08 setembro 2024

bernardo soares / no alto ermo dos montes naturais, quando chegamos,

 
 
L. do D.
 
No alto ermo dos montes naturais temos, quando chegamos, a sensação do privilégio. Somos mais altos, de toda a nossa estatura, do que o alto dos montes. O máximo da Natureza, pelo menos naquele lugar, fica-nos sob as solas dos pés. Somos, por posição, reis do mundo visível. Em torno de nós tudo é mais baixo: a vida é encosta que desce, planície que jaz, ante o erguimento e o píncaro que somos.
 
Tudo em nós é acidente e malícia, e esta altura que temos não a temos; não somos mais altos no alto do que a nossa altura. Aquilo mesmo que calcamos, nos alça; e, se somos altos, é por aquilo mesmo de que somos mais altos.
 
Respira-se melhor quando se é rico; é-se mais livre quando se é célebre; o próprio ter de um título de nobreza é um pequeno monte. Tudo é artifício, mas o artifício nem sequer é nosso. Subimos a ele, ou levaram-nos até ele, ou nascemos na casa do monte.
 
Grande, porém, é o que considera que do vale ao céu, ou do monte ao céu, a distância que é diferença não faz diferença. Quando o dilúvio crescesse, estaríamos melhor nos montes. Mas quando a maldição de Deus fosse raios, como a de Júpiter, de ventos, como a de Eolo, o abrigo seria o não termos subido, e a defesa o rastejarmos.
 
Sábio deveras é o que tem a possibilidade da altura nos músculos e a negação de subir no conhecimento. Ele tem, por visão, todos os montes; e tem, por posição, todos os vales. O sol que doura os píncaros dourá-los-á para ele mais [que] para quem ali o sofre; e o palácio alto entre florestas será mais belo ao que o contempla do vale que ao que o esquece nas salas que o constituem de prisão.
 
Com estas reflexões me consolo, pois que me não posso consolar com a vida. E o símbolo funde-se-me com a realidade quando, transeunte de corpo e alma por estas ruas baixas que vão dar ao Tejo, vejo os altos claros da cidade esplender, como a glória alheia, das luzes várias de um sol que já nem está no poente.
 
14-4-1930
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982




 

07 setembro 2024

albert camus / os antigos filósofos

 



 
Os antigos filósofos (naturalmente) pensavam muito mais do que liam. Eis porque se agarravam tão tenazmente ao concreto. A imprensa modificou as coisas. Lê-se mais do que se pensa. Não temos hoje filosofias mas apenas comentários. É o que diz Gilson ao afirmar que à idade dos filósofos que se ocupavam de filosofia sucedeu a idade dos professores de filosofia que se ocupam dos filósofos. Há nesta atitude ao mesmo tempo modéstia e impotência. E um pensador que começasse o seu livro por estas palavras. «Tomemos as coisas a partir dos seus princípios» ficaria exposto aos sorrisos. Chegou-se ao ponto em que um livro de filosofia que fosse hoje publicado e não se apoiasse em nenhuma autoridade, citação, comentários, etc., não seria tomado a sério. E no entanto…
 
 
 
albert camus
primeiros cadernos
caderno n.º 4 janeiro 1942 / setembro 1945
trad. não disponível (antónio quadros?)
livros do brasil
1973



06 setembro 2024

antonia pozzi / precoce outono

 




 

 

O nevoeiro é de prata, apaga
as sombras dos pinheiros:
são maiores os jardins
ao amanhecer.
 
Uma folha do choupo secou,
morreu um ramo do castanheiro
no monte.
 
Medos que eles próprios desconhecem
dormindo no ar celeste:
este fim que regressa todos os anos,
que se renova todos os anos.
 
Como a última árvore do bosque,
o último homem já contou os mortos:
mas a sua morte apanha-o
ainda de surpresa.
 
 
 
antonia pozzi
morte de uma estação
trad. inês dias
averno
2019
 



05 setembro 2024

ernesto sampaio / tão pouco

 



 

Sondar
a linguagem das trevas
dormir
na neve dos limites
atravessar
flores distraídas
 
Decifrar
numa pedra fria
letras a arder
entrar
em comboios remotos
no olho gigante
das estações do fim do inundo
 
Ser
um sinal
lançado ao acaso na noite
deixar
noutra boca
o gosto de uma ausência
 
Temos tão pouco tempo
tão pouco sonho
tão pouco
 
 
 
ernesto sampaio
poesia
saldos
vs editor
2024



04 setembro 2024

billy collins / cupido

 
 
 
Acabado de vir da chuva,
perguntaste-me
quanto era um côvado.
 
Pensei
que o assunto em questão
fosse amor.
 
Mas era uma arca
que estavas a construir,
pequena, só para ti.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco José craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023





03 setembro 2024

benjamin péret / a luz dentro do sol

 
 
A pequena nudez
aborrece-se no seu painço barco ruço
Deita-se como o mar
como os seus cabelos
Pede à chuva e à bonança
um ramalhete de serras aguçadas
e uma corda de evangelho
com altos círios caseiros
É duma juventude e duma beleza tal
que a fuligem grande marota
se abeira dela com as mãos de cisne
lavados pelo álcool limpo e pelos ventos
Mas a chuva sorri à bonança
que afaga o pêlo das montanhas
e ambos se entendem para afugentar os vales
que vivem de folhas e de poeira
de pedras e de paus
 
 
 
benjamin péret
sol de bolso
uma antologia de poemas
trad. regina guimarães
contracapa
2023
 



02 setembro 2024

robert desnos / pedra a pedra

 
 
 
Pedra a pedra e pé a pé
E coração a coração e cabeça a cabeça
Os dias bons passaram
Fio a fio e folha a folha
E um a um e só a só
Os dias são bons e não passam
Grão a grão corpo a corpo
E flanco a flanco e mão a mão
Só alguém muito astuto ganhará a batalha
Pedra a grão e só a um
E de mão no coração e cabeça no coração
O amor é vasto como o mundo.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 



01 setembro 2024

heiner müller / problema de visão

 
 
 
O meu amigo o pintor diz-me Se eu pinto
É porque não quero mais ver Viva a cegueira
É com os meus olhos que eu pago
Por cada imagem A minha morte era a minha infância
A câmara escura A luz debaixo da porta
Esperar a erupção Terror branco
Como pôr a minha noite ao abrigo do dia
A morte a figura imposta a vida as figuras livres
Deixa-me claridade viver na tua sombra
Privado de mim nas minhas zonas patogénicas
 
 
 
heiner müller
poemas (1949-1995)
trad. adolfo luxúria canibal
oficina noctua
2021
 



31 agosto 2024

adonis / aqueles que…

 
 
 
Aqueles que degolados atrás de ti à tua volta em ti e para ti
     tornaram-se nuvens portadoras de chuvas
Chuva de que a terra se veste
Ararat orquestra para os continentes de música de canto de
     poesia e de dança de escultura e de pintura horizontes e do
     mais longínquo quem pergunta
Serás tu outro para gostar de dizer a esse outro:
Tu és eu.
 
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016



30 agosto 2024

amalia bautista / tenho à mostra…

 
 
Tenho à mostra as coisas que deveria
esconder, o mais íntimo e obscuro.
E não só me podem ver o esqueleto,
tenho à mostra também a alma inteira.
 
 
 
amalia bautista
trevo
tradução de inês dias
averno
20212
 




29 agosto 2024

vincenzo cardarelli / gaivotas

 
 
 
Não sei onde as gaivotas fazem ninho,
onde encontram a paz.
Sou com elas,
em perpétuo voo.
Raso a vida
como elas rasam a água
em busca de alimento.
E amo, talvez, como elas, o sossego,
o grande sossego marinho,
mas o meu destino é viver
faiscando na tempestade.
 
 
 
vincenzo cardarelli
dez poetas italianos contemporâneos
trad. de albano martins
dom quixote
1992
 



28 agosto 2024

nuno júdice / praia

 
 
 
De manhã, o mar parecia saltar de dentro
das nuvens, como se não fosse ele que as
reflectisse. Depois, o sol restabeleceu
a ordem das coisas, o prumo voltou a in-
dicar o alto e o baixo, e até o ruído das
ondas deixou de nos submergir com a sua
insistência, deixando ouvir de novo o
bater dos toldos com o vento, os gritos
de um bando de gaivotas, e a tua voz,
atravessando toda a memória deste dia.
 
 
 
nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997



 

27 agosto 2024

luiza neto jorge / 5 poemas para a noite invariável

 
 
II
 
Em cada braço uma herança de horizonte
desde o naufrágio de um eco
em cada árvore
trago-me no sol
à hora dos contornos
no sol a voz
é mais difícil
o tempo mais ausente
 
trago um filho
que parte o caule às estrelas
é louco e sofre
e parte o caule às estrelas
 
Tragicamente o sol
põe luz nos braços
A morte é uma feira aberta em lua
 
 
 
luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993