15 maio 2025

gastão cruz / o tempo

 
 
 
Vivi onde as estrelas enegrecem
na luz intermitente
 
Intervalos longínquos
ocultaram do meu olhar o tempo
 
Desisto dele
um cadáver em chamas me vence
 
 
 
gastão cruz
as pedras negras
os poemas (1960-2006)
assírio & alvim
2009




14 maio 2025

pedro tamen / num outro mar que desses morreria

 
 
 
Num outro mar que desses morreria
e não invejo, pois, a só migalha
que a mão que tens mais leve certo dia
a outros pelo vento cega e espalha.
 
A mim, amor, só cabe, qual convém
para o centro da terra, teu miolo;
e, mais, do que isso, a tua chaga-mãe,
a perfeita descida do teu colo,
 
o lado fora, e nele o imo expresso
nos acidentes líricos do leito
em que, de ter-te, só me tenho e esqueço.
 
Em nada tenho tudo, dito e feito,
e nisso tens a estrela que mereço
brilhando perto, ao fundo do teu peito.
 
 
 
pedro tamen
escrito de memória
os quarenta e dois sonetos (1973)
poesia 1956/1991
círculo de leitores
1995




 

13 maio 2025

antónio osório / e súbito na rua desfilaram

 
 
 
E súbito na rua desfilaram
os fatigados elefantes
e símios, bobos de bobos, anões
falsamente ledos, a trapezista
que me deu vontade de chorar,
aqueles seres, os palhaços, que traziam
o admirável grotesco dos homens,
os cavalos, brancos, já por sua idade
e a jaula viajante dos leões,
estendidos, expectantes como sáurios.
E por uma contorcionista,
que torturava o corpo,
apaixonei-me: enredada em mim,
como serpente, estava a sua alma.
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
ponte velha
editorial presença
1982
 




12 maio 2025

fernando guerreiro / a fúria da razão

 
 
 
Diz-se que os cegos não conhecem a luz, talvez porque
para a razão o sentimento lhes reservou outros caminhos.
O melhor, contudo, é não acreditarmos nestas histórias.
É vê-los cair, arrastando na queda os instrumentos
de que se servem para nos entreter os sentidos.
também não se atrevem a atravessar florestas
e quando a chuva cai, choram convulsivamente.
Ratos devoram-lhes o cérebro e arrastam segredos
para o cemitério. Para que quereriam a luz?
mesmo quietos é difícil não perceber a violência.
Apenas uma fúria incomunicável que os legitima
por dentro. É sem palavras – ou imagens – o pensamento.
Quando juntos, abandonam as famílias – e riem-se
Se, à sua passagem, alguém lhes pede música.
 
 
 
fernando guerreiro
poesia digital
7 poetas dos anos 80
campo das letras
2002
 



11 maio 2025

amadeu baptista / o centro do mundo

 
 
13
 
A asa ferida da pequena perdiz
concilia-te agora com o poder do sol.
 
Sobre o centro da luz o curativo vinga
o absoluto abandono em que te encontrei.
 
 
 
amadeu baptista
arte do regresso
campo das letras
1999






10 maio 2025

jorge melícias / são belos os instrumentos da minha morte

 



 
 
São belos os instrumentos da minha morte
nas suas mãos, a destreza da ira
sobre os trépanos, a forma
como o grito se abre de cânulas.
 
 
 
jorge melícias
incûbus
quasi
2004
 



09 maio 2025

joão pedro grabato dias / a arca

 
 
 
CCLXXVI
 
Não fujas do teu medo procurando
a tua audácia. Isto é só vestir
com outra roupa o mesmo espanta pássaros.
Se dás um nome ao medo, dás-lhe sombras
onde melhor te esconde a natureza
verdadeira, a que importa. Vais mais fundo
não à sua raiz, mas às carências
que elas são a raiz, mas às carências
que elas são a raiz do conflito.
Aparências opostas do real,
Teu medo ou tua audácia nada são.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
a arca, ode didáctica na primeira pessoa, 1971
tinta da china
2021
 



08 maio 2025

adília lopes / irmã barata, irmã batata

 
 
 
Fez-se do sexo um bicho de sete cabeças. Parece que mais vale morrer violada do que virgem, quando isso é um grande disparate. A castidade é um valor, infelizmente confunde-se castidade com ausência de relações sexuais e de masturbação. O sexo não é porco nem deixa de ser. Nada na vida dá a garantia de ser limpo nu liso inteiro. Nem aquele quartinho em que está o eu, um quartinho que seja seu, porque mesmo o eu é o outro. Às vezes tenho medo de me despir na rua e de falar muito alto. Chamo a isto o sentimento da irrealidade.
 
 
 
adilia lopes
irmã barata, irmã batata (2000)
caras  baratas
antologia
relógio d´água
2004




07 maio 2025

adam zagajewski / a europa adormece

 
 
 
                                    para Gosia
 
 
A Europa adormece; em Lisboa
franzem as sobrancelhas velhos xadrezistas.
 
No céu de Cracóvia paira um nevoeiro cinzento
que apaga os contornos das veneráveis velas.
 
O Mediterrâneo embala-se suavemente
e daqui a pouco vai-se transformar numa canção de embalar.
 
Quando a Europa finalmente cair num sono profundo,
a América há-de velar
 
o pobre, mudo mundo
desconfiadamente, como uma irmã mais nova.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017




06 maio 2025

a. m. pires cabral / poeira

 
 
 
A poeira que a noite levantou
enquanto ardia
ainda anda no ar e é seca como
uma pistola disposta a disparar.
 
E tarde assentará
essa poeira.
 
Só espero que quando repousar
sobre o tampo da mesa
seja tão espessa que eu possa escrever nela
à ponta do dedo
alguns madrigais.
 
Ou então heresias, se estiver
para aí virado.
 
 
 
a.  m. pires cabral
a noite em que a noite ardeu
cotovia
2015




05 maio 2025

a. c. swinburne / um camafeu

 
 
 
Havia uma imagem esculpida do Desejo
     Pintada com sangue vermelho num campo de ouro,
     Passando entre os jovens e os velhos,
E a seu lado a Dor cujo corpo brilhava como o fogo,
E o Prazer com mãos descarnadas agarrando o seu salário.
     Com a mão esquerda, os dedos crispados e frios,
     Segurava-o a insaciável Saciedade,
Caminhando com pés descalços que tocavam a lama.
Os sentidos e as dores e os pecados,
     E os estranhos amores que sugam os seios do Ódio
Até que os lábios e os dentes mordam a sua profunda ferida,
Iam também, como animais batendo as asas ou as suas
                                                                barbatanas.
     A Morte mantinha-se afastada atrás de uma grade toda aberta,
Em cuja fechadura estava escrito: Talvez.
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006




 

04 maio 2025

adolfo casais monteiro / fruta do tempo

 



 

 
Tempos houve em que ainda me perdia…
Hoje
de antemão tudo sonho já vivido,
inútil e pesado,
passos que dou com olhos distraídos…
isto mesmo não é embora certo:
que venha um pouco de sol, e toda a sombra
há-de esvair-se em bruma pelos cantos…
 
 
 
adolfo casais monteiro
poemas do tempo incerto (1934)
poesias completas
imprensa nacional-casa da moeda
1993




03 maio 2025

zetho cunha gonçalves / pelo meu nome

 
 
 
Escavo a esta mão os ventos – da onça,
sustentam a noite: quem contraceno em gesto,
e os seus olhos. Se dou um passo
tropeço noutro passo – simétrico, tropeço
na flecha. O dorso é todo o horizonte,
a sua escultura movediça.
 
Eu trazia o fogo na cabeça, era um pássaro.
O canto das águas seria a minha voz – a pedra,
Terra
de outra carne,
e osso –
não me houvessem roubado o fogo, não me houvessem
justificado em lenda, pelo meu nome.
 
 
 
zetho cunha gonçalves
o testamento do mundo
poemas reunidos 1979-2021
maldoror
2021