26 março 2025

miguel torga / fronteira

 
 
De um lado terra, doutro lado terra;
De um lado gente, doutro lado gente;
Lados e filhos desta mesma serra,
O mesmo céu os olha e os consente.
 
O mesmo beijo aqui, o mesmo beijo além;
Uivos iguais de cão ou de alcateia.
E a mesma lua lírica que vem
Corar meadas de uma velha teia.
 
Mas uma força que não tem razão,
Que não tem olhos, que não tem sentido,
Passa e reparte o coração
Do mais pequeno tojo adormecido.
 
 
 
miguel torga
libertação
1944
poesia completa vol. i
dom quixote
2007




25 março 2025

josé de almada negreiros / a um poeta que morreu

 
 
 
Sou eu o que está atrasado
tu já te despediste
– a verdadeira despedida –
o silêncio já fala por ti
e eu ainda tenho para dizer.
 
Por mim o silêncio ainda não fala,
a vida ainda me dá a palavra
e cá estou eu para me embaraçar
e todos embaraçar no meu novelo.
 
Violenta deusa, ó Serenidade,
que tão tumultuosos nos trazes em buscar-te,
a tua exigência só à Morte aproveita!
 
Cegos por ti, ó Serenidade,
escalamos os dias, dia a dia,
e a memória não relê
ao que a morte pôs ponto-final!
 
Mas finalmente entendo por que o Sol
anda por vales e por montes
semeando cores parecidas,
acesas, luminosas, vivas,
por onde nós vamos passando!
Do princípio ao fim
os braços sempre erguidos
as mãos no fim dos braços
por cima das mãos o ar
e depois ponto-final.
 
 
 
josé de almada negreiros
poemas
assírio & alvim
2017




24 março 2025

cesário verde / contrariedades

  
 
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
     Consecutivamente.
 
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
     E os ângulos agudos.
 
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
     E engoma para fora.
 
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
     Mal ganha para sopas...
 
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa d’um jornal me rejeitar, há dias,
     Um folhetim de versos.
 
Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais d’uma redação, das que elogiam tudo,
     Me tem fechado a porta.
 
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
     Vale um desdém solene.
 
Com raras exceções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
     Diverte-se na lama.
 
Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
     Me negam as colunas.
 
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
     Deliram por Zaccone.
 
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
     Do que escrever em prosa.
 
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exatos,
     Os meus alexandrinos...
 
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
     E fina-se ao desprezo!
 
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
     D’uma opereta nova!
 
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
     Impressas em volume?
 
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
     Todas as minhas obras
 
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
     Que mundo! Coitadinha!
 



cesário verde
o livro de cesário verde e outros poemas
penguin clássicos
2024





23 março 2025

luís vaz de camões / aquela triste e leda madrugada



 
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade,
enquanto houver no mundo saudade
quero que seja sempre celebrada.
 
Ela só, quando amena e marchetada
saía, dando ao mundo claridade,
viu apartar-se d’üa outra vontade,
que nunca poderá ver-se apartada.
 
Ela só viu as lágrimas em fio,
de que d’uns e d’outros olhos derivadas
s’acrescentaram em grande e largo rio.
 
Ela viu as palavras magoadas
que puderam tornar o fogo frio,
e dar descanso às almas condenadas.
 
 
luís de camões
poesia lírica
ulisseia
1988
 




 

22 março 2025

camilo pessanha / porque o melhor, enfim




 

Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver...
Passarem sobre mim
E nada me doer!
 
– Sorrindo interiormente,
Co'as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. –
 
Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano...
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.
 
Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.
 
Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a erva
 
Que Abril copioso ensope...
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.
 
Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifício
 
Das vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas...
 
Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,
 
Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos, saltos, gritos...
 
Roubos, assassinatos!
Horas jamais tranquilas,
Em brutos pugilatos
Fraturam-se as maxilas...
 
E eu sob a terra firme,
Compacta, recalcada,
Muito quietinho. A rir-me
De não me doer nada.
 
 
 
camilo pessanha
clepsydra
assírio & alvim
2003
 




 

21 março 2025

bertolt brecht / os tempos modernos




 
Os tempos modernos não começam de uma vez por todas.
Meu avô já vivia numa época nova,
Meu neto talvez ainda viva na antiga.
 
 
A carne nova come-se com velhos garfos.
 
 
Época nova não a fizeram os automóveis
Nem os tanques
Nem os aviões sobre os telhados
Nem os bombardeiros.
 
 
As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras.
A sabedoria continuou a passar de boca em boca.
 
 
 
bertolt brecht
poemas
selecção e trad. de arnaldo saraiva
presença
1976







 

20 março 2025

anna akhmatova / no quadragésimo ano

 
 
 
1.
 
Quando sepultam uma época,
O salmo fúnebre não soa,
Às urtigas, aos cardos
Caberá enfeitá-la.
E apenas os coveiros vivazes
Trabalham. As coisas não esperam!
E um silêncio, Senhor, um silêncio tal
Que se ouve o tempo passar.
Mas depois ela assoma,
Como um cadáver no rio primaveril, –
O filho, todavia, não reconhecerá a mãe.
E o neto desviará os olhos com enfado.
E as cabeças inclinam-se mais,
Como um pêndulo a lua move-se.
 
E eis – sobre Paris tombada
Agora um silêncio destes.
 
5 de Agosto de 1940
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 




19 março 2025

antónio franco alexandre / esta esquisita prova me tentou

 
 
 
esta esquisita prova me tentou
de tecer um rumor em muros de água
ossos de terra calcinada
o jugo
 
culpado me castigo com engenho
e da voz desenhada o artifício
restos de pele antiga
no laço da armadilha
 
em silêncio me muro e me demoro
no cálculo de rotas inexactas
 
um duro arbítrio quer que me desprenda
dos cinco ou mais sentidos
vou ser livre na terra desnudada
vou dizer o que sei como quem mente.
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983
 



18 março 2025

luís miguel nava / contra os flashes

 
 
 
É terra doutro o corpo dum rapaz, o leite amarrotado nele o incêndio corre contra os flashes, mínimo relâmpago de terra o poço da alegria.
 
As paisagens os miúdos reúnem-nas à mão, a miniatura delas é o seu rosto. Voltam-se as paisagens como as páginas.
 
Um deles, força macia, ensanguentado e verde inquina-se na luz, uma fralda de incêndio há-de escorrer-lhe pelos lábios.
 
Eis o rosto, eis o poço, põem-se as imagens como toalhas, as pequenas pedras deflagrando.
 
Os miúdos a nudez destrói-os nesses lábios.
 
 
luís miguel nava
películas
poesia completa (1979-1994)
publicações dom quixote
2002
 




17 março 2025

isabel meyreles / o livro do tigre

 
 
 
                       II
 
Existe em Lisboa
uma máquina cruel
que permanentemente aguça
os dentes virtuais
na alma indecisa
dos pobres mortais.
Esta máquina excepcional
tritura
esmaga
sacode
revolve
molda
anula
e expulsa
o quê?
Capachos.
 
 
 
isabel meyreles
poesia
o livro do tigre 1976
tradução de isabel meyreles
quasi
2004




 

16 março 2025

inês lourenço / crónicas




 

 
Mulheres de canastra à cabeça, que num recôncavo
de esquina, não calcetada, onde uma nesga
de terra desmentia o urbanismo
invasor, mijavam de pé
com rara pontaria dissimulando
entre as grossas saias, as
pernas afastadas. Não usavam cuecas
tal como uma modelo da Vogue,
cujo profundo decote dorsal,
prolongado abaixo da cintura,
as abolia.
 
Coincidências
da baixa plebe
e da alta-costura.
 
 
 
inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015
 



 

15 março 2025

filipa leal / os velhos são manhosos

 



 

 

Os velhos são manhosos.
 
Demoram-se a apanhar a fruta, sabem
que sabem esticar o braço antigo até aos primeiros figos,
que podem saber chegar ao fim da figueira.
Os velhos arrastam os pés em direcção à saída,
esgotam-se ao sol seguinte.
Cortam-se por vezes no vidro de emergência,
no buraco para o exterior.
Têm visões extraordinárias,
Receitas específicas para o barroco do poema
e do mel.
 
Escrevo para os velhos.
 
 
 
filipa leal
vem à quinta-feira
assírio & alvim
2016

 




14 março 2025

antónio gancho / começo logo de manhã

 
 
 
COMEÇO LOGO de manhã
a fazer o poema
e o sol nasce e abre o tema
não é meu lema escrever o sol
mas é meu lema escrever o poema
para o poema inspiro-me em ti
para o nascer do sol também previ.
o poema és tu
ao sol nu.
a natureza avança
são já horas vou acabar
escrever poesia cansa
e tu estás-me a pensar.
dança o dia quase pronto
escrever o poema cansa
e eu conto e cansa-me o que eu conto.
o poema és tu
o sol nasce
é manhã
nu.
 
 
 
antónio gancho
poemas digitais (jun. / jul. 89)
o ar da manhã
assírio & alvim
1995