26 maio 2025

josé agostinho baptista / encontro

 



 

 
está sentado
ligeiramente inclinado para sul
e o olhar detém-se ao alto        à direita
nas amarelas planícies de van gogh       pintor
que muito o impressionara na sua agitada juventude.
 
continua sentado
ligeiramente inclinado para sul
adormecido nos pomares abundantes nas chuvas que
desde o outono passado humedecem a ilha
o rosto calmo
de uma serenidade permeável e consentida
e dorme ainda.
 
 
 
josé agostinho baptista
biografia
assírio & alvim
2000
 



25 maio 2025

alexandre o'neill / amigos pensados: manuel

 
 
 
Manuel sai de amador às quatro para a pesca,
passa-me à porta, faz com a tosse o ponto e vírgula,
escarra como se fosse no país.
 
Com duzentos anzóis há quase sempre um peixe,
que nós conversamos quando, regressado,
Manuel abre a oficina e recomeça a mesa
que talvez acabe para mim.
 
 
 
alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000
 




24 maio 2025

fernando assis pacheco / cuidar dos vivos

 
 
 
Como as ordens de Sebastião José
de Carvalho e Melo no terramoto
«cuidar dos vivos, enterrar os mortos»,
digo deste amor que tive
pior que terra sacudindo-se,
 
em que morri, matei, enchi a noite
de gemidos agudos sob as pedras
(onde era a rua, gente, Alfama, pombos),
Eugénio dos Santos para riscar Lisboa.
 
Porque é preciso agora cuidar dos vivos,
pôr os mortos no seu lugar:
que não tomem o lugar dos vivos.
Abrir as janelas ao sol de Maio,
beber o sol, beber Maio e a vida.
 
Moveu-se a terra, caíram casas, largou-se
o rio Teo por Lisboa dentro.
Ó amor sepultei-te, quero um amor
mais firme do que a terra, mais veloz que o vento
uma cidade nova nos meus olhos.
 
 
 
fernando assis pacheco
cuidar dos vivos (1963)
a musa irregular
tinta-da-china
2019




 

23 maio 2025

fernando luís sampaio / mínimo de existência



 
I
 
Chega a primavera com as folhas
Desavindas, o céu desatrelado invade
Trincheiras e monturos, aqui tu não vens,
Fechas os olhos para impedir
O peso do horizonte, o odor
Dos corpos que já não cantam,
Das mãos que pacíficas ainda
Trazem um pequeno lume, mas tu
Não vês, são pedaços reluzentes,
Montículos de mica sem boca e rosto.
Quando tudo terminar, mas nada termina
De verdade, sob
O silêncio destas ruas ficarão
Os nossos sonhos – e não voltes a falar
Do mar, nem das nuvens harmoniosas,
Porque a morte não é um vago vocábulo.
 
 
II
 
O teu corpo assim-sim
É uma galáxia compacta, sem saída
Ou entrada, uma espécie
De paisagem do que ficou,
Do que vai ficando
Do clamor das matinas.
És inteiro em partes iguais,
Como quem parte e reparte
E perde a melhor parte, e remendas
O erro com outro erro,
O teu mínimo de existência.
 
 
III
 
O que resta dos dias pardos
Vem bater à tua porta,
Qual mão espectral do destino.
A copiosa escuridão mete-se
A caminho, importuna a clareza do verso.
 
Sob o detrito da língua
Faísca o fio da espada.
 
 
IV
 
Um coração fechado só abre feridas.
Afinal do que falas?
O que dizes p’lo que fica
Por dizer?
Éramos muito jovens e a vida
Ainda nos desejava
Com muitas madrugadas e
A floração do desejo nas crinas
Marítimas – uma constelação inteira
A colapsar sobre nós.
Nenhuma memória é residência fiável.
Afinal, do que falas então?
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/24
colectivo de poesia
maio/agosto 2025
 



 

22 maio 2025

victor oliveira mateus / monólogo do estrangeiro

 
 
 
de milagres nada sei
nunca vi pão transformando-se em rosas
nunca ouvi vozes no alto da montanha
nem anjos à minha volta
tocando cítara
 
de milagres sei apenas o que li
em monges profetas santos
mas tudo me parecia exterior
longínquo mesmo
 
de milagres sei
no entanto
esta hipótese de ter podido ser nada
mas afinal todos os dias abrir os olhos
 
abrir os olhos e ver
árvores rios pessoas
enfim
este milagre imenso
que diariamente vou vivendo
o melhor que consigo
e sei
 
 
 
victor oliveira mateus
uma casa no outro lado do mundo
labirinto
2021




21 maio 2025

maria f. roldão / imunidade




 

 
Salto aquela parte em que é
preciso lavar as mãos antes
 
do acto. Entro directamente
na parte das bactérias em
 
que o sujo é belo e a vida
não admite lavagens.
 
 
 
maria f. roldão
a cadeira de mogno
edição do autor
2025
 




 

20 maio 2025

tiago araújo / as maçãs prateadas da lua

 
 
 
os homens fumam cigarros consumidos. inteiros na dupla brisa alveolar. e as mulheres cantam por uma. chuva prateada de mercúrio. que multiplique os rostos. espelhados na gordura das gotas.
 
à luz laranja das garrafas de cerveja. as mãos guardam um mistério mais profundo. actuam lentas sobre as mesas. à luz que atravessa a roupa estendida os rostos. são mais suaves. escondem um segredo: a memória do sol; o esquecimento de serem maçãs prateadas da lua.
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004




19 maio 2025

izidro alves / estratégia de guerra

 
 
 
Não tem importância
A camisa ensanguentada
Estendida no arame farpado
Mas tem.
 
 
 
izidro alves
cédula do mundo
labirinto
2025





18 maio 2025

antónio franco alexandre / dos jogos de inverno

 
 
 
4
 
por um pequeno buraco, como é costume, saio à superfície anónima da neve
um campo todo em si aberto um tanto à tua semelhança Tu que
não começas nem acabas Talvez um dia deixes de lado o mundo para passar
                                                                       [a outra coisa E nós
enquanto se faz tarde subimos as colinas num feérico assento
só para sentir a boa indiferença do vento
e as árvores que se afastam como arrastadas para outra noite
Tu que abriste os buracos do corpo E assim ficámos
surpresos por um rastro de gente na relva
 
ainda não é esta a devida maneira de dizer as verdadeiras coisas falsas Por exemplo
os nomes vários da luz do fim do dia
nós os mais velhos podemos exclamar acesos num entusiasmo e misturar
o passado com o futuro que só existe levemente ao lado
e adivinhar no silêncio dos barcos o disfarce do jovem herói
e bater com a sandália nas portas em sinal de grande impaciência
ainda assim continuaremos a esvaziar o poço com a canga nos ombros
senhores deste pequeno inferno de trazer pelo mundo
 
por cima o céu por mais que digam continua fixo excepto quando
na larga noite as estrelas se separam
lançadas pela pista lisa só as ouvimos cintilar
incoerentes
 
 
 
antónio franco alexandre
dos jogos de inverno
poemas
assírio & alvim
1996
 


17 maio 2025

herberto helder / fragmento do cairo

 
 
 
Quando eu a cinjo e ela me abre os braços,
sou como um homem que regressa da Arábia,
impregnado de perfumes.
 
                                               *
 
Desço o rio numa barca,
ao ritmo dos remadores.
Com um feixe de canas ao ombro,
vou para Mênfis,
e direi a Ptah, senhor da verdade:
«Dá-me esta noite a minha amada.»
Este deus é como um rio de vinho,
com seus maciços de canas.
E a deusa Sekmet é como se fosse a sua moita de flores.
E a deusa Earit, seu lótus em botão.
E o seu lótus aberto, o deus Nefertum.
- E a minha amada será feliz.
 
Levanta-se a aurora através da sua beleza.
Mênfis é um cesto de tomates
posto em frente do deus de rosto puro.
 
                                               *
 
Bom é mergulhar, bom,
ó deus meu amigo,
é banhar-me diante de ti.
Adivinhas-me, quando se molha
minha túnica de fino linho real.
E juntos entramos nas águas,
e à tua frente eu saio das águas,
agarrando entre os dedos
um estupendo peixe encarnado.
– Olha para mim.
 
                                               *
 
Tanto se alvoroça meu coração, de puro amor,
que metade da minha cabeleira se desfaz,
quando corro ao teu encontro.
 
 
Para que me vejas sempre igual e bela
diante de ti,
eu componho os meus cabelos.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
o bebedor nocturno (versões)
poemas do antigo egipto
assírio & alvim
1996





16 maio 2025

nuno júdice / preparativos de viagem

 
 
 
Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
 e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.



nuno júdice
50 anos de poesia
antologia pessoal (1972-2022)
dom quixote
2024





 

15 maio 2025

gastão cruz / o tempo

 
 
 
Vivi onde as estrelas enegrecem
na luz intermitente
 
Intervalos longínquos
ocultaram do meu olhar o tempo
 
Desisto dele
um cadáver em chamas me vence
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




14 maio 2025

pedro tamen / num outro mar que desses morreria

 
 
 
Num outro mar que desses morreria
e não invejo, pois, a só migalha
que a mão que tens mais leve certo dia
a outros pelo vento cega e espalha.
 
A mim, amor, só cabe, qual convém
para o centro da terra, teu miolo;
e, mais, do que isso, a tua chaga-mãe,
a perfeita descida do teu colo,
 
o lado fora, e nele o imo expresso
nos acidentes líricos do leito
em que, de ter-te, só me tenho e esqueço.
 
Em nada tenho tudo, dito e feito,
e nisso tens a estrela que mereço
brilhando perto, ao fundo do teu peito.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
os quarenta e dois sonetos (1973)
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995