14 maio 2024

edgar lee masters / ollie mcgee

 



 
Vistes caminhar pelas ruas da povoação
um homem cabisbaixo e de rosto cadavérico?
É o meu marido. Esse que, com secreta crueldade,
que nunca revelei, me roubou a juventude e a beleza;
até que, por fim, enrugada, com os dentes amarelos,
quebrado o meu orgulho, humilhada e submissa,
desci a esta cova.
E sabeis o que devora o coração do meu marido?
O rosto que eu fui, face ao rosto que ele me deu!
É isso que o arrasta para o sítio onde estou.
Na morte, assim, alcancei a minha vingança.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003



13 maio 2024

charles bukowski / conselho amigável a imensos jovens adultos

 
 
 
Vai ao Tibete.
Anda de camelo.
Lê a bíblia.
Tinge os sapatos de azul.
Deixa crescer a barba.
Dá a volta ao mundo numa canoa de papel.
Assina o Saturday Evening Post.
Mastiga com o lado esquerdo da boca apenas.
Casa-te com uma mulher com uma perna e faz a barba
                                     com uma navalha de barbear.
E grava o teu nome no braço dela.
 
Escova os dentes com gasolina.
Dorme todo o dia e trepa às árvores à noite.
Sê um monge e bebe buckshot e cerveja.
Mete a cabeça debaixo de água e toca violino.
Faz dança do ventre diante de velas cor-de-rosa.
Mata o teu cão.
Concorre a Presidente da Câmara.
Vive num barril.
Parte a cabeça com um machado.
Planta túlipas à chuva.
 
Mas não escrevas poesia.
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018
 



12 maio 2024

elizabeth bishop / cidade nocturna

 



                                

[Do avião]
 
Nenhum pé o conseguia suportar,
os sapatos são demasiado finos.
Vidro partido, garrafas partidas
montes deles a arder.
 
Por cima daquelas fogueiras
ninguém conseguia caminhas:
aqueles ácidos flamejantes
e diversos sangues.
 
A cidade queima lágrimas.
Um lago enrugado
de um verde azulado
começa a fumegar.
 
A cidade queima o crime.
– Para a libertação do crime
o calor central
tem de ser assim intenso.
 
Linfa diáfana,
túrgido sangue vivo,
salpicam o exterior
com coágulos de ouro
 
para onde correm, fundidos,
nos subúrbios escuros,
verdes e luminosos
rios de silicato.
 
Uma lagoa de betume
um grande magnate
chorava sozinho,
uma lua escurecida.
 
Um outro exaltava
um arranha-céus.
Olhem! Incandescente,
os seus fios gotejam.
 
O incêndio
luta por ar
num terrível vácuo.
O céu está morto.
 
(Porém, há criaturas,
cuidadosas, suspensas.
Poisam os pés, caminham
Verde, vermelho; verde, vermelho.)
 
 
 
elizabeth bishop
geografia III
trad. maria de lourdes guimarães
relógio d´água
2006
 



11 maio 2024

emily dickinson / entre a forma de vida e a vida

 
 
 
Entre a forma de Vida e a Vida
É tão grande a diferença
Como o Álcool entre o Lábio
E o Álcool no Jarro
Este – excelente a manter –
Mas no desejo em êxtase
O sem rolha é melhor –
Eu sei porque provei
 
 
 
emily dickinson
duzentos poemas
trad. ana luísa amaral
relógio d´água
2014




10 maio 2024

louise glück / neve de primavera

 
 
 
Olha o céu nocturno:
há em mim dois eus, dois tipos de poder.
 
Estou aqui contigo, à janela,
a ver como reages. Ontem
a lua ergueu-se sobre a terra húmida no jardim.
Agora, a terra cintila como a lua,
matéria morta incrustada de luz.
 
Já podes fechar os olhos.
Ouvi o teu pranto, e o pranto antes do teu,
e o que eles exigiam.
Mostrei-te o que desejas:
não crença, mas rendição
à autoridade, o que depende da violência.
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020




09 maio 2024

wislawa szymborska / poema para

 
 
Houve uma vez. Criou o zero.
Num incerto país. À luz de estrela
já porventura extinta. Entre datas
nas quais alguém jurou. Sem um nome,
polémico que fosse. Não deixando
abaixo do seu zero uma ideia simples e dourada
sobre a vida, que é aquilo que é. A lenda ao menos
de ter um dia acrescentado um zero à rosa
que colheu e feito um ramalhete.
De que, estando a morrer, partiu para o deserto
num camelo de cem bossas. De ter adormecido
à sombra das palmas da vitória. De que acordará
quando estiver já tudo contado
até ao mais pequeno grão de areia. Que homem este!
Interstício entre facto e pensamento
Passou despercebido. Refractário
a todos os destinos. Repelindo
cada silhueta que lhe dou.
Sobre ele se adensou um silêncio sem cicatriz na voz.
Transfigurou-se a ausência em horizonte.
O zero escreve-se sozinho.
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998




 

08 maio 2024

giórgios seféris / automóvel

 
 
Na estrada, abraço de compasso,
dois braços, um apelo,
dedos de vento no cabelo
mil milhas no regaço,
 
vamos os dois livres, sem cruz,
chibata no olhar langue;
são-nos enfeites alma e sangue,
e vamos nus! Nus! Nus!
 
Nesse leito de alto espaldar
de almofadas de penas,
ao longe fogem nossas penas,
qual peixe à beira-mar.
 
E nos dois braços estendidos,
apenas corpos, vamos,
pelos dois lados, em dois ramos,
corações repartidos.
 
De Strofi, 1931
 
 
 
giórgios seféris
a grécia de que falas…
antologia de poetas gregos modernos
trad. de manuel resende
língua morta
2021





 

07 maio 2024

ángeles mora / a rua em que tu vives

 
 
Não faço nada desde que te vi.
Os livros continuam abertos onde estavam.
Os cadernos em branco.
O relógio mudo.
O calendário, ai,
deteve-se num dia…
 
Não faço nada desde que te vi.
 
Mas os meus passos aprenderam
O caminho da tua casa.
 
 
 
ángeles mora
poesia espanhola de agora I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997




06 maio 2024

gottfried benn / mãe

 
 
 
Trago-te em mim como uma ferida
que não se fecha em minha fronte.
Nem sempre dói. E não se apouca
ao coração por ela a vida.
Só fico às vezes cego de repente e sinto
sangue na boca.
 
 
 
gottfried benn
50 poemas
tradução vasco graça moura
relógio d’água
1998



05 maio 2024

jorge luís borges / talho

 
 
 
Mais vil do que um bordel,
O talho rubrica a rua como uma afronta.
Sobre o dintel
uma cega cabeça de vaca
preside ao conciliábulo
de carne berrante e mármores finais
com a majestade remota de um ídolo.
 
 
 
jorge luís borges
obras completas 1923-1949 vol. 1
fervor de buenos aires (1923)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998




04 maio 2024

joan margarit / a liberdade

 
 
É a razão da nossa vida,
dissemos, estudantes sonhadores.
É a razão dos velhos, matizamos agora,
a sua única e céptica esperança.
A liberdade é uma estranha viagem.
Começa nas praças
De touros com cadeiras na areia
nas primeiras eleições.
É o perigo, de madrugada, no metro,
são os jornais ao fim do dia.
a liberdade é fazer amor nos parques.
A liberdade é quando começa a madrugada
de um dia de greve geral.
É morrer livre. São as guerras médicas.
As palavras República e Civil.
Um rei partindo de comboio para o exílio.
A liberdade é uma livraria.
Andar indocumentado.
As canções proibidas.
Uma forma de amor, a liberdade.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




03 maio 2024

fernando echevarría / na primavera

 



 

 
Na primavera o ritmo é doloroso.
Desprende-se do peso enegrecido
da letargia. Para trazer o sono
à fulgência da enxúndia. Ao gordo limo
de onde o incremento recôndito dos pomos
há-de extrair o seu licor polícromo.
De aí que, enquanto se enresinam troncos,
ceda a matéria à densidão do brio
e rebente por onde a delgadez dos poros
melhor se afaz à floração do brilho.
Por isso a primavera espanta. Todo
o arranque de sangue traz consigo
essa cesura de depois de o fogo
deixar o espaço para a paz do espírito.
 
 
 
fernando echevarría 
geórgicas
afrontamento
1998





02 maio 2024

lawrence ferlinghetti / era um rosto que a escuridão podia matar

 



8
 
Era um rosto que a escuridão podia matar
                                                      num ápice
     um rosto que tão facilmente se magoaria
                                         com o riso ou a luz
 
 
          «Nós pensamos de aneira diferente à noite»
                                                        disse-me ela uma vez
recostando-se languidamente
 
 
                                    E era capaz de citar Cocteau
 

«Sinto que há um anjo em mim» dizia ela
                                          «que estou constantemente a escandalizar»

 
          Então sorria e desviava o olhar
                    acendia-me um cigarro
                                                     suspirava e erguia-se
e espreguiçava
                      a sua doce anatomia
 
                                                    descaía um collant
 
 
 
lawrence ferlinghetti
poemas de pictures of the gone world (1955)
uma coney Island da mente
tradução margarida vale de gato
antígona
2024