18 setembro 2023

leopoldo maría panero / o suplício

 



 

 
A febre assemelha-se a Deus.
A loucura: a última oração.
Durante muito tempo bebi de um estranho cálice
feito de álcool e fezes
e vi na maré da taça os peixes
atrozmente brancos do sonho.
E ao levantar a taça, digo
a Deus, ofereço-te este suplício
e esta história nascida do sangue
que de todos os olhos brota
como se me ordenasse que beba, como se me ordenasse que morra
para que quando no fim não for ninguém
seja igual a Deus.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




17 setembro 2023

bernardo soares / floresta

 
 
 
Mas ah, nem a alcova era certa — era a alcova velha da minha infância perdida! Como um nevoeiro, afastou-se, atravessou materialmente as paredes brancas do meu quarto real, e este emergiu nítido e menor da sombra, como a vida e o dia, como o passo do carroceiro e o som vago do chicote, que põem músculos de se levantar no corpo deitado da besta sonolenta.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




16 setembro 2023

herberto helder / teoria sentada

 
 
V

Muitas canções começam no fim, em cidades
estranhas. Sei
que a felicidade dos meses é ao meio e a força
de um homem é ao meio
da vida pura. Mas são muitas
as canções que começam no fim.
É no fim que secamente falam do ardor
ao meio
da cidade e da existência que se volta
para si, de rosto — tremente
e verde de sua ilusão. Canções cada vez
mais no seu fim, tão secas voltadas
imenso para trás. Para onde
é todo o poder. Conheço
horríveis canções cor de coisas transtornadas.
Canções ainda repletas de peixes, flechas, dedos
agudos abertos em torno do sexo.
Começam no fim do seu pensamento.
São para morrer na véspera, com um lento
pavor no coração e o povo
atónito por todos os lados. Porque o povo
não sabe que um homem morre antes da sua
última canção.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
teoria sentada
assírio & alvim
1996




15 setembro 2023

louise glück / vésperas

 



 
Sei o que planeavas, o que querias fazer ao ensinar-me
a amar o mundo, a fazer com que eu não pudesse
nunca abandoná-lo, afastá-lo para sempre –
ele está em todo o lado: se fecho os olhos,
o canto dos pássaros, o perfume de lilás na Primavera nascente, o
     perfume das rosas de Verão:
e tu queres tirar-mo, queres levar cada flor, cada união à terra –
porque haverias d me ferir, porque haverias de me querer
desolada no final, a menos que me quisesses tão faminta de esperança
que eu recusaria ver que finalmente
nada me fora deixado em herança, acreditando antes que
no fim de tudo só tu me foras deixado.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




14 setembro 2023

andrés trapiello / o rio

 
 
Para mim que encanto tem um rio
com barcos na margem.
Estar junto da água e ver correr
voluptuosas nuvens na sua ampla corrente.
Arranjar um sítio aí, entre as ervas
azuladas, um vão donde ver
como é coisa pouca a nossa vida
e não ser vistos. E olhar os barcos
esticando e distendendo
uma corda de esparto no verde
caudal, com a água da chuva
apodrecendo nas suas tábuas. Esperar
a tormenta e contemplar o céu
vagabundo e anil. Ouvir o ruído
de gotas no rio, seus castelos
como tímbalos delicados.
E pensar, se se puder,
em quem amamos muito
ou se então não amamos, não pensar,
não pensar, não pensar.
E voltar os nossos olhos
para esse mudo decurso, e vazios
ficar sem que saibamos
quanto tem de sonho
o frio e a dor
e esses barcos sem gente
uns nos outros batendo
ou se poderemos despertar um dia.
 
 
 
andrés trapiello
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



13 setembro 2023

rui lage / alcançado

  

Não vem do sol a sombra nem vem do chão,
Nem do choupo mas das horas que aguardam
Um luto antecipado no coração
Que tantas primaveras retardam.
 
Palavras desanimam na esplanada,
Sucumbem à chama lenta do arado:
Estacam, como se fosse cair geada
Na vida de um charco superlotado
 
Os matraquilhos, a estrela menina
Comprimidos nas folhas dos herbários
- O licor surpreendido nos armários!
 
Crianças que eram açúcar nos figos
- Poeira enfim no largo da igreja –
Então percorrendo montes floridos.
 
 
 
rui lage
antigo e primeiro
quasi
2002





12 setembro 2023

rui costa / breve ensaio sobre a potência

 
 
3
nenhum homem que atravesse
o eixo mais ao centro. a espuma
produz-se onde a saudade é uma
cabeça filtrada pla desgraça.
formam-se ideias na direcção da
cor: os peixes acreditam que o
sal é uma excrescência da luz.
 
 
 
rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017
 



11 setembro 2023

rui caeiro / aos poetas…

 
 
 
Aos poetas não invejar coisíssima nenhuma: a poesia que fazem, a inspiração que podem ou o mau vinho que bebem. Nem as vidas que tiveram, por muito adjectivadas ou desconhecidas que fossem. Nada. pois tudo é para esquecer: os versos, a inspiração, os álcoois e, já agora, as vidas também. E a somar a isso as dores que sentiram, depreende-se que muitas e também os alívios, desde os mais nobres até aos mais soezes, ou vice-versa.
 
 
 
rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




10 setembro 2023

maria gabriela llansol / o começo de um livro é precioso

 
 
202
 
É frequente sentar livros na cadeira, e eles
Se isolarem das outras espécies que povoam
O quarto. Começa aí a simbiose entre livros
E autores. Intuindo que a paisagem é o vigia
Que a cria, faz-lhes perguntas a que os
Livros dão resposta ______ «Qual foi a tua problemática?»
Se sai com alguns, vai à procura da sua
Imagem-fonte, sem esquecer que todos eles
Se sentaram em bancos de jardim. Com os
Livros já fechados, começa a ler _____ deixa
Que os autores se evadam por vontade própria,
Suas missivas distribuídas pelo quarto. Quando
Eu partir, como livro arrumado amorosamente
No seio do legente, espero que este por generosidade
Me deixa ir.
 
 
 
maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003
 



09 setembro 2023

maria alberta menéres / somos um areal imenso

 


 
Somos um areal imenso
e uma gota de orvalho no mar
 
Uma terra gretada e insubmissa
onde os cardos florescem
 
E uma triste, suavíssima razão
de névoa ou de soluço.
 
Perdemos o presente cada dia
povoando outros dias.
 
Que o futuro deslumbra!
É um povo sem fim
 
e uma triste, suavíssima razão
de pele e de penumbra.
 
 
 
maria alberta menéres
o robot sensível, 1961
poesia completa
porto editora
2020
 




08 setembro 2023

rené char / argumento

 



 

Como viver sem desconhecido diante de nós?
 
Os homens de hoje em dia querem que o poema seja à imagem das suas vidas, com tão poucas considerações, tão pouco espaço, consumidas de intolerância.
 
Porque já não lhes é permitido agir supremamente, nessa preocupação fatal com a auto-destruição através dos seus semelhantes, porque a sua riqueza inerte os refreia e s amarra, os homens de hoje em dia, debilitado o instinto, perdem, muito embora se conservem vivos, a própria poeira do sue nome.
 
Nascido do chamamento do porvir e da angústia da retenção, o poema, elevando-se do seu poço de lama e de estrelas, testemunhará, quase silenciosamente, que nada havia nele que não existisse verdadeiramente noutro sítio, neste rebelde e solitário mundo de contradições.
 
 
  
rené char
furor e mistério
o poema pulverizado (1945-1947)
trad. margarida vale de gato
relógio d’água
2000



07 setembro 2023

philippe soupault / estrada

 
 
Vi a lembrança da sua voz empoleirar-se
O meu corpo embalava os meus pensamentos
Os fios telegráficos fugiam
 
O choque de um calhau tocou o meio-dia
 
 
philippe soupault
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021






06 setembro 2023

andre breton / antes a vida

 




 
Antes a vida que estes prismas sem espessura mesmo se as cores são mais puras
Antes ela que esta hora sempre enevoada estas terríveis carruagens de labaredas frias
Estas pedras sorvadas
Antes este coração engatilhado
Que este charco de murmúrios
Este pano branco a cantar ao mesmo tempo na terra e no ar
E esta bênção nupcial que une o meu rosto ao da total fatuidade
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida com os seus lençóis de esconjuro
As suas cicatrizes de fugas
Antes a vida antes esta rosácea no meu túmulo
A vida da presença só da presença
Onde uma voz diz Estás aí outra responda Estás aí
Eu pobre de mim não estou
E mesmo quando jogarmos ao que fazemos morrer
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida antes a vida Infância venerável
A faixa que parte dum faquir
Parece o escorregadouro do mundo
Não importa que o sol não passe de um destroço
Por pouco que o corpo da mulher se lhe compare
Pensas tu ao contemplar a extensão da trajectória
Ou tão-só ao fechar os olhos sobre a tormenta adorável que se chama a tua mão
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida com as suas salas de espera
Mesmo sabendo não ir entrar nunca
Antes a vida que estas estâncias termais
Onde o serviço é feito por coleiras
Antes a vida adversa e longa
Quando aqui os livros se fecharem sobre estantes menos suaves
E lá longe fizer mais que melhor fizer livre sim
                                                        Antes a vida
 
Antes a vida como fundo de desdém
A esta cabeça já de si tão bela
Como antídoto da perfeição aspirada e temida
A vida a maquilhagem de Deus
A vida como um passaporte virgem
Ou uma vilória como Pont-à-Mousson
E como tudo foi dito já
                                                        Antes a vida
 
 
Claire de Terre (1923)
 
 
 
andre breton
claire de terre (1923)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994