09 novembro 2011

alexandre o´neill /pela voz contrafeita da poesia





Dá-nos os passos os teus passos
de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega

Não digas o teu nome: ele é Esperança
vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo
o admirável silêncio que os defende
ou o sorriso o gesto a lágrima
que deixam nas mãos fiéis

Não digas o teu nome: quem o não sabe
quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho

O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam

As coisas também gritam por ti

E as cidades as cidades que morreram
na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono


                           *


Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono

Onde está o amor a sublime
rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso

Hoje não é fácil o tempo
já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.

Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo


                          *


Impossível

Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível

Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes


                            *


Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavra!
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro


                               *


Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo



alexandre o´neill
poesias completas
assírio & alvim
2000


08 novembro 2011

georg trakl / melancolia




Sombras azuladas. Oh, olhos de mágoas
Que me olham longamente ao deslizar.
Guitarras nos jardins, a acompanhar
O Outono e a dissolver-se em escuras águas.
Duras trevas da morte, construídas
Por mãos nínficas, rubros seios sugados
Por lábios podres, e os cabelos molhados
Do jovem nas águas enegrecidas.




georg trakl
a alma e o caos
100 poemas expressionistas
trad. joão barrento
relógio d´água
2001



07 novembro 2011

mário henrique leiria / triângulo kabalístico





Eu sei que as túlipas
são os olhos de todos os aviões perdidos

Eu sei que as cidades
são os esqueletos das aves de rapina

Eu sei que os candeeiros ardendo de noite
são os pulmões dos peixes-voadores

Eu sei que o mistério
é uma dentadura abandonada

Eu sei que a loucura
é um braço solitário sorrindo eternamente

Eu sei que os meus olhos
são as tuas pernas frementes

Eu sei que os teus cabelos
são o meu acendedor de pirilampos

Eu sei que a tua boca
é o meu uivo solar

Eu sei que o teu peito e o teu sexo
são a minha água profundamente azul
onde se encontram todos os fantasmas
já perdidos há séculos.







mário-henrique leiria
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




05 novembro 2011

ruy belo / a primeira palavra



Acompanhando a recente curvatura da terra
o primeiro olhar descreveu a sua órbita
sobre as oliveiras. Só mais tarde
a pomba roubaria o ramo
e iria de árvore em árvore propagar a primavera.
Foi então que os olhos se cruzaram
e estava dita a primeira palavra
a superfície do tempo.




ruy belo
dedicatória
todos os poemas I

assírio & alvim
2004



04 novembro 2011

luís muñoz / termómetro




Por então mediam-na as noites de estio,
a queda de luzes nas bocas do mar.
A minha resistência à tristeza, digo,
a pequena estrutura de uma emoção recente,
de um encontro intrépido,
de umas poucas palavras embebidas em doce,
do esvoaçar oculto numa carta,
de um sopro que torna alegres os dragões do tempo.

Outras vezes, porém, não existia nada,
ou o que existia tornava-me fraco.





luís muñoz
trípticos espanhóis vol. III
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2004





03 novembro 2011

fernando guerreiro / os últimos frutos





Que os últimos frutos sequem, nem por isso deixam de
                                             ser os mais apetecidos.
As próprias estações confundem-se num frasco de
                                                          compota
de cujo fundo inúmeras gerações parecem ter saído.
Leva-se a mão ao fruto e um ardor consome-se na boca –
álcool de que o sentimento impróprio decai: enxuto,
                                                            ressequido.
Ah, deixa-me beijar a tua boca – até que do fundo
de um sabor a mosto eu me sinta recluso e excluído.
Liofilizados, antes da estação, agora caem os frutos.
Uns dão a luz ao dia, outros, à morte, um sentido
                                                     inapetecido.




fernando guerreiro
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002




02 novembro 2011

heiner müller / brecht





Em verdade, ele viveu em tempo de trevas.
Os tempos ganharam em luz.
Os tempos ganharam em trevas.
Quando a luz diz: Eu sou as trevas,
Disse a verdade.
Quando as trevas dizem: Eu sou
A luz, não mentem.






heiner müller
trad. joão barrento
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001






31 outubro 2011

amalia bautista / dizes que me amas

  



Dizes que me amas de uma tal forma,
que não consigo deixar de corar;
que me amas de um modo primitivo,
sem razão aparente e sem desculpas
e que me amas porque me desejas,
porque sabes que eu também te amo
e como o monstro deste amor nos devora
a alma, a paciência e as maneiras.
É uma pena que todas estas coisas
morram em nós afogadas de silêncio.





amalia bautista
estoy ausente
pre-textos,
valencia
2004



29 outubro 2011

gil t. sousa / lição das árvores

  

40

  
lição das árvores:
regressamos nus do abandono

e como o tempo nada devolve
pairamos sobre a morte
como frutos interrompidos
que ninguém
sabe colher




gil t. sousa
falso lugar
2004




28 outubro 2011

lawrence ferlinghetti / como eu costumava dizer






    Como eu costumava dizer
             o amor é mais difícil de nascer nos mais
                                                                [idosos
porque já percorreram
        os mesmos velhos trilhos muitas vezes
e depois quando a manhosa agulha se apresenta
                       não tomam o desvio
   e devoram a velha via errada enquanto
           o alegre "tandem" segue em voo
       e o maquinista da locomotiva a vapor não
                                                        [reconhece
          as novas buzinas eléctricas
e os velhos correm sob o impulso ferrugento
                                         cujo fim se encontra
       na erva morta onde
as latas ferrugentas e as molas de colchão e as
                              [lâminas de barbear usadas
                                         jazem
             e a via acaba abruptamente
                                     ali mesmo
embora as chulipas de madeira continuem por uns
                                                                   [metros
                        e os velhos
dizem para si próprios
                                        Bem
                                                Deve ser este sítio
                             onde temos de nos deitar
E deitam-se mesmo

                 enquanto a bela carruagem iluminada
                                         [prossegue lá ao longe
                 no alto
                        no cimo da colina
                            com as janelas cheias de céu azul
                                                           [e namorados
   com flores
                             e longos cabelos ondulantes
                                    e todos a rirem-se
                          e a dizerem adeus e
                a perguntarem-se a si próprios o que
                                              [aquele cemitério
                  onde a via acaba
                                        é





lawrence ferlinghetti
pictures of the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom Quixote
1972




27 outubro 2011

irene lisboa / nova, nova, nova, nova






Não era a minha alma que queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada
   de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter…
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
     nova, nova!




irene lisboa
1892-1958




25 outubro 2011

antónio maria lisboa / poema



                                                          Para o Mário Cesariny




Moveu-se o automóvel – mas não devia mover-se
não devia!

Ontem à meia-noite três relógios distintos bateram:
primeiro um, depois outro e outro:
o eco do primeiro, o eco do segundo, eu sou o eco do terceiro

Eu sou a terceira meia-noite dos dias que começam

Pregões de varina sem peixe
- o peixe morreu ao sair da água
e assim já não é peixe

Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.






antónio maria lisboa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




24 outubro 2011

carlos eurico da costa / [de sete poemas da solenidade e um requiem]




2


Os grandes barcos de granito azul avançam
marcando a sua época.
No mar
as velhas canções de música
petrificadas por estrelas velocíssimas
são a origem dos ciclones
(os jornais asseguram-nos a sua existência)
e nestas montanhas conscientes da sua fragilidade
os cegos rosados
lutam no bar das estátuas mitológicas
esgrimindo agilmente as facas.

Hoje repousaremos na rua deserta
os pequenos maquinismos de anulação do tempo
bem firmes entre os dedos
como anéis circunvolutórios
até que um sulco de areia penetre o mar e tinja as águas
e neste pequeno café da praia
outros homens povoem a fúria das ondas
e dos rochedos que são a nossa maneira
de descobrir veículos de amor.


          A subtil invenção da tua epiderme
          a fragilidade obscura das tuas mãos
          será apunhalada ao amanhecer
          quando a nossa lucidez se fundir no horizonte
          e toda a turba rolando pelas colinas
          se suicidar com uma pétala sobre as pálpebras.


E a janela indicando-nos os signos de certos templos
os murais de agulhas oxidadas
a tua espantosa e inconsciente pureza
de ser boreal
presente em todos os viadutos dos meus gestos
presente nas pedras desta antiga e odiosa cidade.

E toda a minha angústia para ti
como os prédios em derrocada
que são a tua permanente ausência
o desespero de uma voz disseminada
pelos clarões do tempo que teremos de viver.

Longe futuramente longe
nas fugas geométricas dos museus
na misteriosa cadeira lavrada dos contos policiais
na erosão da cama ainda quente do teu corpo
as luzes extinguem-se lentas.

Creiamos.
Mas o frio desta geada de actos convenientes
acorda a hora do universo
a hora imperturbável de toda a fixação dos actos
quando os rios apagarem o sangue desta geração
das pa1avras de medo que não pronunciamos
no banho de cinzas da nossa existência.





carlos eurico da costa
a única real tradição viva
antologia da poesia surrealista portuguesa
perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
1998




23 outubro 2011

álvaro de campos / aniversário





No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!





álvaro de campos