26 dezembro 2024

josé emílio pacheco / apocalipse na televisão

 
 
 
Cornetas do fim do mundo
Interrompidas
Para dar lugar a um anúncio
 
 
 
josé emílio pacheco
irás y no volverás (1969-1972)
a árvore tocada pelo raio
antologia poética
trad. miguel filipe mochila
maldoror
2024
 



25 dezembro 2024

ruy belo / poema de natal

 
 
 
É dia de natal a festa da família um deus nasceu
não me sinto sozinho mas estou sozinho
toda a minha família sou só eu
Levo nas algibeiras alguns versos e caminho
quando sinto de súbito o desejo de reler o herculano
a única pessoa que nos livros e na vida hoje me faz falta
única companhia para o meu natal
Entro nas poucas livrarias de peniche
e gasto em livros de herculano o dinheiro que tenho
O herculano entre outras coisas bem sabia distinguir os tempos
sabia o que num tempo é distinto de outro tempo
tinha muitos amigos entre os seus e meus antepassados
e deu sempre à verdade o que os demais costumam dar à vida
Era casmurro abandonou um dia as casas de má nota
deixou o parlamento e a vida literária
e procurou no campo a companhia
de árvores bem mais que os homens verticais
Tinha muito mau génio fulminava com os olhos
franzia a testa e não havia nada que fazer
era teimoso o velho como antero lhe chamava
Penso nele e caminho pelas ruas de peniche
e só vão a meu lado uma má música daquelas
que ferem os ouvidos nestas quadras do natal
e a fotografia num jornal de um elevado dignitário da hierarquia
para quem o mistério do natal não sei bem que mistério ou que natal
encerra o verdadeiro humanismo novo
frase que me provoca comoções
porquanto as aliterações são dos meus pratos favoritos
Vou encerrar-me em casa a sós com herculano
que tanto quanto sei não era humanista
ou que se porventura o era o não sabia
ou não dizia ao menos ser tal coisa como
se duvidássemos que o fosse se é que o era
É dia de natal estou sozinho e penso ler o herculano
que há tanto ano já me não fazia
a falta que me faz precisamente neste dia
em que só me faz falta a sua companhia
Vamos pra minha casa ó herculano
vou fechar as janelas acender a luz
e aguardar contigo o fim do ano
Prefiro-te herculano a músicas e altos dignitários pois
nem talvez tenha já a convicção de quem anualmente
escreve pontual se não contente o seu poema de natal
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004
 



24 dezembro 2024

agustina bessa-luís / presépio

 
 
 
Não é sem razão que os animais aparecem no Presépio, no século XIII, quando a sociedade agrária começa a sair da sua incerteza e a medir a sua aversão pelo perigo. O animal doméstico é posto a para da religiosidade, como indicador do comando da incerteza humana. Os Presépios com a vaca e o burro são apresentados no rito natalício franciscano e significam exactamente a prosperidade ideal, o homem num abrigo de terra batida com os seus animais, escapados à fome e às inundações que assolaram a Europa na primeira metade do século XIV. A festa do Presépio foi instituída por São Francisco, em Greggio, três anos antes da sua morte. Fez preparar uma manjedoura e trazer feno para ela; junto colocou uma vaca e um burro, e disse a Missa sobre a dita manjedoura. Foi um cavaleiro, justo e piedoso, quem contou ter visto uma criança maravilhosa que dormia no presépio. Portanto, a intenção de São Francisco não foi a de celebrar o Nascimento, mas sim a de realizar um pacto sagrado com os factores de segurança para o homem agrário, tão aterrado pelas condições climáticas que assolaram a Europa desde os Pirenéus às estepes russas.
 
 
 
agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008




23 dezembro 2024

sophia de mello breyner andresen / às vezes

 
 
 
Às vezes julgo ver nos meus olhos
A promessa de outros seres
Que eu podia ter sido,
Se a vida tivesse sido outra.
 
Mas dessa fabulosa descoberta
Só me vem o terror e a mágoa
De me sentir sem forma, vaga e incerta
Como a água.
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
obra poética I
caminho
1999
 



22 dezembro 2024

e e cummings / se eu te amo

 
 
 
LIV
 
se eu Te amo
(espessura significa
mundos habitados por errantes
austeras brilhantes fadas
 
se tu me
amas) distância é mente cuidadosamente
luminosa com inúmeros gnomos
De completo sonho
 
se nós (timidamente)
nos amamos, o que nuvens fazem ou Silentemente
Flores assemelha-se à beleza
menos que a nossa respiração
 
 
 
e. e. cummings
trad. ana hatherly
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




21 dezembro 2024

samuel beckett / bem bem existe um país

 
 
 
bem bem existe um país
em que o esquecimento em que pesa o esquecimento
lentamente nos mundos inominados
aí a cabeça aquietamo-la a cabeça está calada
e sabemos não nada sabemos
o canto das bocas mortas morre
no areal fez a viagem
não há nada para chorar
 
a minha solidão conheço-a vamos lá conheço-a mal
tenho tempo vou achando que tenho tempo de vida
mas que tempo osso faminto a vida do cão
do céu que assola incessante o meu vão de céu
do raio que trepa ocelado fremente
dos mícrons dos anos trevas
 
querem que vá de A para B não posso
não posso sair estou numa terra sem rastos
sim sim é uma coisa bonita que aí tem uma coisa bem bonita
o que é não me façam mais perguntas
espiral poeira de instantes o que é isso o mesmo
a calma o amor o ódio a calma a calma
 
 
 
samuel beckett
rosa do mundo, 2001 poemas para o futuro
trad. filipe jarro
assírio & alvim
2001





20 dezembro 2024

fayis suyyagh / o cavaleiro

 
 
 
permanecendo firme sob o calor do sol
e o açoite da chuva
passando por ele dia e noite
passado e futuro
as quatro estações
esperou o grande momento
com as feridas enroupadas de esquecimento
(quando visse o dragão cujos olhos cospem fogo)
quando ele veio
correu
     bateu em retirada
     dobrou-se para trás
     inclinou-se
     caiu
     como uma tempestade
cravando a sua lança na face do Nada
 
 
 
fayis suyyagh
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalbaerto alves
assírio & alvim
2001




 

19 dezembro 2024

yorgos seferis / dentro das cavernas marinhas

 
 
Dentro das cavernas marinhas
há uma sede há um amor
há um êxtase,
tão duro como as conchas
podes segurá-las na palma da tua mão.
 
Dentro das cavernas marinhas
dias inteiros olhava-te nos olhos
e não te conhecia nem tu me conhecias.
 
 
 
yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




18 dezembro 2024

wislawa szymborska / o amanhecer

 
 
 
Ainda durmo
e entretanto sucedem-se factos.
Clareia a janela,
acinzentam-se as trevas,
surge o quarto do espaço sombrio
e nele tentam firmar-se rastos de luz pálidos e vacilantes.
 
A seguir, sem pressas,
pois é uma cerimónia,
amanhecem as superfícies do tecto e das paredes,
separam-se as formas
umas das outras,
a esquerda da direita.
 
Alvorecem as distâncias entre os objectos,
chilreiam os primeiros clarões
no copo e na maçaneta.
Já não só parece, agora é no seu todo,
aquilo que ontem movido,
o que caiu no chão
e o que se enquadra nas molduras.
Só os pormenores
ainda não deram entrada no campo d avisão.
 
Mas atenção, atenção, atenção,
muito parece indicar que regressam as cores
e mesmo a mais ínfima coisa vai recuperá-las
juntamente com os tons da sombra.
 
Muito raramente isto me espanta, mas deveria.
Habitualmente, acordo na condição da testemunha atrasada,
com o milagre já consumado,
o dia estabelecido
e o amanhecer com mestria em manhã transformado.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 



17 dezembro 2024

rainer maria rilke / os sonetos a orfeu

 



 
I
 
Invisível poema, respirar!
Mundo, espaço e ser vislumbro
Sem cessar em troca pura. O equilibrar
Em que por ritmos me cumpro.
 
Única onda
de que sou mar gradual;
o mais poupado na ronda,
ganho de espaço afinal.
 
Quanto lugar dos espaços
dentro de mim se precisa.
Ventos, filhos nos meus braços.
 
Reconheces-me, ó aragem, tão cheia das minhas lavras?
Tu que foste casca lisa,
Curva e folha das palavras.
 
 
 
rainer maria rilke
elegias de duíno e os sonetos a orfeu
trad. de vasco graça moura
quetzal
2017



16 dezembro 2024

paul celan / conversas com cascas de árvore

 
 
 
CONVERSAS COM CASCAS DE ÁRVORE. TU,
tira a casca, anda,
tira-me, feito casca, da minha palavra.
 
É tarde já, mas nós
queremos estar nus e à beira
da navalha.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022
 



15 dezembro 2024

ángél gonzález / discurso aos jovens

 
 
 
De vós,
os jovens,
espero menos coisas grandes que as que realizaram
os vossos antepassados.
Entrego-vos
uma herança grandiosa:
guardem-na.
Amparem esse rio
de sangue,
sujeitem com firme
mão
o troco dos cavalos
velhíssimos,
mas ainda poderosos,
que arrastam com pujança
o fardo dos séculos
passados.
 
Nós somos estes
que aqui estamos reunidos,
e os outros não importam.
 
Tu, Pedra,
filho de Pedro, neto
de Pedra
e bisneto de Pedro,
esforça-te
por seres sempre pedra enquanto vivas,
por seres Pedro Petrificado Pedra Branca,
por não tolerares o movimento,
por asfixiares em moldes apertados
tudo o que respira ou quanto pulse.
 
A ti,
leal amigo,
companheiro de armas,
escudeiro,
sustento da nossa glória,
jovem alferes dos meus esquadrões
de arcanjos vestidos de azeitona,
sei que não preciso de admoestar-te:
com seguires sendo fogo e ferro,
basta.
Fogo para queimares o que floresce.
Ferro para esmagares o que se ergue.
 
E, finalmente,
tu, dono
do ouro da terra,
poderoso impulsionador da nossa vida,
não nos faltes nunca.
Sê generoso
com aqueles de que precisas,
mas guarda,
expulsa do teu reino,
mantêm-nos para lá das tuas fronteiras,
deixa que morram,
se é preciso,
os que sonham,
os que procuram
só a luz e a verdade,
os que deveriam ser humildes
e às vezes não o são, é assim a vida.
 
Se algum de vós
pensasse,
eu dir-lhe-ia: não penses.
 
Mas não é preciso.
 
Continuem assim,
meus filhos,
e eu prometo que tereis
paz, e pátria feliz,
e ordem,
e silêncio.
 
 
 
ángél gonzález
para que eu me chame ángel gonzález
uma antologia
selecção e tradução de miguel filipe mochila
língua morta
2018
 



14 dezembro 2024

manuel antónio pina / passagem

 
 
 
                                                                À Inês



 
Com que palavras ou que lábios
é possível estar assim tão perto do fogo,
e tão perto de cada dia, das horas tumultuosas e serenas,
tão sem peso por cima do pensamento?
 
Pode bem acontecer que exista tudo e isto também,
e não só uma voz de ninguém.
Onde, porém? Em que lugares reias,
tão perto que as palavras são de mais?
 
Agora que os deuses partiram,
e estamos, se possível, ainda mais sós,
sem forma e vazios, inocentes de nós,
como diremos ainda margens e como diremos rios?
 
 
 
manuel antónio pina
amigos e outras moradas
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012