31 maio 2020

eugénio de andrade / rosa de areia



Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez de outro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.


eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







30 maio 2020

david lehman / robert desnos


                               para Ron Horning


Não sei se um ponto é possível,
Um novo começo, um fim menos arbitrário
Do que a minha própria morte; mas falei tanto
De deuses, sonhei tanto as suas ausências
Sussurrantes, que ao calar-me
Naqueles momentos antes da morte, sinto que estou a ouvir
A escuta dos deuses.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017







29 maio 2020

claudio rodríguez / pardal


Não esquece. Não se afasta
este vadio astuto
da nossa vida. Sempre
por empréstimo, errante,
como um qualquer, aqui
anda, teimoso, lava-se
entre os nossos sapatos.
Que procura na escura
vida nossa? Que amor
no nosso pão tão duro?
Já deu ao ar os mortos,
o pardal que podia
ter voado, mas insiste
em ficar aqui, firme,
enfiando no peito
o pó todo do mundo.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2019






28 maio 2020

jorge melícias / lembro-me dos anjos da dirimição


Lembro-me dos anjos da dirimição.
E de como pela fome
os homens
falqueavam a culpa
até aos ossos.

Era a guerra, asseveravam,
e à força cénica
desse horror
em movimento
chamavam deus.

Mas há muito que a penúria
desertou desta paisagem:
aqui já nem o desespero faz fé.



jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020






27 maio 2020

albert camus / mediterrâneo



I
Ao olhar ausente das janelas, a manhã ri
Com todos os seus dentes azuis e rebrilhantes.
Amarelas, verdes e vermelhas,
Às varandas ondulam as cortinas.
Jovens de braços nus estendem roupa.
Um homem, a uma janela, tem na mão uma luneta.
Manhã clara, esmaltada de mar
Pérola latina do alvor do lírio:
                Mediterrâneo!

Outubro de 1933



albert camus
cadernos de albert camus II
escritos de juventude
trad. josé carlos gonzalez
livros do brasil
1972






26 maio 2020

antónio franco alexandre / encontro-te perdido não tens corpo



encontro-te perdido não tens corpo
que sombra alguma guarde
não sei que luz destrói a linha de água
o ombro dividido

são secos ossos, terra
sem paisagem,
as tábuas dos navios e
o frio veneno

junto do cais a água de óleo mãe
o farrapo amanhã não te despeças


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996






25 maio 2020

manuel antónio pina / cuidados intensivos



I

"A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?"

Terça-feira, 3 de Março



manuel antónio pina
monólogos
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





24 maio 2020

alberto caeiro / o meu olhar azul como o céu


XXIII

O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...


Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso…)

s.d.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946






23 maio 2020

amadeu baptista / mil novecentos e cinquenta e três



Logo no primeiro ano
estou só
e não me consigo manter de pé.

Se suspeitasse sequer
que iria ser assim para toda a vida
não me riria

com estas gargalhadas
cristalinas.



amadeu baptista
açougue, 2012
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017







22 maio 2020

maria teresa horta / dias de agrura


capa: gil maia


Não sei o que mais
custa
nestes fins de tarde

de doença e mágoa

Se o animal do medo
que pé ante pé
nos tenta entrar em casa

se este silêncio imenso
que ao chegar da rua
aflige e atordoa

Nesta cidade triste
em que
se tornou Lisboa



maria teresa horta
nervo/8 janeiro/agosto 2020
colectivo de poesia
2020







21 maio 2020

alejandra pizarnik / a carência



Eu não sei de pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que a minha solidão deveria ter asas.


alejandra pizarnick
antologia poética
las aventuras perdidas  – 1958
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020














20 maio 2020

amalia bautista / no fundo



No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.



amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020






19 maio 2020

luis alberto de cuenca / penso em ti



Os amantes pensam-se. Cada um
pensa que pensa muito mais no outro
que o outro nele. Estão centrados
no seu ofício pensante e não notam
os fios invisíveis com que o medo
vai enredando as suas reflexões
e matando o amor. Só o esquecimento
poderia resgatá-los dessa dúvida,
mas não estão dispostos a esquecer-se.


luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018