Professor Trochee
ENSAIO SOBRE POÉTICA - T
ENSAIO SOBRE POÉTICA
Escrito para edificação e para a instrução dos pretensos poetas.
Quando penso no número abundante
de rapazes e no superabundante número de mulheres jovens no presente século,
quando vejo a natural e consequente profusão de atracções mútuas, sempre que
cogito no grande número de composições poéticas que dali emanam, sempre que o
meu pensamento se debruça sobre a formação demente e caótica destas efusões,
fico perfeitamente convencido que, se escrever um ensaio sobre a arte poética,
estarei contribuindo grandemente para o bem público.
Contudo, ao considerar a melhor e
mais prática maneira de começar tão importante debate, concluí sensatamente que
uma exposição directa das regras da poética era a maneira como eu devia
apresentar o assunto ao leitor. Achei inútil e inapropriado referir-me aos
antigos críticos de arte, dado que os críticos modernos são mais agradáveis de
citar e disseram tudo o que há a dizer sobre o assunto, e mesmo um pouco mais —
o que é da sua autoria, onde são originais. Ao pôr de parte os críticos da
antiguidade tenho duas boas razões, a segunda das quais é que, mesmo que
soubesse alguma coisa sobre eles, não gostaria de impingir a minha ciência
escolar ao leitor. Começo então a minha exposição.
Primeiro penso que seria oportuno
chamar a atenção do pretenso poeta para um facto que não é habitualmente considerado
e que ainda é digno de consideração. Espero escapar ao ridículo universal ao
afirmar que, teoricamente, a poesia é susceptível de escansão. Gostaria, porém,
que ficasse claro que concordo com o Sr. A. B. quando afirma que a escansão
estrita não é de todo necessária para o sucesso e mesmo para o mérito de uma
composição poética. E creio não parecer excessivamente pedante se procurar no
armazém do Tempo, para citar como autoridade, algumas das obras de um certo
William Shakespeare ou Shakspere que viveu há alguns séculos e que desfrutava
de alguma reputação como dramaturgo. Esta pessoa tinha por hábito cortar, ou
acrescentar, uma ou mais sílabas nos versos das suas numerosas produções, e se
era inteiramente permitido naquela época de beleza quebrar as regras do bom
senso artístico e imitar algum obscuro escriba, ousarei recomendar ao
principiante o prazer desta liberdade poética. Não que o aconselhe a
acrescentar quaisquer sílabas aos seus versos, mas a subtracção de algumas é
muitas vezes conveniente e desejável. Posso ainda recomendar que, por esta
mesma regra limitativa, tendo o jovem poeta cortado algumas sílabas ao seu
poema, prossiga com o mesmo método e corte as restantes sílabas, embora possa
não alcançar qualquer espécie de popularidade, terá todavia revelado um
extraordinário senso-comum poético.
Posso também explicar aqui que o
meu método para a formação de regras que estou a expor é o melhor. Vejo e penso
nos escritos dos poetas modernos, e previno o leitor para fazer como eu fiz.
Porém, se recomendo ao pretenso poeta que não se preocupe, na prática, com a
escansão, é porque descobri ser isto uma regra e uma condição nos poemas de
hoje. Nada como a mais cuidadosa consideração e o mais honesto apego a um
modelo para ser usado por um aprendiz na arte. Em todos os casos, podem confiar
em mim para vos dar o melhor método e as melhores regras.
Abordo o assunto da rima com um
grande receio em vez de proferir algumas observações que poderiam parecer
demasiado ortodoxas, quebrarei rudemente uma das regras mais obrigatórias da
poesia moderna. Sou forçado a concordar com o Sr. C. D. quando diz que o ritmo
não deve ser muito evidente em qualquer poema, embora este possa ser chamado
rimado e os numerosos poetas modernos que exemplificam este preceito têm a minha
inteira aprovação. A poesia devia encorajar o pensamento e apelar para a
reflexão: nada melhor que o prazer do crítico quando, depois de um minuto de
dissecação da composição, percebe, primeiro, que é poesia e não prosa, segundo,
após um grande esforço, após um profundo exame, que é rimado e não branco.
Tais belezas poéticas, serão, no
entanto, visíveis só ao crítico experimentado, porque o homem de gosto poético
comum é muitas vezes, quando chamado a criticar um poema, colocado numa
situação indesejável. Por exemplo, há cerca de uma semana, um amigo meu
pediu-me a opinião sobre um poema que tinha escrito. Entregou-me um papel. Eu
fiz algumas e vãs tentativas para compreender a efusão, mas rapidamente as
corrigi invertendo a posição do papel para conseguir captar um melhor sentido.
Felizmente como me fora antecipadamente dito que o papel que estava diante de
mim tinha um poema, comecei imediatamente, sem qualquer precaução, a tecer
copiosos elogios à excelência do verso branco. Corado de indignação, o meu
amigo disse que a sua composição era rimada, e, além disso, que se tratava dos
chamados versos spenserianos. Não muito convencido pela sua impúdica invenção
de um nome (como se Spencer alguma vez tivesse escrito poesia!), continuei a
examinar a composição que tinha na frente mas, não conseguindo sequer
aproximar-me do sentido, limitei-me a elogiá-la, comentando particularmente a
originalidade de tratamento. Ao devolver o papel ao meu amigo, este passou-lhe
uma vista de olhos para me mostrar algo de especial, o seu rosto nublou-se e
pareceu intrigado.
«Raios», disse ele, «dei-lhe o
papel errado. Isto é a conta do meu alfaiate!»
Que este triste episódio sirva de
lição ao crítico de poesia.
Nessa destruição do sentimento
poético, o verso branco, só tocarei ao de leve; mas como vários amigos meus me
têm repetidamente pedido a fórmula ou receita para a sua produção, dou neste
momento a conhecer as directivas àqueles dos meus leitores que tiveram a
coragem de me acompanhar até aqui. Na verdade, no campo da poesia, não há nada
mais fácil do que produzir verso branco.
A primeira coisa a fazer é
arranjar tinta, papel e uma caneta; e então escrever normalmente, em linguagem
corrente tal como se fala (o que tecnicamente se chama prosa) o que se quer
dizer; ou, se for esperto, o que estiver a pensar. O passo seguinte é lançar
mão de uma régua graduada em polegadas ou centímetros, e marcar, com um traço,
a efusão da sua prosa, cortando quatro polegadas ou dez centímetros no
comprimento: eis as linhas da sua composição em verso branco. No caso de a
linha não ficar certa, uns «Alases», ou «Ohs» ou «Ahs», ou uma introdução de
invocação às Musas preencherão o espaço exigido. Esta é a receita moderna.
Claro que não sei directamente se este é o método que os poetas modernos utilizam.
Mas, ao examinar os seus poemas, descobri que a evidência interna é conclusiva,
apontando sempre para tal método de composição.
Quanto à escansão do verso
branco, não se preocupe com isso; primeiro, porque seja de que espécie for, os
críticos vão encontrar nele os erros mais ultrajantes; mas, se com o tempo se
tornar famoso, os mesmos senhores justificarão tudo o que fizer; e ficará
surpreendido com as coisas que simbolizou, insinuou, quis dizer.
Por último, volto a insistir com
o leitor que, nesta era do automóvel e da arte pela arte, não há qualquer
restrição ao comprimento da linha em poesia. Podem-se escrever linhas de duas,
três, cinco, dez, vinte, trinta sílabas ou mais que não tem importância
nenhuma; só quando as linhas de um poema contêm mais do que um certo número de
sílabas, essa composição é geralmente conhecida por prosa. Esta dificuldade de
se saber qual é o número de sílabas que estabelece o limite entre poesia e
prosa faz com que seja modernamente impossível distinguir o que é uma e o que é
a outra. A distinção interna é, claro está, impossível. Depois de algum estudo,
descobri que pode ser geralmente considerada poesia quando cada linha começa
com letra maiúscula. Se o leitor conseguir descobrir outra diferença, ficaria
muito grato que ma desse a conhecer.
s.d.
fernando
pessoa
pessoa por
conhecer - textos para um novo mapa.
teresa rita lopes
estampa
1990