08 julho 2015

camilo pessanha / floriram por engano as rosas bravas






Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze — quanta flor! —, do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?




camilo pessanha




07 julho 2015

sophia de mello breyner andresen / carta aos amigos mortos


Maria Barroso (2-05-1925 / 7-07-2015)






Eis que morrestes - agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância -
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.

E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e do meu canto.



sophia de mello breyner andresen
livro sexto
1962




06 julho 2015

martin earl / no instituto



Peter  nadava por entre palavras, arrastando o corpo
com os músculos da boca. Nasceste
numa bicicleta a caminho de uma cimenteira.
À tua mesa o pão ia de mão em mão, resmungando.
Os olhos deles pareciam codornizes dispersas
debaixo da atalaia. As vozes eram o arfar reverso
dos fios, quando os eléctricos tocavam o passeio. Misha
escutava intensamente enquanto o assunto mudava para o-de-
                                                                                 -coração-despedaçado,
uma marca verde no papel diante dele, como Bach.
Acendeste o fogão de louça amarela com carvão
ordinário, grácil como uma frase. Pontus mentiu sobre Belman,
alterou os factos da biografia, para se
distanciar, como o sossego do pátio por detrás
do instituto. Por detrás de certas palavras os homens moveram-se
como ficheiros por detrás de divisórias, já não
pensando em si como almas dentro de corpos, mas
como fundas gavetas de metal sobre calhas. Peter
voltou a Rilke, as oitavas de uma única frase,
a mão com a batuta tecedeira, rolando sobre si própria
no ar, que parecia brilhar de calor cansado.
O poema acabou, segundo Pontus, entre
duas cidades, com alguém que perde a capacidade
de agir, entre uma fieira de prédios, de altos arcos
abatidos, neve no ar, mas sem nevar.



martin earl
poesia do mundo
trad. maria irene ramalho
edições afrontamento
1995



05 julho 2015

marin sorescu / simetria



Vagueava,
Quando, de súbito, à minha frente
Se abriram dois caminhos:
Um para a direita
E outro para a esquerda
Segundo todas as regras de simetria.

Parei,
Semi-cerrei os olhos,
Esbocei com os lábios uma dúvida,
Tossiquei,
E segui pelo da direita
(Precisamente pelo que não devia,
Como se provou mais tarde).

Só eu sei o que foi esse caminho,
É escusado dar pormenores.
E depois, à minha frente, abriram-se dois
Precipícios:
Um à direita,
Outro à esquerda.
Lancei-me no da esquerda,
Sem pestanejar, sem tomar balanço,
E catrapumba lá vou eu pelo da esquerda abaixo,
Que, ai de mim, não estava forrado de penas!
Rastejei, disposto a continuar.
Fui rastejando por algum tempo
E de súbito à minha frente
Abriram-se dois grandes caminhos
«Já vão ver» - disse para comigo -
e tomei outra vez o da esquerda,
para me vingar.
Errado, completamente errado, o da direita era
O verdadeiro, o grande caminho, ao que dizem.
E no primeiro cruzamento
Dei-me de corpo e alma
Ao da direita. Mas também agora
Era o outro que eu devia ter escolhido, o outro…

Agora a merenda estava quase no fim,
Na minha mão o cajado envelhecera,
Já não dava rebentos
Para eu descansar à sombra
Quando me domina o desespero.
Os ossos gastaram-se nas pedras,
Rangem e praguejam contra mim
Que perseverei no erro…
E olhem: agora à minha frente abrem-se
Dois céus:
Um à direita, outro à esquerda.



marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997




04 julho 2015

herberto helder /ciclo



IV

Mais uma vez a perdi. Em cada minuto
a perco. Longe revolteiam suas palavras
e seus dedos depositam-se
em qualquer parte.

Se a busco? Esfaimadamente a busco.
Tacteando com a memória a forma com que era
nas noites de amor.
Reconstruindo sua espécie de enorme sorriso.
Busco-a sim, inventando subtilmente
o impudor de cada entrega,
a dádiva sobrenatural da sua carne aberta.
Mais uma vez foi destruída pela vida feroz,
e minha boca não suporta sem palavras
essa coisa mortal.
Sangrentas são as palavras e deixam vestígios
através do tempo.

Longe, naquilo que o acaso teceu,
elaboram-se os gestos. No casulo remoto
forma-se a distância
entre a sua fonte e a minha fonte.
- Com que ser se entende agora seu ser oculto?
E as voltas obscuras e difíceis
dos instintos.

Ela semeia-se. E alguma coisa misteriosamente
a fecunda.
- Ela é colhida por um vento e eu estou bêbedo
de coisas inextricáveis.
Sei que ela acontece. Um círculo de seda
forma-se prementemente,
e ela acontece.

A minha fonte não me dá ironia,
nem um fogo,
uma estrela violenta.
- Fico a saber que ela longe cresce
como outra folha de erva.

Nada em mim suporta. A memória
desimpede-lhe os pés, e beija-os.
Minhas pálpebras exaltam-na.
E a fonte, essa, recusa-a arduamente.

Recebo humildemente esta desordem
da carne, das palavras,
dos dedos bruscos do tempo.
- Recebo tudo, e canto como quem deixa um sinal
maravilhoso.



herberto helder
ciclo, poema IV
poesia toda
assírio & alvim
1996




03 julho 2015

tatiana faia / auto-retrato em hora inglesa



tirou da mala os dicionários de grego pôs
na estante uma flor de palha cor-de-laranja
seis imagens de w. b. yeats uma fotografia
tirada no ribatejo em 1976 que exibia
homens pendurando-se em varandas
à passagem de um bezerro desgarrado

quando lhe falou disso disse
não fthonos mas coisa triste com
rabo e cornos de cinza à maneira
dos portugueses dos ibéricos
acrescentando que não seria a isso
que sucumbiria porque notara
como qualquer poeta romântico
tonto e cheio de auto-comiseração
que não podia escapar àquele peso
em manuais vulgarmente designado
por sentimento do trágico

viu então pelas janelas na sala
da lower Reading room o anjo
elevando-se acima de tudo
por sobre as janelas ocre segurando
a trombeta a mão partida envolta em gesso
posta à altura do peito a chuva a falta
da caneta certa para te escrever isto
o não lhe ter sobrado nenhuma
outra língua qualquer outra fala



tatiana faia
relâmpago
revista de poesia 29-30
out 2011 abril 2912




02 julho 2015

pentti saaritsa / de longe olho os heróis



De longe olho os heróis,
o heroísmo
Dos cérebros esperamos uma tempestade
 
Vivemos numa época inquietante
na qual os que vêem claro                              
não dizem palavra                           
 
Ando pelos cantos, busco os meus inimigos
e quem são eles, então?
Sou demasiado dócil.
Os inimigos já estão tão perto
que é difícil escrever uma palavra sem os ofender.



pentti saaritsa
poemas
tradução de egito gonçalves 




01 julho 2015

philip larkin / simpatia em branco maior


Quando atiro quatro cubos de gelo
Tilintando para um copo, e acrescento
Três doses de gin, limão em rodela,
Mais um quarto de tónica, que verto
Espumando até que afogue, jorro a jorro,
Tudo o resto, até às bordas do copo,
Ergo a bebida no silêncio de um voto:
Ele dedicou a sua vida aos outros.

Enquanto outros usavam como roupas
Os seres humanos no seu dia-a-dia
Eu empenhei-me em mostrar, a quem me cria
Capaz de o fazer, as montras perdidas;
Não resultou, com eles ou comigo,
Mas todos assim ficaram mais próximos
(Ou tal se pensou) de todo o imbróglio
Do que se o perdêssemos cada um por si.

Boa pessoa, um fulano às direitas,
Sempre na linha, um tipo impecável,
Um ás, o máximo, um gajo porreiro,
Não lhe chegavam nem aos calcanhares;
Que chata teria sido esta vida
Se ele não tivesse andado por cá;
Um brinde, que alma mais branca não há!
Não sendo embora o branco a minha cor preferida.

  


philip larkin
inimigo rumor/15
trad. rui carvalho homem
cotovia
2003




30 junho 2015

nikos kavvadias / mareação



O velho barco do Captain Jim
Aquele em que vós também partis
Já está carregado de haxixe
E aponta a proa ao mar sem fim

Derivamos há meses sem tino
E se o tempo nos der rédea larga
Antes de chegarmos ao destino
Já teremos fumado a carga

Navegamos por um mar fervilhando
De ma espécie de planta esquisita
Irónico um velho sol nos fita
Piscando o olho de vez em quando

Nada resta nos porões sombrios
─ Como se esfumara quilos mil? ─
Esperam-nos cachimbos vazios
E guardas fronteiriços no Chile

Está esquecida a Estrela Polar
As âncoras no mar transviadas
Por cima dos botes a oscilar
Há doze sereias enforcadas

A Górgona à vante certo dia
Atirou-se ao mar embriagada
Levando a nadar de companhia
De Colombo as cinc´almas penadas

E depois à praia o mar picado
Nos há-de atirar feitos novelo
monstros pintados de encarnado
com penas de gaivota no cabelo


nikos kavvadias
nevoeiro
1947
inimigo rumor, nº 14
traduzido do grego por manuel resende
livros cotovia
2003





29 junho 2015

antónio franco alexandre / quando falo de lugares cidades países



quando falo de lugares cidades países
não são viagens não são imagens para ter à sobremesa ou vestidas de cão
à hora de fugir no saco com gavetas incerto voante por Sintra
de nada servirá sentares-te ao espelho no meio de tanto gado e porcelanas
sorridente amável satanás de província
abres os olhos sobre os teus olhos intemerato pensa-dor
e as coisas ardem por dentro alheias á tua memória
a terra imóvel apesar de toda a árdua astronomia E eis senão quando


as carruagens apressam o passo para o cais
cavalos pesarosos com coloridas grinaldas militares É altura de exclamares avidamente
Paris, Berlim, São Petersburgo, o Mundo! Como quem engole lorenine
antes da neve pedra cair por dentro como um coágulo de vozes
um pássaro cai na água adormecido por um tiro arriscando-se a uma morte prematura
a cada passo tropeço em ti E este é um poema de amor encomendado de véspera
embrulho-me nele acordo com a tua boca húmida nos cabelos
não direi que te amo

  

antónio franco alexandre





28 junho 2015

alberto caeiro / aquela senhora tem um piano



Aquela senhora tem um piano
Que é agradável mas não é o correr dos rios 
Nem o murmúrio que as árvores fazem ...

Para que é preciso ter um piano?
o melhor é ter ouvidos
E amar a Natureza.
  


alberto caeiro





27 junho 2015

kiki dimoulá / 1 de abril



Abril
─ o famoso jardineiro ─
pulou de manhã para o meu jardim maninho
e plantou uma maravilhosa rosa.

A primavera,
escondida atrás da rosa,
vê o meu espanto e ri-se,
e com a minha alegria sem limites
condecora o mago jardineiro.



kiki dimoulá
inimigo rumor, nº 14
traduzido do grego por manuel resende
livros cotovia
2003




26 junho 2015

guillevic / carnac (fragmentos)



1

Mar à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,

Para melhor os receber.


2

Algum dia brincaremos,
Por uma hora que seja,
Nada mais que alguns minutos,
Oceano solene,

Sem que tenhas tu esse ar
De outra coisa te ocupar?


3

Sabes de mais que todos te preferem,
Que mesmo aqueles que te deixaram

Nos trigos te reencontram,
Na erva te procuram,
Na pedra te escutam,
Sem que jamais consigam agarrar-te.


4

Tem qualquer coisa a ver
Com a noção de Deus,

Água que já não és água,
Poder desprovido de mãos e de instrumentos,

Peso sem emprego
Para quem o tempo não existe.


5

Sejamos justos: sem ti
De que me servia o espaço
E as rochas de que serviam?


6

Não temos margens, na verdade,
Nem tu nem eu.


7

Ouve bem o que faz
A pólvora explodindo.

Ouve bem o que faz
O frágil violino.


8

Sei bem que há outros mares,
Mar do pescador,
Mar dos navegadores,
Mar dos marinheiros e guerreiros,
Mar dos que querem morrer no mar.

Não sou um dicionário,
Falo só de nós dois

E quando digo o mar
É sempre o de Carnac.


9

As mesmas terras sempre
A teres de acariciar.

Jamais um corpo novo
Que possas ensaiar.


10

As profundezas, que procuramos,
Serão as tuas?

As nossas têm poder de chama.


11

Demasiado largo
Para ser cavalgado.

Demasiado largo
Para ser estreitado.

E flácido.


12

Se acaso acreditas no valor dos sons
Deves sentir-te arrepiar
Só de ouvir este nome de mar.


13

Tu vais e vens
Mas dentro de limites

Fixados por uma lei
Que não chega a ser tua.

Nós temos em comum
A experiência do muro.


  

guillevic
carnac (1961)
vozes da poesia europeia III
traduções de david mourão ferreira
colóquio letras 165
fundação calouste gulbenkian
2003