17 agosto 2024

joão rebocho / anjos caídos



 

 
anjos caídos com olhos de seda
a família morta no livro do Capote,
serpente no frasco de álcool
jornal aberto no balcão
as más notícias e
o hino de San Sebastian;
 
não notícias, hoje,
não anjos caídos janelas fora,
nem a sorte de ter asas;
hoje, a família ressuscitada
a serpente ébria,
e o jornal, resguardado o chão
clareado o chão,
antes ecoarem asas
 
 
 
joão rebocho
altas temperaturas
fernando dos santos
2024
 




 

16 agosto 2024

e e cummings / xix poemas




 

[xiii]
 
platão disse-
 
-lhe: ele não podia
acreditar(jesus
 
disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)lao
 
tsé
certamente disse-
-lhe,e o general
(sim
 
senhora)
sherman;
e até
(acredite
ou
 
não)você
lhe disse:eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
 
senhor)foi preciso
um pedaço niponizado do
antigo viaduto da
 
6.ª
avenida;no cimo da cabeça:para dizer-
 
-lhe
 
 
 
e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998
 




 

15 agosto 2024

gil t. sousa / tempo

 
 
tudo se repete
de maneira desigual
e lenta
 
cavalos como nuvens
sobre a areia lisa
 
invisíveis e negros
senhores dos meus olhos
e dos meus sonhos
 
deserto e silêncio
como se a solidão
quisesse ficar
e quisesse partir



gil t.sousa





 

14 agosto 2024

roberto juarroz / nem sequer temos um reino

 
 
Nem sequer temos um reino.
E o pouco que temos
não é deste mundo.
Mas tão-pouco é do outro.
 
Órfãos de ambos os mundos,
com o pouco que temos
resta-nos apenas
fazer outro mundo.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018



13 agosto 2024

tiago araújo / as planícies extrovertidas

 



 

 
esta rua é o começo do mundo (todos os
lugares são o início do infinito que se estende em volta).
abrimos o universo fechado do corpo
em planícies extrovertidas
de onde se prolongam os caminhos
que nos levam aos móveis, à tinta branca das paredes,
à linha divisória entre a escuridão e a luz do sol
de alcântara, à rua onde passam os eléctricos,
e à última paragem, de onde tudo se estende de
forma concêntrica, como de todos os lugares,
os órgãos realizam a fotossíntese com a luz indirecta do rio
e chove sobre a pele
 
 
 
tiago araújo
fórmulas
quasi
2004



12 agosto 2024

fátima maldonado / meu pobre amante

 
 
 
Meu pobre amante
que te não fascina
mas se me falta
e se não o vejo
a saliva me seca
e me restringe a boca
e oculta na papila
o áfono cimento da recusa.
 
Se ao longe o lobrigo
e lhe sinto o desenho
e suspeito a boca
na cara se fixa
como se vela fosse num canto de sacada
ali logo me trunco
e me cindo em planos;
um só que continua
em direcção ao mar,
o outro que apodrece
 
e resta desprezado
e fica
coroa de tentáculos nas pedras recozidas
ao sol deste verão
entre portas abertas
e soleiras de escadas
circundadas por lousas
e azulejos vivos.
 
 
 
fátima maldonado
os presságios
os encontros
editorial presença
1983




 

11 agosto 2024

florbela espanca / para quê?!

 



 
Tudo é vaidade neste mundo vão ...
Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
 
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...
 
Beijos de amor! Pra quê?! ... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
 
Só neles acredita quem é louca!
Beijos de amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta! ...
 
 
 
florbela espanca
sonetos
livraria bertrand
1981



10 agosto 2024

maria teresa horta / universo

 
 
É nos olhos
que fracassamos
o céu
 
Doentes de poeira
por cada onda
repousamos as mãos
 
Proibidos de estarmos
em cada dorso – vidro
é olfacto o conteúdo
dos cardos
 
Cansados de universo
 
Claros totalmente claros
e descobertos
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
cidadelas submersas
dom quixote
2009





 

09 agosto 2024

john updike / no princípio

 



 

 

No princípio, a Cultura ilude-nos, mas a Natureza
acaba por nos apanhar. A minha pele, noto,
agora que tenho setenta e cinco anos,
pende, enrugada como essas dunas em Marte
que nos dizem que a vida lá devia ter existido –
lama monocelular em charcos estagnados.
Em Tucson, no final do filme, um homem no
espelho dos lavabos avançou para mim,
 
olhos desvairados e pequenos, cabelo branco,
pescoço hirto – que podia ser, tão hostil e estranho,
tão pronto para o lixo, como um saco de pipocas
nojento no seu revestimento de gordura velha?
Onde o rapaz de sardas que costumava espreitar
pelo espelho da frente, à saída para a escola?
 
 
 
john updike
ponto último e outros poemas
trad. ana luísa amaral
civilização editora
2009




08 agosto 2024

ilka brunhilde laurito / lamentação de natércia

 
 
II
 
Corpo meu, tão gentil, tão malferido,
partido e repartido nos transvios,
que repouso terás no chão da vida
se Amor te mata assim dia-após-dia?
 
Ainda se a morte fora só alegria
do reencontro dos amantes idos,
eu ia rindo empós esta agonia
a reviver os rostos hoje findos.
 
Mas obscuro é o claro fim, e eu fico
a carrear-te, corpo sempre aflito
entre a fome diária e a infinita.
 
Corpo meu, alma minha, quem diria
o que é a carne e o que seria o espírito
quando o Amor, gentil, une o indiviso?
 
 
 
ilka brunhilde laurito
colóquio letras nr. 90
março 1986
fundação calouste gulbenkian
1986
 



07 agosto 2024

maria gabriela llansol / onde vais, drama-poesia?

 



 
XV
 
num desses momentos,
a objecto de beleza
sob o aspecto de uma abertura larga,
terá medo que o amor a desfeie e lhe roube o brilho que a en-
volve.
 
     Nesse momento, serei naturalmente implacável,
por ora, a única abertura visível é a porta da minha casa, la-
deada por duas lanternas.
     Dentro, e ao lado das nossas casas, estão várias casas,
 
abrigo que nos permitimos atingir quando sentimos fadiga.
Fadiga muito doce por não se querer sentir a fadiga cruel que
todo o vento brando, àquela hora, espalha pela clareira,
 
 
todos somos, de facto, incompletos a certas horas do dia, e
mostrei-lhe a Casa.
 
 
maria gabriela llansol
onde vais drama-poesia?
relógio d´água
2000
 




06 agosto 2024

sophia de mello breyner andresen / mãos

 
 
 
Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender
 
 
sophia de mello breyner andresen
coral 1950
obra poética I
caminho
1999
 



05 agosto 2024

fiama hasse pais brandão / do universo

 
 
 
Não o silêncio rodeia as palavras
nem as coisas. Vejamos a palavra ar
na esquadria da janela
atravessada pelos pardais,
sustida pelos telhados,
escavada mesmo pelas telhas e cornijas.
 
Não o espaço rodeia as coisas
mas outras coisas. A mesa
rodeada por iguarias,
o mel e a água tendo em volta
a fonte, esta abraçada pela Terra.
 
 
 
fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002