04 maio 2025

adolfo casais monteiro / fruta do tempo

 



 

 
Tempos houve em que ainda me perdia…
Hoje
de antemão tudo sonho já vivido,
inútil e pesado,
passos que dou com olhos distraídos…
isto mesmo não é embora certo:
que venha um pouco de sol, e toda a sombra
há-de esvair-se em bruma pelos cantos…
 
 
 
adolfo casais monteiro
poemas do tempo incerto (1934)
poesias completas
imprensa nacional-casa da moeda
1993




03 maio 2025

zetho cunha gonçalves / pelo meu nome

 
 
 
Escavo a esta mão os ventos – da onça,
sustentam a noite: quem contraceno em gesto,
e os seus olhos. Se dou um passo
tropeço noutro passo – simétrico, tropeço
na flecha. O dorso é todo o horizonte,
a sua escultura movediça.
 
Eu trazia o fogo na cabeça, era um pássaro.
O canto das águas seria a minha voz – a pedra,
Terra
de outra carne,
e osso –
não me houvessem roubado o fogo, não me houvessem
justificado em lenda, pelo meu nome.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
o testamento do mundo
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021
 



02 maio 2025

josé miguel silva / em suma

 
                                        
 
Um a um foram saindo de cena
os companheiros. Partiam, com a tarde,
para fins empobrecidos,
na rota dos eleitos para filhos e despesas.
As noites faziam-se livrescas,
estendiam sobre mim o seu império
de silêncios e desfalques.
 
Entretanto, engrossava o meu diário
de rasuras, de cálculos moídos,
partilhado por verrinas e recados
sem resposta. Bebia o desalento
por canecas de latão, corria
as persianas. É muito pouca sorte.
 
Os versos, com o tempo, tornavam-se mais longos,
cresciam para trás, para fora
dos cadernos, ocupavam minha vida
tal a morte na semente de madeira.
Afeiçoava-me isso sim à solidão, cortava
o negativo dos afectos, protegido na cabeça
por um chapéu de feltro;
pois essas são as coisas e as coisas
que ontem nos pareciam boas
não existem.
 
 
 
josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem
relógio d´água
2003





01 maio 2025

josé emílio pacheco / «moralidades lendárias»

   
 
Odeiam César e o poder romano.
Privam-se de comer a última uvinha
pensando nos escravos estourados
nas minas de sal ou nas galeras.
 
Falam das crueldades do exército
em Ilíria e nas gálias.
Empanturrados
de javali, perdizes e vitela
bebem um gole
de vinho siciliano
para empinar os lábios pronunciando
as mais belas palavras:
a uuumaaaniiidaadee, o ooomeeem, todas essas
– tão rotundas, tão grandes, tão sonoras –
que apagam a humildade de outras mais breves
– como, digamos, por exemplo, as pessoas.
 
Termina a função. Entram os servos
para levarem os restos do banquete.
Então os patrícios acomodam-se
aos seus mantos de Chipre.
Com o fogo do prazer nos olhinhos,
como um gladiador que afunda o tridente,
enumeram felizes os abortos
de Clódia a Toscana,
a impotência de Lívio, os avanços
do cancro em Vitélio.
Afirmam que é cornudo o velho Cláudio
e condenam Flávio à cadeia,
um escravo liberto, um arrivista.
 
Depois à saída acordam aos pontapés
o cocheiro insolado
e marcham com fervor em direcção ao Palatino
para oferecerem mansamente o triste cu
ao magnânimo César.
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024




 

30 abril 2025

sophia de mello breyner andresen / fragmento de «os gracos»

 
 
 
«…………………………………………………………..»
 
Os ricos nunca perdem a jogada
Nunca fazem um erro. Espiam
E esperam os erros dos outros
Administram os erros dos outros
São hábeis e sábios
Têm uma longa experiência do poder
E quando não podem usar a própria força
Usam a fraqueza dos outros
Apostam na fraqueza dos outros
E ganham
 
Tecem uma grande rede de estratagemas
Uma grande armadilha invisível
E devagar desviam o inimigo para o seu terreno
Para o sacrificar como um touro na arena
 
«……………………………………………………………»
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética
poemas reencontrados
assírio & alvim
2015




 

29 abril 2025

fernando pinto do amaral / elegia do porto

  
 
Fechei o círculo: a minha adolescência
jaz morta e arrefece. Ainda é noite
e os caminhos já não se bifurcam
enquanto a lua vai sorrindo. A esperança,
sabemos que é a última a morrer,
mas a cidade é toda um déjá vu,
um abismo de imagens repetidas
por espelhos iludindo outros espelhos
acompanhando um rio que nunca teve
quem o cantasse – diz-nos a Agustina
na frase inicial do seu romance
sobre a filha infeliz do coronel Owen,
um desses ingleses que este Porto
soube adoptar num século romântico
de jardins desbotados e emoções
por vezes muito óbvias, embebidas
na treva e no silêncio. Alguns passos
feitos de sombra e água e logo tudo
recupera o perfil do esquecimento,
a consistência mole das coisas surdas
que adormecem as dores e os prazeres
em casulos de vidro litoral
a meio de um percurso que retoma
nobrezas, burguesias, novos-ricos,
pessoas sempre sólidas, compactas,
povoando os anódinos destinos
com sinais quase sempre obrigatórios
da serena fortuna: Maseratis,
B.M.W.’s série sete ou mesmo
um Jaguar tão azul, tão luminoso
como o da minha infância. Tantas vezes
duvidei do passado e do futuro
como se o tempo não me conhecesse
e a verdade brilhasse, distraída,
para lá do horizonte. Cada voz
é o sangue do nada que circula
e vai coalhando agora no tranquilo
sono dos automóveis pelas ruas
entre uma escória de recordações
que mal sei distinguir e no entanto
me deixam hoje absorto na esplanada,
quase submerso em estranhas avarias
do sentimento ou da imaginação
– só literatura, mera literatura.
Fechei de novo o círculo: esta vida
começa a ser igual às outras vidas
que alguém viveu em mim antes de mim
nesta e noutras cidades. A memória
é um poço vazio, quase um deserto
onde vislumbro vagas caravanas
à procura do rumo que não há
nos corpos ou nas almas segregando
outros corpos e almas. Entro e saio
dos cem ou mil lugares onde vicejam
a flora e a fauna predadora
das quatro da manhã. Não me submeto
às inúteis mensagens da alegria
em cada rosto e sinto que encontrei
a velocidade de cruzeiro: é isto,
escrever talvez ao ritmo de apelos
a que este mundo chama ainda música
e serão simplesmente contracções
de vísceras aflitas, vãos esgares
imitando o sorriso de ninguém
no instante em que nasce ou em que morre
o estilhaçado som de um coração
quando se parte sem nenhum remédio,
sem promessas que o salvem da catástrofe,
até ficar sozinho para sempre,
à mercê de outro sonho ainda mais forte,
mais rápido que o álcool, transformando
a vida em morte, a morte em vida, agora
exactamente iguais – perfeita ekphrasis
do universo inteiro. Ah, fogo e gelo,
continuem felizes a queimar
os anónimos nomes que se elevam
da madrugada aqui na Foz do Douro
onde a névoa da água é mais que névoa
no mar feito de fumo onde os meus olhos
sobrevivem já cegos, noutra luz.
 
 
 
fernando pinto do amaral
dez elegias para o fim do milénio
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000





28 abril 2025

josé manuel teixeira da silva / acabar, começar

 
 
 
Da antiguidade da vida
O arco aberto da primeira maré
a chuva concêntrica no musgo dos lagos
o fio incerto dos pássaros no trânsito das nuvens
os olhos que se olham nas cidades aquáticas
Como se ainda voltasses dizendo
no espelho das janelas mergulham para sempre
os peixes sombrios das constelações
Súbitas permanências
 
 
 
josé manuel teixeira da silva
as súbitas permanências
quasi
2001




27 abril 2025

ana hatherly / 463 tisanas

 
 
433
 
Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam sua fúria com sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.
 
 
ana hatherly
463 tisanas
quimera
2006
 




26 abril 2025

josé gomes ferreira / comboio

 
 
 
IX
 
Hoje vim para a rua
de cabeça levantada
– desdém de frutos mordidos.
 
Eu, o príncipe dos dias lúcidos
que dei os olhos ao sol
para de lá ver melhor o mundo
– onde os corações dos presos nos subterrâneos
tecem a luz própria da Terra
com o sexo das pedras e da lama.
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia IV
comboio (1955-1956)
portugália
1971




25 abril 2025

josé carlos ary dos santos / as portas que abril abriu

 

 
Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.
 
Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
 
Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.
 
 
Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.
 
Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.
 
Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.
 
Ora passou-se porém
que dentro de um povo escravo
alguém que lhe queria bem
um dia plantou um cravo.
 
Era a semente da esperança
feita de força e vontade
era ainda uma criança
mas já era a liberdade.
 
Era já uma promessa
era a força da razão
do coração à cabeça
da cabeça ao coração.
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
Esses que tinham lutado
a defender um irmão
esses que tinham passado
o horror da solidão
esses que tinham jurado
sobre uma côdea de pão
ver o povo libertado
do terror da opressão.
 
Não tinham armas é certo
mas tinham toda a razão
quando um homem morre perto
tem de haver distanciação
 
uma pistola guardada
nas dobras da sua opção
uma bala disparada
contra a sua própria mão
e uma força perseguida
que na escolha do mais forte
faz com que a força da vida
seja maior do que a morte.
 
Quem o fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
Posta a semente do cravo
começou a floração
do capitão ao soldado
do soldado ao capitão.
 
Foi então que o povo armado
percebeu qual a razão
porque o povo despojado
lhe punha as armas na mão.
 
Pois também ele humilhado
em sua própria grandeza
era soldado forçado
contra a pátria portuguesa.
 
Era preso e exilado
e no seu próprio país
muitas vezes estrangulado
pelos generais senis.
 
Capitão que não comanda
não pode ficar calado
é o povo que lhe manda
ser capitão revoltado
é o povo que lhe diz
que não ceda e não hesite
– pode nascer um país
do ventre duma chaimite.
 
Porque a força bem empregue
contra a posição contrária
nunca oprime nem persegue
– é força revolucionária!
 
Foi então que Abril abriu
as portas da claridade
e a nossa gente invadiu
a sua própria cidade.
 
Disse a primeira palavra
na madrugada serena
um poeta que cantava
o povo é quem mais ordena.
 
E então por vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
desceram homens sem medo
marujos soldados «páras»
que não queriam o degredo
dum povo que se separa.
E chegaram à cidade
onde os monstros se acoitavam
era a hora da verdade
para as hienas que mandavam
a hora da claridade
para os sóis que despontavam
e a hora da vontade
para os homens que lutavam.
 
Em idas vindas esperas
encontros esquinas e praças
não se pouparam as feras
arrancaram-se as mordaças
e o povo saiu à rua
com sete pedras na mão
e uma pedra de lua
no lugar do coração.
 
Dizia soldado amigo
meu camarada e irmão
este povo está contigo
nascemos do mesmo chão
trazemos a mesma chama
temos a mesma ração
dormimos na mesma cama
comendo do mesmo pão.
Camarada e meu amigo
soldadinho ou capitão
este povo está contigo
a malta dá-te razão.
 
Foi esta força sem tiros
de antes quebrar que torcer
esta ausência de suspiros
esta fúria de viver
este mar de vozes livres
sempre a crescer a crescer
que das espingardas fez livros
para aprendermos a ler
que dos canhões fez enxadas
para lavrarmos a terra
e das balas disparadas
apenas o fim da guerra.
 
Foi esta força viril
de antes quebrar que torcer
que em vinte e cinco de Abril
fez Portugal renascer.
 
E em Lisboa capital
dos novos mestres de Aviz
o povo de Portugal
deu o poder a quem quis.
 
Mesmo que tenha passado
às vezes por mãos estranhas
o poder que ali foi dado
saiu das nossas entranhas.
Saiu das vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
onde um povo se curvava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.
 
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe.
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu.
 
Essas portas que em Caxias
se escancararam de vez
essas janelas vazias
que se encheram outra vez
e essas celas tão frias
tão cheias de sordidez
que espreitavam como espias
todo o povo português.
 
Agora que já floriu
a esperança na nossa terra
as portas que Abril abriu
nunca mais ninguém as cerra.
 
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
 
Quando o povo desfilou
nas ruas em procissão
de novo se processou
a própria revolução.
 
Mas eram olhos as balas
abraços punhais e lanças
enamoradas as alas
dos soldados e crianças.
 
E o grito que foi ouvido
tantas vezes repetido
dizia que o povo unido
jamais seria vencido.
 
Contra tudo o que era velho
levantado como um punho
em Maio surgiu vermelho
o cravo do mês de Junho.
 
E então operários mineiros
pescadores e ganhões
marçanos e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
souberam que o seu dinheiro
era presa dos patrões.
 
A seu lado também estavam
jornalistas que escreviam
actores que se desdobravam
cientistas que aprendiam
poetas que estrebuchavam
cantores que não se vendiam
mas enquanto estes lutavam
é certo que não sentiam
a fome com que apertavam
os cintos dos que os ouviam.
 
Porém cantar é ternura
escrever constrói liberdade
e não há coisa mais pura
do que dizer a verdade.
 
E uns e outros irmanados
na mesma luta de ideais
ambos sectores explorados
ficaram partes iguais.
 
Entanto não descansavam
entre pragas e perjúrios
agulhas que se espetavam
silêncios boatos murmúrios
risinhos que se calavam
palácios contra tugúrios
fortunas que levantavam
promessas de maus augúrios
os que em vida se enterravam
por serem falsos e espúrios
maiorais da minoria
que diziam silenciosa
e que em silêncio fazia
a coisa mais horrorosa:
minar como um sinapismo
e com ordenados régios
o alvor do socialismo
e o fim dos privilégios.
 
Foi então se bem vos lembro
que sucedeu a vindima
quando pisámos Setembro
a verdade veio acima.
 
E foi um mosto tão forte
que sabia tanto a Abril
que nem o medo da morte
nos fez voltar ao redil.
 
Ali ficámos de pé
juntos soldados e povo
para mostrarmos como é
que se faz um país novo.
 
Ali dissemos não passa!
E a reacção não passou.
Quem já viveu a desgraça
odeia a quem desgraçou.
 
Foi a força do Outono
mais forte que a Primavera
que trouxe os homens sem dono
de que o povo estava à espera.
 
Foi a força dos mineiros
pescadores e ganhões
operários e carpinteiros
empregados dos balcões
mulheres a dias pedreiros
reformados sem pensões
dactilógrafos carteiros
e outras muitas profissões
que deu o poder cimeiro
a quem não queria patrões.
 
Desde esse dia em que todos
nós repartimos o pão
é que acabaram os bodos
— cumpriu-se a revolução.
 
Porém em quintas vivendas
palácios e palacetes
os generais com prebendas
caciques e cacetetes
os que montavam cavalos
para caçarem veados
os que davam dois estalos
na cara dos empregados
os que tinham bons amigos
no consórcio dos sabões
e coçavam os umbigos
como quem coça os galões
os generais subalternos
que aceitavam os patrões
os generais inimigos
os generais garanhões
teciam teias de aranha
e eram mais camaleões
que a lombriga que se amanha
com os próprios cagalhões.
Com generais desta apanha
já não há revoluções.
 
Por isso o onze de Março
foi um baile de Tartufos
uma alternância de terços
entre ricaços e bufos.
 
E tivemos de pagar
com o sangue de um soldado
o preço de já não estar
Portugal suicidado.
 
Fugiram como cobardes
e para terras de Espanha
os que faziam alardes
dos combates em campanha.
 
E aqui ficaram de pé
capitães de pedra e cal
os homens que na Guiné
aprenderam Portugal.
 
Os tais homens que sentiram
que um animal racional
opõe àqueles que o firam
consciência nacional.
 
Os tais homens que souberam
fazer a revolução
porque na guerra entenderam
o que era a libertação.
 
Os que viram claramente
e com os cinco sentidos
morrer tanta tanta gente
que todos ficaram vivos.
 
Os tais homens feitos de aço
temperado com a tristeza
que envolveram num abraço
toda a história portuguesa.
 
Essa história tão bonita
e depois tão maltratada
por quem herdou a desdita
da história colonizada.
 
Dai ao povo o que é do povo
pois o mar não tem patrões.
– Não havia estado novo
nos poemas de Camões!
 
Havia sim a lonjura
e uma vela desfraldada
para levar a ternura
à distância imaginada.
 
Foi este lado da história
que os capitães descobriram
que ficará na memória
das naus que de Abril partiram
das naves que transportaram
o nosso abraço profundo
aos povos que agora deram
novos países ao mundo.
 
Por saberem como é
ficaram de pedra e cal
capitães que na Guiné
descobriram Portugal.
 
E em sua pátria fizeram
o que deviam fazer:
ao seu povo devolveram
o que o povo tinha a haver:
Bancos seguros petróleos
que ficarão a render
ao invés dos monopólios
para o trabalho crescer.
Guindastes portos navios
e outras coisas para erguer
antenas centrais e fios
dum país que vai nascer.
 
Mesmo que seja com frio
é preciso é aquecer
pensar que somos um rio
que vai dar onde quiser
 
pensar que somos um mar
que nunca mais tem fronteiras
e havemos de navegar
de muitíssimas maneiras.
 
No Minho com pés de linho
no Alentejo com pão
no Ribatejo com vinho
na Beira com requeijão
e trocando agora as voltas
ao vira da produção
no Alentejo bolotas
no Algarve maçapão
vindimas no Alto Douro
tomates em Azeitão
azeite da cor do ouro
que é verde ao pé do Fundão
e fica amarelo puro
nos campos do Baleizão.
Quando a terra for do povo
o povo deita-lhe a mão!
 
É isto a reforma agrária
em sua própria expressão:
a maneira mais primária
de que nós temos um quinhão
da semente proletária
da nossa revolução.
 
Quem a fez era soldado
homem novo capitão
mas também tinha a seu lado
muitos homens na prisão.
 
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
um menino que sorriu
uma porta que se abrisse
um fruto que se expandiu
um pão que se repartisse
um capitão que seguiu
o que a história lhe predisse
e entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo que levantava
sobre um rio de pobreza
a bandeira em que ondulava
a sua própria grandeza!
De tudo o que Abril abriu
ainda pouco se disse
e só nos faltava agora
que este Abril não se cumprisse.
Só nos faltava que os cães
viessem ferrar o dente
na carne dos capitães
que se arriscaram na frente.
 
Na frente de todos nós
povo soberano e total
que ao mesmo tempo é a voz
e o braço de Portugal.
 
Ouvi banqueiros fascistas
agiotas do lazer
latifundiários machistas
balofos verbos de encher
e outras coisas em istas
que não cabe dizer aqui
que aos capitães progressistas
o povo deu o poder!
E se esse poder um dia
o quiser roubar alguém
não fica na burguesia
volta à barriga da mãe!
Volta à barriga da terra
que em boa hora o pariu
agora ninguém mais cerra
as portas que Abril abriu!
 
 
                 Lisboa, Julho-Agosto de 1975
 
 
 
ary dos santos
as portas que abril abriu (1975)
ary, obra poética
edições avante!
2017
 


 

24 abril 2025

juan vicente piqueras / testemunho do homem da gávea

 
 
 
Para dizer a verdade,
pareceu-me um gesto de presunção,
muito dele,
a urgência com que nos pediu
que o atássemos ao mastro
para escapar ao canto das sereias.
 
As sereias cantavam, é certo,
mas não exactamente para o seduzir.
 
Porque não a qualquer um de nós?
Porque teriam de pretender seduzir alguém?
Quem pode assegurar que não cantavam simplesmente?
Ou que estavam em silêncio e cada um de nós ouvia
dentro de si o seu próprio canto das sereias?
 
Era ele que lutava contra a sua vocação de perdediço.
Era ele que acreditava que as sereias o amavam.
Era ele que, com qualquer pretexto, nos punha às suas ordens.
Era ele que não sabia mais o que inventar
para adiar o nosso regresso a Ítaca.
 
Eu queria voltar à minha pátria, abraçar a minha mulher,
cuidar dos meus pais já velhos,
ver crescer os meus filhos.
 
Deu-nos a ordem e atámo-lo.
Por mim tê-lo-íamos deixado no mar alto,
tivéssemos rumado a Ítaca e ali teria ficado,
atado ao mastro, só, de novo à deriva.
 
E teria morrido assim, amarrado ao seu delírio,
enquanto as sereias continuavam, continuarão,
a cantar para ninguém, como sempre.
 
 
 
juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019





23 abril 2025

elio pecora / liberdade

 
 
 
Talvez esteja só nisto:
do fundo de uma escarpa
acenar uma saudação,
sobrevoar rasando
um aviso de morte,
escancarar as portas
da ausência,
procurar seguindo
no seu nome acentuado
a passagem obrigatória.
 
 
elio pecora
poemas escolhidos
novos poemas (inéditos)
tradução de simoneta neto
quasi
2008
 



22 abril 2025

denise levertov / noblesse oblige



 

 
Com grande clareza, grande exactidão, hoje
a montanha mostra-se
em toda a sua altitude, num apurado entendimento
do fôlego. Parece
mais próxima do que é costume;
ainda assim mantém
uma grandeza solitária, incontestada:
esta proximidade franca,
este modo de anunciar a primavera
enfim chegada, este cerimonioso
desnudar de seios nevados, como se
braços se espraiassem, não é
querer a intimidade.
                            (Entretanto
                       o sol de Abril, ainda frio,
                       floriu as pequenas margaridas,
                       tantas e humildes que se fazem espezinhar –
                       e que importa? Há em cada flor
                       a forma de uma gargalhada.)
A montanha prossegue graciosa
o seu sóbrio desvelamento.
 
 
 
denise levertov
este grande não-saber
trad. andreia c. faria e bruno m. silva
flâneur
2021