31 outubro 2024

rui diniz / o moribundo consigo

 
 
 
Quero ainda contemplar a tarde e acreditar
nela. Quero ainda estar vazio de coragem
alguma. Vazio como sempre estive.
Agora que o sol no olhar me arde
desejo crer nele até vê-lo apagado
em mim.
Oh o murmúrio desta certeza que me enche
de ser inteiro como o mistério e claro
como qualquer reflexo do rio. Tudo pára
para ser contemplado por mim.
A minha dor já quase me não pertence.
Já quase me não reconheço falando de mim.
E a minha vida não se torna presente
na minha memória que o tempo esgotou.
Quero ainda contemplar o que não farei
de novo, medir o cansaço dos meus olhos
e do meu verso. Quero deixar que chegue a noite
e a luz que lhe é própria, que chegue
e outra tarde, que eu possa contemplá-la…
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022





30 outubro 2024

rui costa / breve ensaio sobre a potência

 
 
 
4
as plantas treinam a paciência
dobrando mais os braços. doem
por cima das pedras, caminham
vagamente como animais sem
asas. as plantas respiram imitando
os peixes. mais tarde ancoram-se
à terra e voam rasurando a luz.
 
 
 
rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017




 

29 outubro 2024

egito gonçalves / inventário

 
 
 
O cidadão pacífico toma café e rói as unhas
enquanto os dias passam – o Sol, os cometas,
as searas, os Deuses, os fabricantes de calendários…
 
depois dos cafés o cidadão possui ainda os cinemas
e os namorados podem concorrer aos jardins miniatura
onde além da clássica relva e as 24 árvores
há ainda dois urinóis e três velhos próximos da noite.
 
Dos quinze em diante oferece-se uma mulher em decúbito dorsal
que alguns não aproveitam.
 
Depois morre-se e colocam-nos em cima
algumas plantas consideradas tristes.
 
 
 
egito gonçalves
o esperado fim do mundo já partiu
uma antologia
língua morta
2020
 



28 outubro 2024

emanuel jorge botelho / quase aforismo

 
 
 
percebi cedo que o mundo doía.
o medo ainda não tinha nome,
quando lhe paguei, com lágrimas,
o primeiro dízimo.
 
depois, foi só crescer.
 
 
 
emanuel jorge botelho
o livro das coisas ardidas
averno
2023
 




27 outubro 2024

andrea cohen / ilha deserta

 
 
 
Se tiver de ir
para lá, gostaria
 
de uma lista
telefónica sobre
 
a qual me possa sentar
numa cadeira –
 
gostaria
de acreditar
 
que sou uma criança
pela qual alguém
 
regressa.
 
 
 
andrea cohen
serenamente sobre as lanternas
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2024




26 outubro 2024

francisco urondo / carlos gardel

 
 
 
Estrangeiro do silêncio
num mundo arrasado; vertente da extrema melancolia
e da coragem e da velocidade do amor e do medo.
 
Dono da cidade, da sua branda memória
e da madrugada faminta e sem sentimento
e do supremo juízo dos vadios.
 
Cúmplice dos encontros,
Do bagaço que nos fez falar,
Louco da noite, despreocupado amigo da alba, senhor dos
                                                                          tristes.
 
 
 
francisco urondo
por alguma razão
antologia de poesia argentina
selecção e tradução de hugo miguel santos
contracapa
2024




25 outubro 2024

john updike / ferramentas

 
 
 
Dizei-me, como têm lucro os fabricantes de ferramentas?
Uso o mesmo martelo há quarenta anos. A chave de fendas
turva de ferrugem passou há muito tempo para a minha mão
jovem, o seu novo proprietário. Esquecidas, as ferramentas
esperam para serem usadas; o alicate, boca muita aberta,
dentes como um tubarão de banda desenhada; a chave inglesa,
mandíbulas num parafuso; a plaina ainda afiada para morder,
ondulante e cheirosa; o berbequim ainda bom para mastigar
o pinho, como um pensamento paciente; a fita métrica,
polegadas inalteradas apesar de eu ter escolhido; o esquadro
de carpinteiro, ainda inteiro e recto, embora eu me tivesse
desviado; o nível de madeira da escassa colecção
do meu pai. As suas formas persistentes impregnam a cava,
em parcimónia que envergonha a nossa vida perdulária.
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




24 outubro 2024

natércia freire / canção do verdadeiro abandono

 
 
 
Podem todos rir de mim,
Podem correr-me à pedrada
Podem espreitar-me à janela
E ter a porta fechada.
 
Com palavras de ilusão
Não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
Não tem vislumbres de além.
 
Não sou irmã das estrelas,
Nem das pombas, nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
De bicho que sofre as pedras
E se desloca de rastros.
 
 
 
natércia freire
rio infindável (1947)
antologia poética
assírio & alvim
2001
 




23 outubro 2024

pablo neruda / esquecido no outono

 
 
Eram sete e meia
do Outono
e eu esperava
não interessa quem.
O tempo
cansado de estar ali comigo
a pouco e pouco desandou
e deixou-me ali sozinho.
Fiquei então com a areia
do dia, com a água,
sedimentos
duma semana triste, assassinada.
 
– Que foi? – perguntaram-me
as folhas de Paris. – Quem é que esperas?
 
E assim fui várias vezes humilhado
primeiro pela luz que se apagava
depois por cães, por gatos e gendarmes.
 
Fiquei só
como um cavalo só
quando no pasto não há noite nem dia,
apenas sal do Inverno.
Fiquei
tão sem ninguém, tão vazio
que choravam as folhas,
as últimas, e depois
caíam como lágrimas.
 
Nunca antes
nem depois
fiquei tão de repente só.
E foi à espera de quem,
não me recordo,
foi tolamente,
passageiramente,
mas aquilo
foi a instantânea solidão,
a mesma
que se tinha perdido no caminho
e num instante como a própria sombra
desenrolou o seu infinito estandarte.
 
Então saí daquela
esquina louca
com os passos mais rápidos que tive,
foi como se fugisse
da noite
ou duma pedra escura e roladora.
Não é isto que eu conto
mas passou-se quando estava à espera
de não sei quem um dia.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




22 outubro 2024

julio martínez mesanza / a torre no descampado

 
 
Só à ordem aspiro, e à beleza
que em mulher não cabe. Só aspiro
à vida que não duvida, que cumpre
sem sombras os desígnios, sem intriga.
Eu quero a claridade das espadas,
a claridade de potentes formas.
No descampado a torre me deslumbra,
para a torre vou. Mesmo que me aguarde
a desdentada boca do escárnio,
a fraude da palavra do sofista,
a machadada dupla que o traidor ergue
um corpo de mulher ou só um corpo,
da torre avistarei a ignomínia.
 
 
 
julio martínez mesanza
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



21 outubro 2024

rui caeiro / apanhar as palavras mesmo do chão

 
 
 
Apanhar as palavras mesmo do chão
já pobres esvaídas maltratadas
 
e reuni-las no poema para que entre si
façam calor e companhia como os velhos
 
aqueles da casa de repouso de Camarate
em volta da mesa a beber a laranjada
 
aos golinhos – e a morte e a morte
 
 
 
rui caeiro
sobre a nossa morte bem muito obrigado
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019





20 outubro 2024

josé gomes ferreira / nos muros adolescentes

 
 
XV
 
Nos muros adolescentes
apareciam na cal
iniciações sagradas,
riscos, traços, curvas,
sóis estreitos de Vénus
– toda a geometria suja
dos alfabetos obscenos.
 
Sinais que nos guiavam
de muro em muro
para os lençóis de lama secreta
nas catacumbas.
 
 
 
josé gomes ferreira
poesia V
memória-I 1957-1958
portugália
1973



19 outubro 2024

al berto / doze moradas de silêncio

 
 
5
 
hortelã bravia esmagada contra o rosto
seiva morna sobre o ventre emaranhado nas trepadeiras
secas latas de conserva detritos de comida
um fio de azeite escorre da boca
 
louras flores murchas girassóis ladeando a estrada
jasmins de leite germinando no estrume
animais irreconhecíveis atravessam as veredas da noite
com um estrondo de lume que estilhaça
 
talvez seja uma hora da manhã em todos os relógios
longe daqui… preparam-se fogueiras pelas praias
silhuetas de corpos separam-se das chamas
caminham à procura doutros fogos segredados
 
alvéolos de sémen ardem… os sexos
em combustão no seio molhado de nocturnas conchas
rostos incendiados flutuam na frágil espessura da alba
regressam lentos à outra margem diluída na bruma
inacessível
 
 
 
al berto
doze moradas de silêncio 1978/1979
o medo
assírio & alvim
1997