20 fevereiro 2023

juan vicente piqueras / história universal

 



 
Um homem nasce chora cresce ri
sofre e faz sofrer caminha canta
tem sede fome frio medo pressa
perde-se transborda arde sorri.
 
Um homem sozinho no meio da noite
assobia para amansar os monstros que o habitam.
 
Abraça empurra mata beija morre
cansa-se de si mesmo apaixona-se
dá-se à vida sabe que se acaba
que escorre o que é por entre os dedos.
 
Um homem olha o céu as nuvens e diz-se
em silêncio que breve
que bela e fugidia é, foi, a vida.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019




19 fevereiro 2023

josé de almada negreiros / itinerário sobre o joelho

 


 

Nascer
vir a este mundo
é acordar legível do sono eterno.
Maravilhoso (e é) que seja acordar
traz mistura pessoal:
preferia não ter nascido.
Fazemos parte de animal perpétuo
que exige o nosso serviço dele.
Mas um é passageiro
tem que inventar optimismo e graça
e permanecer acordado o animal perpétuo.
Nascemos órgão e seremos, afinal, o todo do organismo.
Personalidade não é senão o ímpeto para nos deixarmos de nascidos intactos
é condição primeira do ser vivo eterno que somos.
Nasce segunda vez o que morre a morte primeira.
Nasce-se segunda vez o ser vivo eterno que somos.
Iremos por onde não há adesão possível à segunda vida
porta do eterno.
Depois é o silêncio que fala
a paz que nos esperava.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




18 fevereiro 2023

jorge luís borges / bairro norte

 
 
Esta declaração é um segredo
vedado plo descuido e a inutilidade,
segredo sem mistério ou juramento
que apenas é assim por indiferença:
hábitos de homens e de anoiteceres detêm-no
e preserva-o o esquecimento, que é o modo mais pobre do mistério.
 
Houve um tempo em que o bairro era amizade,
um caso de aversões e afectos, como as outras coisas do amor;
mal persiste essa fé
nuns factos distantes que hão-de morrer:
na milonga que lembra as Cinco Esquinas,
no pátio como firme rosa sob os altos muros,
no letreiro desbotado que ainda diz La Flor del Norte,
nos rapazes de guitarra e baralho de cartas,
na trôpega memória de algum cego.
 
Este disperso amor é o nosso desanimado segredo.
 
Uma coisa invisível faz perecer o mundo,
um amor não mais amplo que uma música.
O bairro afasta-se de nós,
as baixas varandinhas de mármore não enfrentam o céu.
O nosso carinho acobarda-se em tédios,
e é outra a estrela de ar das Cinco Esquinas.
 
Mas sem ruído e sempre,
em coisas mudas e perdidas, como estão sempre as coisas,
no comerciante de borracha, com o seu listrado céu de sombra,
na taça que recolhe o primeiro e o último sol,
perdura este facto amistoso e prestável,
a lealdade obscura que os versos declaram:
o bairro.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. I
caderno san martín  (1929)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




17 fevereiro 2023

roberto juarroz / também traímos a água

 



 
Também traímos a água.
 
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
 
Novamente perdemos a mensagem,
as vogais abertas
da linguagem da água,
a sua inaudita transparência palpável.
 
Nem sequer soubemos
beber a transparência.
Beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é começar
a aprender o invisível.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018




16 fevereiro 2023

oscar wilde / a minha voz

 



 
Neste veloz mundo moderno, inquieto,
Tivemos tudo o que quisemos – eu e tu
E o nosso barco tem agora mastros nus,
E provisões já não nos restam.
 
E, de chorar, minha alegria me abandona,
A minha face empalidece prematura,
A minha boca rubra é curva de amargura,
E a Ruína é o dossel da minha cama.
 
Mas para ti toda esta vida tão repleta
Foi lira só, ou alaúde, ou leve encanto
De violas, ou como quando canta o mar
Que dorme numa concha, e o eco se repete.
 
 
 
oscar wilde
poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2005




15 fevereiro 2023

yorgos seferis / eurípedes, ateniense

 



 
Envelheceu entre o fogo de Troia
e as pedreiras da Sicília.
 
Gostava das cavernas no areal e dos desenhos
          do mar.
Viu as veias dos homens
como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias;
tentou rompê-la.
Era sibilino, seus amigos poucos;
veio o tempo em que os cães o devoraram.
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




14 fevereiro 2023

fernando guimarães / uma planta nasce

 



 

 
Uma planta nasce dividida num vaso. Metade das suas folhas
pertence-me; a outra é de alguém que desconheço. Ambos
estamos ali a ver o mesmo? É no meio que principia a erguer-se
um caule inexistente. Seremos os dois um só? E olhamos
para o que fica dividido até sabermos onde está completa a planta.
 
 
 
fernando guimarães
relâmpago
revista de poesia 15
fundação luís miguel nava
outubro 2004





13 fevereiro 2023

manuel francisco t. / fevereiro, 9



 

Visitam capelas no nevoeiro
a manhã assim os aconselha na
margem de rios gelados os santos a eles
se assemelham recolhidos restos na talha.
 
O calção do menino, a espia doce
que cais conhecem a biografia do
sonho: três poemas, um dia
de chuva nevoeiro pedras sob a pele
 
Visitam túmulos quando acordam.
Os anjos assim os resguardam os círios
a toalha e uma nudez de fra angelico
 
quando já homem à terra se dispôs
a cair para conhecer o lento
carvão da alma, dias de fevereiro
 
 
 
manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990


 


12 fevereiro 2023

pedro tamen / annie besant

 
 
Os falsos deuses sentaram-se em redor
Tal como nas mesas de pé-de-galo
foi preciso chegar aos últimos extremos
foi preciso que o ar ardesse de murmúrios
para que o lápis começasse a mover-se
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
não há morte dizia
de um lado e outro do papel
são as mesmas vozes o trovão
é o mesmo atroando os ouvidos pois
de um lado e outro do papel dizia
não há morte
Morte há porém no papel onde o lápis
soprado se moveu
Só no papel
só no papel mortalha
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 



11 fevereiro 2023

ruy belo / metamorfose

 



 
Ó homem que passas tranquilo na rua
atrás de qualquer próximo perfume
e chegas a casa sem incidentes
ó homem que tens à espera de ti
virada a esquina da rua e do tempo o teu próprio rosto
não tenhas pena de quem morre
de árvore para árvore
e é diferente no princípio e no fim da rua
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates
assírio & alvim
2004



10 fevereiro 2023

paul bowles / sidi amar no inverno

 



 

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.
 
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
 
 
                                                                              1935
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 




09 fevereiro 2023

regina guimarães / outras gravidades

 




 
Da futura nudez se vestem os factos
mas fio a fio se desnudam horizontes
imitando o que morre ou mata
pois ao nó na garganta seremos reduzidos
se acaso nos julgarem com distinta lata
 
Contudo enlameada vou e voo
sob o signo da pesada lei das asas
acima dessa forca e das minhas forças
abraçando a precisão das bancarrotas
que paira sobre os espírito das casas
 
E se vergonha tenho
é do que ainda não penso
é do que penso e me é estranho
é deste sangue em suspenso
é desta roupa sem corpo
interior e exterior ao mesmo tempo.
 
 
 
regina guimarães
nervo/17 janeiro/abril 2023
colectivo de poesia
2023
 





08 fevereiro 2023

paul celan / oiço tanta coisa de vós

 




 
OIÇO TANTA COISA DE VÓS
que não oiço mais
do que ouvir,
 
vejo tanta coisa de vós
que não vejo mais
do que ver,
 
tanta coisa me assedia
com desconversa
que dou por mim a falar
como quem conversa,
que dou por mim
a falar como quem
fica em silêncio.
 
Eu vivo, forte.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022