes; contra vós se tecem as nassas; contra vós se torcem as linhas; contra vós se dobram e farpam os anzóis; contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas adentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com urna guerra mais que civil, e comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim e sereis felizes.

Dir-me-eis (como também dizem os homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele. Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza, Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do mundo não se comiam, sendo assim conveniente e necessário para que as espécies de todos se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais claramente) depois do dilúvio, porque tendo escapado somente dois de cada espécie, mal se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos viveram juntos dentro na Arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação, todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum, que Noé lhe repartia. Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança, por que o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também; ou fazei a virtude sem necessidade, e será maior virtude.

Outra coisa muito geral, que não tanto me desedifica, quanto me lastima, em muitos de vós, é aquela tão notável ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe, arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que assim suspenso no ar, ou lançado no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida! Dir-me-eis que o mesmo fazem os homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e por quê? Porque houve quem os engodou, e lhe fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade, entre os vícios, é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca nas pontas desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois disso, que sucede? O mesmo que a vós. O que engoliu o ferro, ou ali ou noutra ocasião, ficou morto e os mesmos retalhos de pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes, que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue, não há exércitos nem esta ambição de hábitos.

Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honra da e mais ignorantemente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhe passou a era e não tem gasto. E que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra; dá-lhe uma sacadela e dá-lhe outra, com que cada vez lhe sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos; e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça ou na cana, ou no engenho ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as jóias. Pois em que se vai e despende toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua. E para isso se matam todo o ano!

Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e douradas, vestidos que nunca se rompem nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas, não é maior ignorância e maior cegueira deixares-vos enganar, ou deixares-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pôde enganar o mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele pano pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.


(1) «Tem cuidado, não caias nas mãos de um mais potente, quando vais em perseguição de um outro.»
(2) «O ladrão do menor acaba por ser vítima do maior.»




padre antónio vieira
sermões




10 dezembro 2007

cães com nome




Não sei quem te perdeu
se eu se outro alguém
— oiço cães velhos
a ladrar lá fora,
os mesmos cães de sempre
que tu também ouvias
abafadamente pela janela,
com o teu ponto cruz
as minhas telas
os nossos filmes e CDs,
a nossa casa,
o nosso lar,
os nossos cães




damien sevhac



05 dezembro 2007

andrei tarkovsky / os primeiros encontros






cada momento passado juntos
era uma celebração, uma Epifania,
nós os dois sozinhos no mundo.
tu, tão audaz, mais leve que uma asa,
descias numa vertigem a escada
a dois e dois, arrastando-me
através de húmidos lilases, aos teus domínios
do outro lado, passando o espelho.









arsenii tarkovskii8 ìcones
versão de paulo da costa domingos
assírio & alvim
1987




fathom









thomas allen
fathom 2006





02 dezembro 2007

ana merino / carta de um náufrago





Com o consentimento da neve
caminharei devagar.
Alguém haverá à espera junto do fogo
e eu, que estarei cega pelo frio,
farei paragens breves,
sacudirei o guarda-chuva e começarei de novo.
O único segredo é não sentir-se
imensamente cheio de verdades.
Não aceitar nunca os convites
que o nevoeiro
sugere ao fazer ninho com os seus disfarces
de paisagem feliz, de grandes sonhos.
Alguém haverá que diga, perdeu-se,
alguém sairá a procurar-me,
e levará o calor de uma garrafa
onde poderei mandar-te esta mensagem.




ana merino
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000




27 novembro 2007

solidão de papel




não me fales mais
dessa solidão de papel

eu ainda tenho a sede das oliveiras
a paciente sede
dos rios que nunca chegam
dos rios avistados
que não se podem tocar

eu ainda tenho a dor da terra queimada
a fortíssima dor
das chuvas que não voltam
das raízes que morrem
sem poder gritar

o teu nada
é só mais um perfume!

e eu
eu tenho sangue na voz
tenho no peito o grito do lobo
a imensa tristeza de uma lua
que o céu não quis






gil t. sousa
poemas
2001





25 novembro 2007

se numa noite de inverno um viajante




(…)

Quantas vezes,
ao notar que o meu passado começava a pesar-me,
que havia muita gente que pensava ter um crédito para comigo,
material e moralmente,
quantas vezes,
quando o passado me pesava de mais,
tivera a esperança de cortar tudo pela raiz:
mudar de ofício, de mulher, de cidade, de continente
— um continente a seguir ao outro até dar a volta completa —,
de costumes, de amigos, de negócios, de clientela.

Era um erro,
quando percebi era tarde.
Porque deste modo
não fiz senão acumular passados sobre passados
atrás das costas,
multiplicá-los,
aos passados,
e se uma vida me parecia já demasiado cheia
e ramificada e enredada para andar sempre com ela,
imagine-se muitas vidas,
cada uma com o seu passado
e com os passados das outras vidas
que continuam a ligar--se uns aos outros.

Não servia de nada dizer às vezes:
que alívio, ponho o conta-quilómetros a zero,
passo a esponja pelo quadro:
no dia a seguir ao da chegada a um país novo,
já este zero se tornara um número com tantos algarismos
que já não cabia no contador,
que ocupava o quadro de uma ponta à outra,
pessoas, lugares, simpatias, antipatias, passos em falso.

(…)






italo calvino
se numa noite de inverno um viajante
trad. josé colaço
barreiros
(grafia adaptada)
publico
2002





21 novembro 2007

alejandra pizarnik / festa




Desdobrei a minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o meu itinerário
até ao meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E bebi licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.








alejandra pizarnikantologia poética

trad. alberto augusto miranda
edit. o correio dos navios
2002







17 novembro 2007

todas las madres del campo






Todas las madres del campo,
con el dios de lo sencillo,
han vivido trabajando
como el que empuja la tierra
en el olvido del tiempo
sin tener más paz que pena.



Son vientres, sobreesfuerzos
que entre el destino ruedan
por misteriosos azules
alzando besos a ciegas;
fértiles melancolías
enlizadas de belleza
ganando amor por hijo
como fieras fortalezas
que no atravesará el frío
ni subrepticios de guerras.



Cantan a la sombra extraña
un día, con ansia eterna
y hasta con la voz lejana,
para retar a su fuerza;
colmadas de luz por cándidas,
colmadas de miel por tiernas
irán regalando vidas
-al par que las ven estrellas-
por todos los nuevos sitios
en donde la noche espera.



Son musas de la verdad,
del hambre a su sur abierta
diciendo al viento: "Estamos
jurándote la miseria".



Pero, sangre a sangre, alma
a alma, se recuperan
y no maldicen al cielo
ni a la fe que las entierra.








Oswaldo ROSES





12 novembro 2007

este coração devoluto




Conforta-me saber agora
que um dia, não sei bem quando,
terei quem me limpe o granito polido
de folhas velhas e de pó
e talvez me sinta
numa árvore próxima,
num fruto,
numa erva,
e de par em par
formando um elo,
a presença de alguém
que foi sem saber ser,
que perdeu nos dedos os porquês
e amor,
alguém viveu, amor,
alguém sorriu, amor,
alguém se fumou até à morte,
alguém se pensou até à morte,
se debateu de mais até à morte
sobre o sentido das pegadas nestes trilhos
traçando no chão o seu caminho
sem traçar o seu destino.
E amor,
este coração devoluto
deu guarida a sem-abrigo em excesso,
que serviu de garagem e armazém,
de hotel e pensão rasca,
de cabide e asilo, de casa de alterne
e solar de ricos
é agora um sanatório
abandonando-se a si mesmo
no desgaste de dois murmúrios.
Mas amor, olha-me nos olhos
e não chores,
evita que os teus joelhos
sangrem sobre a pedra que me cubra
e sente-me no verde de qualquer musgo
e anda para a frente e sê feliz
tem filhos e filhas e escreve um livro
sobe à tua serra e corre e grita
e sente o eco dos teus gritos,
amor,
não te abandones assim, ao Deus-dará,
não te abandones assim sem sentido
nessa tristeza,
porque amor,
neste coração devoluto
uma morada
uma casa branca
um fruto.




w.d. sevahc





07 novembro 2007

instante




o céu
é a parte mais venenosa do olhar

é um vício inútil
como uma ideia

e leva-me os dias
numa suave cegueira
para os largar
em lugares impossíveis

mais raros
do que o próprio azul
com que me esmaga
de encontro
a
este instante





gil t. sousa
poemas
2001



05 novembro 2007

esta mão que escreve a ardente melancolia





(a carta da paixão)



Esta mão que escreve a ardente melancolia da
idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra a
sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça : essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a carne. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce : eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.











herberto helder
le poème continu
somme anthologique
institut camões / chandeigne
paris, 2002





teresa gil





teresa gil
apanhei-te
acrílico s/tela
100 x 130 cm



xiv bienal de vila nova de cerveira



04 novembro 2007

mas que sei eu







Mas que sei eu das folhas no outono
ao vento vorazmente arremessadas
quando eu passo pelas madrugadas
tal como passaria qualquer dono?

Eu sei que é vão o vento e lento o sono
e acabam coisas mal principiadas
no ínvio precipício das geadas
que pressinto no meu fundo abandono

Nenhum súbito súbdito lamenta
a dor de assim passar que me atormenta
e me ergue no ar como outra folha

qualquer. Mas eu que sei destas manhãs?
As coisas vêm vão e são tão vãs
como este olhar que ignoro que me olha








ruy belo
todos os poemas II
assírio & alvim
2004





02 novembro 2007

estudos sobre o amor



III


[ amores sucessivos]


O mais frequente é que o homem ame várias vezes durante a sua vida. Este facto levanta uma série de questões teóricas, para além das questões práticas que o apaixonado terá de resolver por sua conta. Por exemplo: esta pluralidade de amores sucessivos faz parte da natureza masculina ou será um defeito, um resíduo vicioso de primitivismo, de barbárie? Seria o amor único o ideal, o perfeito, o desejável? Haverá, nesta matéria, alguma diferença entre o homem normal e a mulher normal?

Evitaremos, para já, qualquer tentativa de resposta a tão perigosas questões. Sem tomar a liberdade de opinar sobre elas, consideremos, sem mais, o facto indiscutível de que o homem tem quase sempre muitos amores. Como nos referimos a formas plenas deste sentimento, fica excluída a pluralidade da coexistência e retemos apenas a pluralidade da sucessão.

Não implicará este facto uma dificuldade séria para a tese aqui sustentada, segundo a qual a escolha amorosa revela a natureza essencial da pessoa? Talvez, mas antes convirá lembrar ao leitor a observação trivial de que essa variedade de amores pode ser de duas espécies. Há indivíduos que amam várias mulheres ao longo da sua vida; mas todas elas reproduzem com uma insistência evidente o mesmo tipo de feminilidade. Às vezes, a coincidência é tão grande que as mulheres partilham as mesmas características físicas. Esta espécie de fidelidade larvada, em que através de muitas mulheres se ama, em rigor, uma única mulher genérica, é extraordinariamente frequente e constitui a prova mais directa da ideia que sustentamos.

Mas, noutros casos, as mulheres sucessivamente amadas por um homem, ou os homens preferidos por uma mulher, são, na realidade, de tipo muito diferente. Considerado o facto a partir da nossa ideia, significaria que a natureza essencial do homem teria mudado de urna época para outra. Será possível uma mudança tão radical do nosso ser? É um problema crucial, talvez decisivo, para uma ciência do carácter. Durante a segunda metade do século XIX era habitual pensar que o carácter se formava do exterior para o interior. As experiências da vida, os hábitos que criam, as influências do meio, as vicissitudes do acaso, os estados fisiológicos iriam decantando, como um sedimento, aquilo a que chamamos carácter. Não haveria, portanto, urna estrutura essencial, urna estrutura íntima anterior aos acontecimentos da existência e independente deles. Seríamos feitos, como a bola de neve, da poeira cio caminho que vamos percorrendo. De acordo com este modo de pensar, que exclui um núcleo radical da personalidade, não se põe, evidentemente, o problema das mutações radicais. O chamado carácter modificar-se-ia constantemente: à medida que se vai fazendo vai-se também desfazendo.

Razões de bastante peso, que não é oportuno enumerar aqui, inclinam-me, porém, a acreditar no contrário; parece-me, pois, mais exacto dizer que vivemos de dentro para fora. Antes que sobrevenham as contingências externas, o nosso carácter interior está já formado no essencial, e embora as circunstâncias da existência influam de alguma forma sobre ele, é muito maior a influência que o carácter exerce sobre os acontecimentos. Somos por norma incrivelmente impermeáveis em relação ao que nos acontece quando não está em sintonia com esse carácter inato que, em última instância, somos. Nesse caso dir-se-á também não podemos falar de mudanças radicais. Aquilo que éramos ao nascer, seremos na hora da nossa morte.

Não, não. Esta opinião goza, precisamente, da elasticidade suficiente para se moldar aos factos em toda a sua amplitude. Permite-nos distinguir as pequenas modificações que são introduzidas pelos acontecimentos exteriores no nosso modo de ser das outras modificações mais profundas que não obedecem a motivos casuais, mas à própria natureza do carácter. Eu diria que o carácter muda, se por esta mudança se entender propriamente urna evolução. E esta evolução, como a de qualquer organismo, é provocada e dirigida por razões internas, inerentes ao próprio ser, inatas, como o seu carácter. O leitor terá certamente a impressão de que por vezes as transformações daqueles que lhe são próximos lhe parecem frívolas, injustificadas, quando não decorrentes de motivos inconfessáveis, mas que noutros casos a mudança possui toda a dignidade e todo o sentido de um crescimento. É como o rebento que se torna árvore, a nudez que precede a renovação das folhas, o fruto que se segue à fronde.

Eis, pois, a minha resposta à objecção precedente. Há pessoas que não evoluem, caracteres relativamente estagnados (em geral, os de menos vitalidade, o protótipo do «bom burguês»). Jamais modificarão o seu esquema de escolha amorosa. Mas há indivíduos de carácter fecundo, rico de possibilidades e de destinos, que esperam ordeiramente o seu momento de explosão. Quase se poderia afirmar que esta é a norma. A personalidade sofre ao longo da vida duas ou três grandes transformações, que são como estádios diferentes de uma mesma trajectória moral. Sem perder a solidariedade, mais ainda, a homogeneidade fundamental com os nossos sentimentos passados, um belo dia percebemos que entrámos numa nova fase ou modulação do nosso carácter. É a isso que chamo uma mudança radical. Nada mais, mas também nada menos. O nosso ser profundo parece, em cada uma destas duas ou três fases, rodar uns graus sobre si mesmo, deslocar-se para outro quadrante do Universo e orientar-se para novas constelações.

Não será um acaso sugestivo que o número de amores verdadeiros pelo qual um homem normal costuma passar seja praticamente sempre o mesmo: dois ou três? E, além disso, que cada um desses amores seja cronologicamente localizável em cada uma destas fases do carácter? Não me parece, pois, exorbitante ver na pluralidade de amores a mais flagrante confirmação da doutrina aqui insinuada. A preferência por um novo tipo de mulher, corresponde rigorosamente a um novo modo de sentir a vida. O nosso sistema de valores alterou-se em maior ou menor grau — mantendo sempre uma fidelidade latente com o antigo — qualidades que antes não estimávamos, que talvez nem se quer percebêssemos, passam para primeiro plano, e um novo esquema de selecção erótica interpõe-se entre o homem e as mulheres que passam.

Só um romance oferece instrumental adequado para ilustrar esta ideia. Eu li extractos de um romance, que talvez nunca venha a ser publicado, cujo tema é, precisamente, este: a evolução profunda de um carácter masculino vista através dos seus amores. O autor — e é isso que me parece interessante — insiste também em mostrar a continuidade do carácter ao longo das suas transformações e os seus contornos divergentes, esclarecendo assim a lógica viva, a génese inevitável destas transformações. E uma figura de mulher reúne e concentra em cada etapa os raios dessa vitalidade em evolução, como essas figuras espectrais que se conseguem formar com luzes e reflectores sobre uma atmosfera densa.




ortega y gasset
estudos sobre o amor
trad. de elsa castro neves
relógio d´água
2002






30 outubro 2007

hesitação





a árvore está completa
e nua
e vai

sobe cor a cor
o olhar do homem
que hesita

do homem
que a si próprio
multiplica os dias

e os firma
no indiferente cair
das folhas

um a um
os dias e as folhas
na paisagem do homem

que a árvore
se aplica
a ceifar

como se a morte
fosse o consumar
dos sinais

de um ser
flor ou homem

eu
ou paisagem

o homem está completo
e nu
e parte

vai
esbate-se
debate-se

no desígnio
expresso
de um tempo

de um silêncio
que sem notícia
chega





gil t. sousa
poemas
2001






29 outubro 2007

gunnar ekelöf /desperta-me no sono em ti



Desperta-me no sono em ti
Desperta os meus mundos por ti
Acende as minhas estrelas mortas, atrai-as para junto de ti.
 
Sonha-me para lá do meu universo
Conduz-me à morada das chamas
Faz com que eu nasça, para mim, morre-me para eu estar junto de ti.
 
 
Mais perto, mais perto de ti
Mais perto do meu lar de nascimento
Aquece-me, aperta-me para estar junto de ti.
 
 
 
 
gunnar ekelöf
poema transcrito em “dependência”
no livro de ingmar bergman “lágrimas e suspiros”

trad. do francês de armando da silva carvalho
assírio & alvim
2002

 
 
 
 
 
 

27 outubro 2007

pensar a Europa




91 Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. O cerco aperta-se de todas as civilizações, das que sobretudo sentem em si um pólo unificador. Imaginá-la inundada do islamismo ou tingida de preto de uma inundação africana ou asiática. Imaginá-la surpreendida no entretém do seu vazio. Pensá-la servil como os escravos pedagogos em Roma, a servir de ilustração aos seus novos senhores. Ou pensá-la coalhada de electrodomésticos e computadores, na ausência de uma alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. Pensá-la dessorada, fluidificada, viscosa na indiferenciação total do seu ser. Pensar a Europa. Chorar sobre ela.




vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




24 outubro 2007

põe-se a questão de...


















O que é grave
é nós sabermos
que depois da ordem
deste mundo
uma outra existe.

Que outra?

Não o sabemos.

O número e a ordem das suposições possíveis
é neste campo
justamente
o infinito!

E o infinito o que é?

Não sabemos exactamente o que seja.

É uma palavra
que nós usamos
para designar
a abertura
da nossa consciência
perante a desmedida
possibilidade,
infatigável e desmedida.

E o que vem a ser exactamente a consciência?

Não sabemos exactamente o que seja.

É o nada.

Um nada
de que nos servimos
quando não sabemos qualquer coisa
para designar
qual a faceta que desconhecemos
e então
falamos em
consciência,
pelo prisma da consciência,
quando há cem mil outros prismas.

E então?

Parece que a consciência
estaria em nós
ligada
ao desejo sexual
e à fome;
mas poderia
perfeitamente
não ter qualquer ligação
com isso.

Diz-se,
é possível dizer,
há quem diga
que a consciência
é um apetite,
o apetite de viver;

e imediatamente
a par do apetite de viver,
é o apetite de comida
o que imediatamente nos vem ao espírito;

como se não houvesse gente que come
sem o mínimo apetite;
e gente que tem fome.

Pois também isso
acontece
ter fome
sem apetite;

e então?

Então

o espaço do possível
surgiu-me um dia
como um grande peido
que eu tivesse dado;
mas nem o espaço,
nem o possível
sabia eu exactamente o que fossem,
nem nisso sentia necessidade de pensar;

eram palavras
inventadas para definirem coisas
que existiam
ou não existiam
frente à
premente urgência
de uma necessidade:
a de suprimir a ideia,
a ideia e o seu mito
e em seu lugar instituir
a manifestação tonante
desta explosiva necessidade:
dilatar o corpo da minha noite interna,

no nada interno
do meu eu

que é noite,
nada,
irreflexão,

mas que é explosiva afirmação
de que há
algo
a que dar lugar:

o meu corpo.

Mas então
reduzir o meu corpo
a um gás fétido?
Dizer que tenho um corpo
porque tenho um gás fétido
em formação
dentro de mim?

Não sei
mas
sei que

o espaço,
o tempo,
a dimensão,
o devir,
o futuro
o porvir,
o ser,
o não ser,
o eu,
o não eu,

nada são para mim;

mas há uma coisa
que é qualquer coisa,
uma só coisa
susceptível de ser qualquer coisa,
uma coisa que eu sinto
por ela querer

SAIR:

a presença
da minha dor
de corpo,
a presença
agressiva
jamais cansativa
do meu
corpo;

e por mais que me apertem com perguntas
e que eu me esquive a todas,
chego a um ponto
em que me vejo constrangido
a dizer não,

NÃO

portanto
à negação;

e esse ponto
é quando me apertam,

quando me amolgam
e me dão tratos
até de mim sair
o alimento,
o meu alimento
e o seu leite,

e então que fica?

Fico eu sufocado;
E não sei que acção será essa
Mas apertando-me assim com perguntas
até à completa ausência,
ao nada
da questão,
apertaram-me
até sufocar
em mim
a ideia de corpo
e de ser um corpo,

e foi então que eu senti o obsceno

e que me peidei
de irrisão
e de excesso
e de revolta
pela minha sufocação.

É que me apertavam
contra o meu corpo
e contra o corpo

e foi então
que eu fiz ir tudo pelos ares
porque no meu corpo
não se toca nunca.






antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
trad. luiza neto jorge
& etc
1975






22 outubro 2007

o norte da europa




I

O Pai Natal coberto de lantejoulas ia subindo a ladeira com um ar circunstancial. O cumprimento que me dirigiu, corrigido por um gesto de perfeita cortesia, era tão naturalmente rico de proteínas que se comia à mão, em fato de baile.

Os dias iam correndo pela mão daquela cujo nome se vai ocultar na Península da Gata, a norte do Carvoeiro.

«É assim que cumpres?», perguntou Júlia Bahamas. Respondi que não era ainda tempo de colher maçãs e que também as uvas estavam por amadurecer. E acrescentei, exclamativamente:

«Ó Estações!»

Mas aí já ninguém ouvia ninguém, o círculo apertava-se coberto de espuma.


II

Estava tudo tremido ao longo do mar e a gente sentia que o sol nos tocava com força. Levei nos braços alguma terra verde. Lá havia muito sal. No seio daquela estátua mutilada no ventre pela cruz vermelha do asco mais inocente.

Teve de vestir a bata branca, mesmo sabendo que o anestésico não chegava para o bolo que te pediram e que eu comi durante três dias a mergulhar num monte de areia triste, lá onde a vaga me comia. «Não implores», disse, e curvei a cabeça até lhe beijar os pés que outros haviam já beijado outrora, à saída dos teatros que dão para a Grande Perspectiva Nevsky. Distribuídos os gorros aos transeuntes, regressavam a casa, quando não voavam atrás da troika da Condessa Nemus, num grande ladrar de cães com manguitos atrás das orelhas e muitas bocas abertas a ver. Mas que grande porra, disse o velho, e ele sabia que era isso assim tal e qual e que não havia mais nada para dizer nunca mais. E porque tudo me era indiferente desatei os sapatos e corri de pés nus pela areia dentro a bater palmas e a uivar como um lobo.


III

Era principalmente música o que nos chamava pois ninguém tinha posto de radiofonia naquela zona que era a mesma mas repetida de tal forma que a noite nos surpreendeu com uma cor ligeiramente azulada nos tornozelos. Chamado o médico e retiradas as grades começámos a subir. A primeira nuvem, ligeiramente descaída na ponta, não nos deu o necessário informe, mas já a segunda, muito bem pintada, indicava o norte, o sul, o número do telefone, a certidão de idade e o Grande Beijo, praticado de pernas para o ar e em estado de nobreza absoluta.

Um círculo vicioso. Estavam lá as cores todas. E gritámos. E ainda corria alguém — vago — à frente dos nossos gritos-gemidos. Rosa — eu sei que havia uma cor-de-rosa. Como no tecto da casa passavam aves e arneses, no fim do verão, quando as chuvas começam. O mesmo fenómeno, afinal.





mário cesariny
primavera autónoma das estradas
assírio & alvim
1980





filipa gonçalves







filipa gonçalves
sem nome (8)
caneta s/papel
150 x 180 cm


xiv bienal de v. n. cerveira
as novas cruzadas



21 outubro 2007

prisioneiros





A pouco e pouco o dilúvio entrou e fechou a porta atrás de si
A dor que hesitara entre o corpo e o espírito
pousou os cabelos na fronte e deixou-se ir com o dilúvio
Já dormiu nos pátios, uma fresta de muro (mundo) íngreme
era a sua fascinação nocturna

O impossível avançou para ele e passado ficou
cheio de partes dispersas e o princípio de um ventre mosaico
no vitral da sala
As imagens levam em si memórias silenciosas
em troca de um pântano entontecido, uma mistura açucarada
que já ninguém lembra entoando cânticos antigos
e estendendo os braços extinguem a luz

Reflectia, sentia, verticalmente repuxado pelos planos que
antes encenara, empurrando para a frente
o tecto do corpo longo de um riso quadriculado
manhãs ínfimas da extremidade de troncos humanos

procuram na quebra dos braços a transpiração de outras
mãos
sobre as suas, oferecem-se à ternura dos
tormentos misteriosos e aí permanecem

vestem cinza sóbrio e elegante: casaco cinza,
calça cinza, gravata cinza
Formam uma mancha cinza na obscuridade
constroem
uma rua baça e escura com escadas de latão grosseiro, onde
um degrau leva as mãos amarradas por ser um degrau solitário
no início de uma tarde de Inverno

por detrás de cada silêncio nasce um homem
de pés descalços e traz um som áspero que se renova
ciclicamente


A muralha vai
de um
ao outro extremo da terra






ângela canez
oficina de poesia
nr. 3 Junho 2004
coimbra






18 outubro 2007

mestres-do-chá




Na religião, o Futuro está atrás de nós. Na arte, o Presente é o eterno, O mestre-do-chá defendia só ser possível a verdadeira apreciação artística aos que a encaram como uma influência viva. Assim, procuraram regular o quotidiano das suas vidas pelo elevado padrão de requinte que prevalecia na sala-de-chá. Fosse qual fosse a circunstância, havia que manter a serenidade de espírito, e a conversa deveria conduzir-se de modo a nunca perturbar a harmonia da ambiência. O corte e a cor do traje, a pose do corpo e a maneira de caminhar podiam ser transformados em expressão da personalidade artística. Estes preceitos não deviam ignorar-se com ligeireza, pois até se tornar a si próprio belo ninguém tem direito a aproximar-se da beleza. Assim, o mestre-do-chá esforçava-se por ser algo mais que o artista — a própria arte. Era o Zen do esteticismo. A perfeição está em todo o lado, basta decidirmos reconhecê-la. Rikiu adorava citar um velho poema que diz: «Aos que anseiam apenas pelas flores, eu mostraria com agrado a primavera desabrochada que subsiste nos botões obstinados dos montes cobertos de neve.»

Foram de facto diversas as contribuições dos mestres-do-chá para a arte. Revolucionaram completamente a arquitectura clássica e as decorações interiores, e estabeleceram o novo estilo que descrevemos no capítulo sobre a sala-de-chá, um estilo a cuja influência se sujeitaram inclusivamente os palácios e mosteiros erigidos depois do século dezasseis. O versátil Kobori Enshiu deixou exemplos notáveis do seu génio na vila imperial de Katsura, nos castelos de Nagoya e Nijo, e no mosteiro de Kohoan. Todos os jardins célebres do Japão foram planeados pelos mestres-do-chá. É provável que a nossa cerâmica jamais atingisse aquela altíssima qualidade de excelência se os mestres-do-chá não lhe houvessem emprestado a sua inspiração, uma vez que a manufactura dos utensílios utilizados na cerimónia-do-chá exige o maior dispêndio de engenho por parte dos nossos ceramistas. Os Sete Fornos de Enshiu são sobejamente conhecidos de todos os estudiosos da cerâmica japonesa. Muitos dos nossos tecidos trazem os nomes dos mestres-do-chá que lhes conceberam as cores ou o padrão. Em verdade, é impossível encontrar algum sector da arte em que os mestres-do-chá não tenham deixado marcas do seu génio. Na pintura, e nas lacas, parece quase supérfluo mencionar o imenso serviço que prestaram. Uma das maiores escolas de pintura deve a sua origem ao mestre-do-chá Honnami-Koyetsu, afamado também como artista lacador e ceramista. Perto da sua obra, a criação esplêndida do seu neto, Koho, e dos seus sobrinhos-netos, Korin e Kenzan, quase cai na penumbra. Toda a escola Korin, como geralmente é designada, é expressão do Cháismo. Nos traços largos desta escola parecemos encontrar a vitalidade da própria natureza.

Por maior que tenha sido a influência dos mestres-do-chá no campo da arte, ela não é nada quando comparada com a que eles exerceram na conduta da vida. Sentimos a presença dos mestres-do-chá não apenas nos usos da sociedade polida, mas também no arranjo de todos os nossos detalhes domésticos. Muitos dos nossos pratos delicados, bem como a maneira de servirmos os alimentos, são invenções suas. Ensinaram-nos a vestir somente trajes de cores sóbrias. Instruíram-nos no espírito próprio para nos aproximarmos das flores. Acentuaram o nosso amor natural pela simplicidade, e mostraram-nos a beleza da humildade. Na verdade, através dos seus ensinamentos o chá entrou na vida do povo.

Os que, entre nós, desconhecem o segredo de regular adequadamente a sua existência neste mar tumultuoso de problemas tolos a que chamamos vida, estão num estado de tristeza constante, embora tentem em vão parecer felizes e contentados. Vacilamos ao tentar manter o nosso equilíbrio moral, e vemos prenúncios da tempestade em cada nuvem que paira no horizonte. Contudo, há alegria e beleza na espiral das vagas que se encapelam rumo à eternidade. Por que não entrar no seu espírito, ou, como Liehtse, cavalgar o próprio furacão?

Quem apenas viveu com o belo pode morrer em beleza. Os últimos momentos dos grandes mestres-do-chá foram de um requinte sofisticado tão completo quanto o haviam sido as suas vidas. Procurando constantemente harmonizar-se com o grande ritmo do universo, estavam sempre preparados para entrar no desconhecido. O «Ultimo Chá de Ríkiu» evidenciar-se-á para sempre como o auge da grandiosidade trágica.

A amizade entre Ríkiu e o Taiko Hideyoshi vinha de há muito, e era elevada a estima em que o grande guerreiro tinha o mestre-do-chá. Mas a amizade de um déspota é sempre uma honra perigosa. Vivia-se uma época fértil em traições, e os homens não confiavam sequer nos seus parentes mais próximos. Rikiu não era um cortesão servil, e ousara amiúde discordar do seu feroz patrono. Tirando partido da frieza que existia há algum tempo entre o Taiko e Rikiu, os inimigos deste último acusaram-no de estar implicado numa conspiração para envenenar o déspota. Foi segredado a Hideyoshi que a poção fatal lhe seria administrada com uma chávena da beberagem verde, preparada pelo mestre-do-chá. Para Hideyoshi a suspeição era terreno suficiente para execução imediata, e não houve apelo que demovesse a vontade do irado governante. Um só privilégio foi concedido ao condenado — a honra de morrer pela sua própria mão.

No dia destinado à autoimolação, Rikiu convidou os seus principais discípulos para uma última cerimónia-do-chá. Enlutados, na hora estipulada os convidados encontraram-se no alpendre. Quando olham para o caminho do jardim as árvores parecem estremecer, e no restolhar das folhas escutam-se murmúrios de fantasmas desabrigados. Como sentinelas solenes perante os portões do Hades estão as lanternas de pedra cinzenta. Uma onda de incenso raro solta-se da sala-de-chá; é o chamamento que ordena aos convidados que entrem. Um a um avançam e tomam os seus lugares. No Tokonoma está pendurado um kakemono um escrito maravilhoso de um monge antigo, discorrendo sobre a evanescência de todas as coisas terrenas. A chaleira cantante, à medida que ferve sobre o braseiro, soa como uma cigarra derramando os seus lamentos ao Verão em declínio. Pouco depois o anfitrião entra na sala. Um a um são servidos de chá, e um a um esvaziam silenciosamente as suas chávenas, sendo o anfitrião o último a fazê-lo. De acordo com a etiqueta estabelecida, o convidado principal pede agora permissão para examinar o equipamento-do-chá. Rikiu dispõe frente a eles os diversos artigos, com o kakemono. Tendo todos expressado admiração pela sua beleza, Rikiu presenteia com um destes artigos cada um dos convivas reunidos, como lembrança. Só a malga reserva para si mesmo. «Jamais esta chávena, poluída pelos lábios da desgraça, será usada pelos homens.» Fala, e quebra o recipiente em bocados.

A cerimónia termina; os convidados, dificilmente retendo as lágrimas, despedem-se pela última vez e deixam a sala. A um apenas, o mais próximo e mais querido, é solicitado que fique e testemunhe o fim. Então, Rikiu remove o seu fato-do-chá e dobra-o cuidadosamente sobre a esteira, desvendando assim o imaculado vestido branco de morte que até aqui se ocultara. Com ternura fita a lámina reluzente do punhal fatal, e dirige-se-lhe assim, em versos singulares:


Bemvinda sejas,
Ó espada da eternidade!
Através de Buda
E também de Daruma
Cravaste o teu caminho!

Com um sorriso no rosto, Rikiu entrou no desconhecido.






kakuzo okakura
o livro do chá
trad. fernanda mira barros
biblioteca editores independentes
2007