21 novembro 2016

jorge luís borges / g. a.bürger




Nunca hei-de entender
por que me afectam desta maneira as coisas
que aconteceram a Bürger
(as suas duas datas estão na enciclopédia)
numa das cidades da planície
junto ao rio que tem uma só margem
onde crescem palmeiras, não pinhais.
Tal como todos os homens,
disse e ouviu mentiras,
foi traído e foi traidor,
agonizou muitas vezes por amor
e após uma noite de insónia
viu os cinzentos cristais da alba,
mas mereceu a grande voz de Shakespeare
(na qual estão as outras)
e a de Angelus Silesius de Breslau
e com falso descuido limou alguns versos
ao estilo da sua época.
Sabia que o presente não é mais
que uma fugaz partícula do passado
e que somos feitos de esquecimento:
sabedoria tão inútil
como os corolários de Espinosa
ou as magias do medo.
Na cidade, junto ao rio imóvel,
uns dois mil anos depois da morte de um deus
(a história que menciono é antiga),
Bürger está sozinho e agora
precisamente agora, lima uns versos.


jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
história da noite   (1977)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





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