19 junho 2024

steve klepetar / futuro

 



 
A minha mãe lia
o futuro enquanto limpava,
 
vendo as nossas vidas
todas desenrolar-se
 
reflectidas em poças de água
escorregadias no chão da cozinha.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018




18 junho 2024

roland barthes / incidentes

 
 
 
 
 
Velho cego, mendigo de «djellaba» e de barba branca: imponente, impassível, antigo, sofocleano, odeonesco, enquanto o adolescente que mendiga para ele projecta no rosto toda a carga expressiva que uma situação assim justifica: a expressão torturada, repuxada por um esgar descendente, ostenta a dor, a miséria, a injustiça, a fatalidade: Vejam! Vejam!, diz a cara da criança, vejam aquele que já não pode ver.
 
 
 
roland barthes
incidentes
trad. tereza coelho e alexandre melo
quetzal
1987
 


17 junho 2024

roger wolfe / a avaria

 
 
Dar amor, já sei.
Mas não funciona.
 
Mostrar piedade, já sei.
Mas não funciona.
 
Eliminar o Eu, já sei.
Mas não funciona.
 
Acabar com a cobiça,
já sei.
Mas não funciona.
 
Dar
a outra face,
já sei.
Mas não funciona.
 
Viver o presente (e não o futuro
nem o passado), já sei.
Mas não funciona.
 
Que fazer, então?
Não sei.
E não funciona.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020




 


16 junho 2024

jacques prévert / tantas florestas

 
 
 
Tantas florestas arrancadas à terra
e massacradas
devastadas
devoradas pelas rotativas
Tantas florestas sacrificadas com vista ao fabrico de
                                                     pasta de papel
de milhares de jornais que chamam anualmente a
                                           atenção dos leitores
para os perigos da desflorestação dos bosques e das florestas
 
 
 
jacques prévert
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





15 junho 2024

hans-ulrich treichel / estação abandonada

 
 
O caminho pedregoso,
onde os autocarros azuis
moem os eixos, desde que o comboio
já não passa.
 
O braço negro de uma bomba
que deita uma sombra de forca.
 
Cardos de um cinza prateado
crescem como flores mágicas entre os
carris; o depósito de água
engole pó.
 
Que despedidas
poderia haver aqui,
que abraços.
 
 
 
hans-ulrich treichel
como se fosse a minha vida
trad. colectiva
poetas em mateus
quetzal editores
1994
 



14 junho 2024

antónio franco alexandre / duende

 
 
5.
Lambe-te o fogo cada ruga e pêlo,
e a água onde mergulhas logo encerra
em fresca e fina luva o corpo inteiro
e sem pudor algum te abraça e beija.
Mesmo o vulgar sabão, no tanque absorto,
pela nudez da carne se insinua
e entre as coxas flutua, como um peixe
mais branco, que outra sombra continua.
Mas eu, quando me cubro do teu rosto
e sou somente de água e fogo feito,
melhor ainda te conheço e quero,
e nada no teu corpo me é alheio:
em cada grão de pele te desejo,
em cada ruga leio o meu destino.
 
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002
 



13 junho 2024

eugénio de andrade / matéria solar

 
 
1
 
Podias ensinar à mão
outra arte,
essa de atravessar o vidro;
 
podias ensiná-la
a escavar a terra
em que sufocas sílaba a sílaba;
 
ou então a ser água,
onde de tanto olhá-las
as estrelas caíam.
 
 
 
eugénio de andrade
matéria solar
poesia
fundação eugénio de andrade
2000
 




12 junho 2024

manuel antónio pina / [uma casa]

 




 
Perde-se o corpo na inabitada casa das palavras,
nas suas caves, nos seus infindáveis corredores;
pudesse ele, o corpo, o que quer que o corpo seja,
na ausência das palavras calar-se.
 
Não, com nenhuma palavra abrirás a porta,
nem com o silêncio, nem com nenhuma chave,
a porta está fechada na palavra porta
para sempre.
 
O azul é uma refracção na boca, nunca o tocarás,
nem sob ele te deitarás nas longas tardes de Verão
como quando eras música apenas
sem uma casa guardando-te do mundo.
 
 
 
manuel antónio pina
como se desenha uma casa
ruínas
assírio & alvim
2012




11 junho 2024

vasco graça moura / picasso visto do porto

 
 
1
 
musa, quando você se despe no meu quarto
e à meia-luz o seu olhar faísca atrás de um ombro
e muito de costas nuas o cigarro vicioso desponta a um canto da pintura
                                                                                          [agressiva
e as suas pernas se arqueiam antecipando a música,
 
o movimento do colar faz-me lembrar Baudelaire
mas você cita t. s. eliot e outros cerebrais
e a sua roupa esvoaça em mariposas lânguidas
e ritmos a camisas despregadas
 
e você, rapsoda, ainda há pouco
semitaconeando insinuava projectos
do alto desses saltos que transmitem
esguia vibração aos seus artelhos.
 
partilharei consigo ocupações pontuais,
tenho agora de escrever sobre picasso
visto do porto, encomenda tão óbvia
que até se corre o risco de cair no melancólico.
 
 
 
vasco graça moura
os rostos comunicantes
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007
 



10 junho 2024

ruy belo / nau dos corvos

 




 
Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea do cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras
 
 
 
ruy belo
nau dos corvos
todos os poemas II
assírio & alvim
2004




09 junho 2024

herberto helder / retratíssimo ou narração de um homem depois de maio

 
 
Retratoblíquo sentado.
Retratimensamente de/lado, no/acto
conceptual de/ver quantos vivos quantos
dando folhas sobre os mortos de topázio.
Mãosagora, veloz rosto, visão pura.
Esquerdo ao/lado, fogo
junto à cabeça. E mais fogo à/direita por/detrás
da mão estreita pegando no ar
como num livro. Julgo ser eu.
Eu às/portas do sono, e não
se sabe se venho do sono, oh nem se
me empolgo numa ilusão
sombria. Eu oh nem se
me entro para um sonho extenuante.
Sono empurrado de inspiração
terrena.
 
Retratobliquamente livre e martelado
em sua leveza.
Com algum espinho meio/visível perto
da cabeça. Como se a cabeça
fosse uma rosa venenosa, ou coisa
inclinada e dolorosa. Para ser defendida
ou ferida no/acto
da exaltação. Retrato frio. Num grau
de ausência, num degrau de alucinação.
Frio nas fronteiras do concreto, e  ardente
perto perto,
Por/cima , nuvens de cinza revoltada,
Em/baixo, fruta aberta.
Fundos de paisagem veemente e incompleta.
 
Imaginativa, a roupa; e as pregas, precipitadas.
Que cheiraria a suor um/pouco,
e a tabaco. Por/cima
do colarinho vago o caloroso
sorriso de ironia é quasexacto. Boquim-
pura contínua - mente/regenerada
pelo amor e, pelo amor, tornada
soturna e abrupta.
Morte ao/meio como alta
alta desarmonia, Que os poderes oh confundia.
 
Ou talvez toda a força se movimente
para o centro do retrato.
E a morte se urde do próprio modo como
a carne alimenta o silêncio compacto
no/meio do retrato.
 
Talvez este ser se abisme em seu núcleo
central. E toda a figura se levante, na arquitectura
da cadeira, por virtude desse nó
ou núcleo trágico. Assim como uma pura
concepção em/torno de um delírio
vingativo e transacto.
 
Qualquer coisa no retrato ressalta
do espírito de um homem que foi assassinado.
Há um punhal implícito.
Sangue desdobrado.
A cadeira é alta e existe dentro do fogo.
O sexo suposto está masculino. O livro
entreposto à vida e à visão
é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído
pela beleza.
Este homem não fala, porque se fez pedra extrema
fechada.
Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada
até ao terror.
 
Não tem amor senão do amor.
É um homem devastado pelo pensamento da alegria.
Deus vive nele um tempo obscuro
de esquecimento. Este homem mora
nas coisas miúdas transpostas,
comparadas, alvitradas, justapostas.
Vive em/arco.
Pensa em/espírito de fogueira.
Tem toda a mão queimada até ao silêncio
atroz. Rodearam-lhe a voz.
Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira.
 
Se adormecesse, deveria ser acordado.
Ou deveria recostar-se na cadeira, ca -  ir
em sua/própria fantasia
calma. Não há nele vida celeste,
nem malícia de alma
Há uma assimetria insondável, um destino ou
desatino casto e demorado.
Por isso é que está de/lado.
Existe, ao/centro, uma força assombrosa.
 
Nele tudo ousa.
Vai morrer imensamente (ass) assinado.
 
                                                            1961-62
 
 
 
herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996





08 junho 2024

jorge de sena / sete sonetos da visão perpétua

 
 
1
 
Anos sem fim, à luz do mar aceso,
te vi nudez quase total, tão grácil
figura juvenil, ambígua e fácil,
e ao longe às vezes totalmente nua
 
em só relance de malícia crua.
Tudo isso me atraía e me afastava,
embora a vista, retornando escrava,
a teus lugares me tivesse preso.
 
E quase sempre então tua figura,
sentada estátua, ou falsa sesta impura,
lá era, ao sol, o tempo congelado.
 
Hoje, subitamente, tu não viste
ninguém senão o meu olhar quebrado,
e com lenta inocência te despiste.
 
Mas quantas rugas no sorriso ansiado!
 
 
 
jorge de sena
peregrinato ad loca infecta (1969)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




07 junho 2024

fernando pinto do amaral / nenhuma sombra ilude o que o olhar

 
 
1.
 
Nenhuma sombra ilude o que o olhar
protege quando arrasta
o céu por uma noite. Condenado
às primeiras imagens, não sei
dissolver-te nas águas de outubro, deixar
que o vento me responda. Qualquer coisa
tão perto e tão longe da morte.
 
 
fernando pinto do amaral
a luz da noite
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000