18 abril 2020

egito gonçalves / o progresso das ciências



Conseguiram encerrar o vento,
retirar a pouco e pouco o ar
e – maravilha – o povo
resiste ainda e vive.

A asfixia é lenta e os que morrem
parecem ir de morte natural.

Hoje porém os sábios consideram
enganosa essa fórmula que reduz
o paciente à condição de peixe triste.

Pois no repouso fictício a onda
aguarda o luar da maré cheia.

Nas manhãs da terra
as manchas de sangue ganham punhos;
a viva carne cobre o inesperado.



egito gonçalves
os arquivos do silêncio
1963





17 abril 2020

albano martins / no centro da volúpia



No centro da volúpia, como essência
e forma, como adorno,
contorno e cerne, é que o voo
se fixa, é que a ave
reside e o canto mora


e morre.



albano martins
a margem do azul
1982









16 abril 2020

elio pecora / a pier paolo pasolini



Ainda a vida
como se fosse um alhures
a habitar no sonho
e esta – de raivas, de esperas,
ainda assim, querida, procurada –
a porta a transpor,
uma véspera, uma paragem.

Ainda a ânsia,
como escura semente
a estrumar, a regar,
e nela o mapa
para seguir viagem.

(Uma tarde, em Sabaudia,
no teu último Verão
– da varanda a tua mãe
chama o mar que avança –
maldizes o alcatrão
dentro da areia, ao longo da ressaca,
e espantas-te com o azeite
que tira as nódoas).



elio pecora
poemas escolhidos
interlúdio (1987)
tradução de simoneta neto
quasi
2008







15 abril 2020

paul éluard / aqui



Uma rua abandonada
Uma rua profunda e nua
Onde os loucos têm menos dificuldade
Que os sensatos a safar-se
Nos dias sem broa e sem carvão

É uma questão de dimensão
N sensatos para um louco
E nada mais para lá da imensa
Maioria do bom senso
Um dia cru sem proporções

A rua tal uma ferida
Que não voltará a fechar-se
Que o domingo torna ainda maior
O céu é um céu de outro lugar
Senhor de uma terra estranha

Um céu cor-de-rosa um céu bem-disposto
A transpirar beleza e saúde
Sobre a rua sem perspectiva
Que me corta o coração em dois
Que me priva de mim próprio

Na rua não se passa nada nem ninguém.



paul éluard
últimos poemas de amor
o duro desejo de durar  1946
trad. maria gabriela llansol
relógio d´água
2002






14 abril 2020

marta navarro; paola d´agostino / os verões hão-de durar de novo três meses




os verões hão-de durar de novo três meses
os lanches hão-de vir com desenhos animados
a morte há-de ser coisa do primeiro de novembro
as ruas hão-de ser nossas depois da escola
os joelhos hão-de ser tecidos de esfolar
as bicicletas hão-de deixar de precisar de descanso
mãe há-de querer dizer mãos de veludo
e como antigamente há-de ser um lugar vazio de novo



marta navarro; paola d´agostino
dançam; dançam
edit. a tua mãe
2014






13 abril 2020

heiner müller / o anjo sem sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







12 abril 2020

herberto helder / lenha, legna





Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Abril, 1980




Legna – e l´estrazione di piccoli astri,
scintile da poro a poro,
gli elettoni delle corolle. Solamente nel più buio
non c´è nulla. Nel buio, la carne è un buco
cieco, e quel che arde è il pane
nello stomaco, e nei bronchi
tagliatamente
l´aria. E il carbónio divora sonno a sonno l´innocenza
delle immagini. Quel che tocca l´organo più profondo
del soffio non è musica
né fiamma: soltanto un dito di marmo tra
le temple come
una pallottola. E mentre punte di fuoco segnano
la bocca, moriamo affogati,
nello specchio, nel viso. E se la follia per un istante
alza le palpebre.
La grande valvola del corpo.
L´oscurità, la terra.


Aprile, 1980



herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






11 abril 2020

jorge de sousa braga / ao relento



Para encherem a noite, os grilos não precisam mais que
De uma lura. Mesmo no cativeiro continuam a cantar.

Para o homem, momentos há – e é doloroso reconhe-
cê-lo – em que até o universo é uma prisão.


  

jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991










10 abril 2020

italo calvino / as cidades e as trocas. 4



Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, brancos ou pretos ou cinzentos ou pretos e brancos, conforme assinalem relações de parentesco, permuta, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios.

Da vertente de um monte, acampados com as mobílias, os refugiados de Ersília vêem o intricado de fios estendidos e de postes que se ergue na planície. Isto é ainda a cidade de Ersília, e eles não são nada.

Reedificam Ersília noutro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante que desejariam mais complicada e ao mesmo tempo mais regular que a outra. Depois abandonam-na e levam ainda para mais longe tanto a si próprios como as suas casas.

Assim viajando no território de Ersília encontramos as ruínas das cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem as ossadas dos mortos que o vento faz rebolar: teias de relações intricadas que procuram uma forma.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999






09 abril 2020

joaquim manuel magalhães / encontro-te depois de procurar-te



Encontro-te depois de procurar-te
nas ruas onde é costume encontrar

Beijo-te no pescoço, os lábios
húmidos de treva, as mãos
firmes nos teus ombros.
Oculto, inseguro, dividido
quero festejar, festejar-te.

A alma, esta dilatação do corpo extasiado,
canta no quarto habitado pelo tempo.
Um som falso de cassettes sobe no descampado donde vens.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990






08 abril 2020

antónio osório / trinta e nove anos



É um bem que me roubem e explorem;
um bem que saibam quanto valho (nada);
um bem que espreitem, que circulem
incólumes, que amedrontem e persigam;
um bem que me desprezem e destruam
e um bem maior ainda que me ignorem,
porque é preciso pagar, e caro, a vida.



antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982









07 abril 2020

mário cesariny / homenagem a cesário verde



Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda poetas cá no país!



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999






06 abril 2020

luís miguel nava / nos teus ouvidos



Nos teus ouvidos isto explode
de amor, palavra ampola sob
os astros funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis muros aos quais as crianças
que de cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus brevíssimos, os indícios
de nada, o modo de ler, de acender um texto
de amor nos ouvidos, isto explode e entra
nesta página o mar da minha infância, meigo
no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender
de carícias um texto na memória. De astros
as ruas eram cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que arranco ao sono, às areias virgens
das palavras, que amanhecido eu gero, as mãos
tão de repente em pânico nos muros.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
películas
publicações dom quixote
2002