04 março 2021

harold pinter / no palácio do imperador ao amanhecer

 
 
 
      O médico do século XVIII
Cobre de sanguessugas as narinas quebradas,
O louco e o alquimista ambos invocam
O grito do céu
O índigo favorece o olhar.
Agora tímidas marionetas
Desatam-se como caracóis.
Um outro Parténon desfaz-se em areia.
Mas, o caracol do amor ainda
Ilumina os conveses.
Na Quadragésima, em Março
As bolhas prendem as rãs
Em sacos transparentes.
Em Novembro, no São Martinho, uma doninha
Num pesadelo morde as coxas de um amante.
Os olhos corroem o manto da faia.
 
      Pedra muda – o tempo uma miragem,
Enterrado o mundo
Na fundida aldeia japonesa,
O gongue de madeira do templo ressoa
Onde o arroz se desagrega.
Rebentando as contas, as mangas,
Que ao início irradiavam.
E agora ouvimos a aflição do silêncio.
 
                                                                                                                                                                     1949
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 



03 março 2021

jacques prévert / vida em família

 
 
A mãe faz tricô
O filho faz a guerra
A mãe acha isso natural
E o pai? O que faz o pai?
Faz negócios
A mulher faz tricô
O filho a guerra
E ele negócios
O pai acha isso natural
E o filho e o filho
O que é que o filho acha?
Não acha nada absolutamente nada
Acha que a mãe faz tricô que o pai faz negócios e que ele faz a
      guerra
Depois de fazer a guerra
Fará negócios com o pai
A guerra continua a mãe continua a tricotar
O pai continua a fazer negócios
O filho foi morto já não continua
O pai e a mãe vão ao cemitério
O pai e a mãe acham isso natural
A vida continua com o tricô, com a guerra, com os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007





02 março 2021

joaquim manuel magalhães / abriu a porta

 
 
Abriu a porta. Os pés
Acariciam o soalho.
Lírios novos nos taipais.
O tanque, a barreira de silvas.
Atravessou pelo pinhal.
 
O dobre da luz passa nos montes.
Os coelhos abrigam-se no tojo.
Perdizes feridas na caruma
escavam para adormecer.
A tristeza de alguém que ri.
 
Espero até ao fim das brumas.
No largo do fortim abandonado
sentamo-nos os dois. Ondas
serenas, rouxinóis.
 
 
joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985




01 março 2021

jorge velhote / janela indiscreta

  
 
O jardim que rodeia a casa antiga
é um sobressalto no silêncio
penumbroso da luz. A sombra
das tuas pernas, movendo-se,
desperta-me a boca. Um arbusto que pulsa como um peixe
percorre-me repousadamente.
 
No limite contemplado das janelas dignas
de oitocentos, a névoa desce com a noite,
estreita o vento na fralda da camisa, frustra
a inquieta adolescência de um rosto impúdico.
Abre janelas ao murmúrio do tempo,
ao vagaroso esvoaçar
do pensamento. Irremediavelmente, a barba cresce
 
fiel à distância.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988






28 fevereiro 2021

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi / morte súbita

 
 
trago comigo o meu número de telefone
o meu nome e endereço
e assim se de súbito cair morto
podereis identificar-me
e meus amigos virão
 
Fancy, aconteça o que acontecer
não venhas.
ficarei na morgue duas longas noites
frios fios de telefone agitar-se-ão na noite.
a campainha começará.
sem resposta… uma vez… duas.
 
alguém irá ter com a minha mãe
e lhe dirá que eu morri
minha mãe essa triste camponesa
como caminhará só pela cidade
levando o meu endereço!
como passará a noite a meu lado
no átrio completamente mudo
subjugada pela solidão
confortada pelo seu recolhimento em dor
quando pondera só
por sobre as suas penas secretas
em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas
 
quem dera que a minha mãe tivesse
tatuado o meu braço de rapaz
assim não me perderia
assim não trairia meu pai
assim o meu primeiro rosto
não se perderia sob o meu segundo rosto.
quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio
depois de terem passado duas horas diante de mim
durante as quais não trocámos olhares
ou vimos diferentes cenários
quando vi que a vida não tem loucura
e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos
sinto como se estivesse realmente morto
jazendo silenciosamente
contemplando este mundo agonizante.
 
 

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves 
assírio & alvim
2001





27 fevereiro 2021

rui caeiro / na minha terra

 
 
Na minha terra, no capítulo das figuras típicas, havia muitos velhos, alguns deles muito velhos mesmo. A maior parte sentados, imóveis, pelos cafés, pelas tascas, pelos bancos de pedra da praça. Concentrados na sua solidão, no seu silêncio teimoso, com a pirisca já consumida a pender dos lábios…
 
Ainda me lembro de um ou outro desses magníficos velhos, por os considerar autênticos filósofos. Partidários talvez de uma filosofia concisa, meio empírica e meio pragmática, ou tão-só de uma filosofia calada, de um género não consagrado ainda.
 
 
 
rui caeiro
pranto por vila viçosa
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




26 fevereiro 2021

jorge luís borges / uma rosa e milton

  
De tantas gerações de inúmeras rosas
Que se perderam no fundo do tempo
Quero roubar só uma ao esquecimento,
Uma sem marca ou sinal entre as coisas
Que existiram. Oferece-me o destino
O dom de nomear pla vez primeira
Essa flor silenciosa, a derradeira
Rosa que Milton do rosto aproxima
Sem ver. Ó amarela ou tu, vermelha,
Branca rosa de um jardim apagado,
Deixa magicamente o teu passado
Imemorial, e neste verso brilha,
Oiro, sangue ou marfim ou tenebrosa
Como nas suas mãos, oculta rosa.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998





25 fevereiro 2021

sophia de mello breyner andresen / inverno

 
 
Este Inverno é longo gélido
E confuso
Na varanda só o vento passa
E o vento olha-nos de esguelha quando passa
 
Nenhum poema aflora
Entre as linhas finas e aéreas
Da página em branco
 
 
Inverno de 1999
 
 

 
sophia de mello breyner andresen
poemas dispersos
obra poética
assírio & alvim
2015





 

24 fevereiro 2021

arthur rimbaud / a minha boémia

 (Devaneio)
 
 
Assim ia eu, com os punhos nos bolsos rotos;
E o meu casaco que também se tornara ideal;
A cabeça descoberta, Musa!, e a ti sempre fiel;
Ah! Com que esplêndidos amores não sonhei!
 
As minhas únicas calças tinham um enorme buraco.
– Polegarzinho sonhador, pelos caminhos desfiava
As minhas rimas. O meu albergue era a Ursa Maior.
– As minhas estrelas faziam no céu um suave frufru.
 
Ficava a ouvi-las, sentado à beira dos caminhos,
Nessas belas noites de Setembro em que sentia no rosto
Como um vinho retemperante, as gotas do orvalho;
 
Quando, rimando no meio das sombras fantásticas,
Como as cordas de uma lira, puxava os atacadores
Dos meus sapatos feridos, um pé junto do coração!
 
 
 
jean-arthur rimbaud
poesia
obra completa
trad. miguel serras pereira e joão moita
relógio d´água
2018





 

23 fevereiro 2021

paul celan / nas estrias

 
 
NAS ESTRIAS
de moeda celeste pela fenda da porta,
forças tu a palavra
fora da qual rolei,
quando meus punhos trémulos
o tecto sobre nós
quebravam – ardósia por ardósia,
sílaba a sílaba – pelo amor
de um brilho
cobre, no prato do mendigo,
la em cima.
 
 
 
 
paul celan
trad. antónio magalhães
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990






22 fevereiro 2021

konstantinos kaváfis / a mesa do lado

 
 
Terá apenas vinte anos.
E, no entanto, estou certo de que, quase os mesmos
anos antes, gozei desse mesmo corpo.
 
Não é de modo algum excitação erótica.
Há pouco tempo que entrei neste casino:
nem sequer tive tempo de beber demais.
Esse mesmo corpo gozei-o eu.
 
Se não recordo onde – não importa o ter esquecido.
 
Ah, e agora, ei-lo que está sentado na mesa do lado,
reconheço cada gesto seu – e sob a roupa
volto a ver os amados membros nus.
 
1918
 
 
 
konstantinos kaváfis
kosntantinos kaváfis, 145 poemas
tradução de manuel resende
flop livros
2017





21 fevereiro 2021

antónio maria lisboa / rêve oublié

 
 
Neste meu hábito surpreendente de te trazer de costas
neste meu desejo irreflectido de te possuir num trampolim
nesta minha mania de te dar o que tu gostas
e depois esquecer-me irremediavelmente de ti
 
Agora na superfície da luz a procurar a sombra
agora encostado ao vidro a sonhar a terra
agora a oferecer-te um elefante com uma linda tromba
e depois matar-te e dar-te vida eterna
 
Continuar a dar tiros e modificar a posição dos astros
continuar a viver até cristalizar entre neve
continuar a contar a lenda duma princesa sueca
e depois fechar a porta para tremermos de medo
 
Contar a vida pelos dedos e perdê-los
contar um a um os teus cabelos e seguir a estrada
contar as ondas do mar e descobrir-lhes o brilho
e depois contar um a um os teus dedos de fada
 
Abrir-se a janela para entrarem estrelas
abrir-se a luz para entrarem olhos
abrir-se o tecto para cair um garfo no centro da sala
e depois ruidosa uma dentadura velha
E no CIMO disto tudo uma montanha de ouro
 
E no FIM disto tudo um Azul-de-Prata.
 
 
 
antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995
 




20 fevereiro 2021

josé tolentino mendonça / a estrada branca

 
 
Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto
 
folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
 
Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate
 
 
 
 
josé tolentino mendonça
a estrada branca
assírio & alvim
2005