22 outubro 2023

paulo teixeira / tempo sem fuga




 

 

I
 
Tempo sem tempo
para o amor virtual;
para recitar «em armas sublevam-se»
os seus desejos mais secretos
e a sorte nessas coisas.
 
Tempo sem tempo
para ir mais fundo e subir mais alto
– morte e ascese em nós –
quando a vida é um pesa-papéis
e o passado à mente vem
com sua beleza grutesca
e solidão hospitalar:
 
a flor da idade? (concedam-nos,
p.f., mais voláteis alambiques).
 
 
II
 
Fuga sem fuga
no silêncio
no sono
no clamor que nos leva a voz
e a modulação de certas palavras
fundo na via lacrimal.
 
Fuga sem fuga
na oração nocturna
na dança (coreia) sem o peso do mundo
no último alento antes do salto
para a graça divina.
 
 
 
paulo teixeira
autobiografia cautelar
gótica
2001
 



 

21 outubro 2023

manuel cintra / rotação

 




 

 
I
 
 
                                                    (e vou-me embora com ar de borboleta triste,
                                                     depois da chuva, e volto mais tarde de peito
                                                     cheio de rosas.)
 
 
 
E olho para o espelho e faço a barba e coloco em cima do bordo do lava-loiça um pouco do cansaço e abro o peito à noite e tu passas de uma sala para a outra e mostras, em certos gestos, que te vais deitar, e arranco ao fechar de porta da cozinha um pouco da dor às costas, e estou feito cerimónia como um braço aberto que te tape a barriga e acabe enterrado no calor das nádegas, e vou buscar um copo de água, e arranco ao descer da persiana uma dentada no tempo, e chamo sobre nós a calma do céu, e deito-me ao teu lado também desta vez é de noite é de poucas horas é tão longa.
 
 
 
manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981
 


20 outubro 2023

paul éluard / ela surge…

 



 

 
Ela surge – mas só à meia-noite, quando todos os pássaros brancos fecham as suas asas sobre a ignorância das trevas, quando a irmã das miríades de pérolas oculta as mãos na sua cabeleira morta, quando o triunfador se compraz na volúpia dos soluços, cansado das suas devoções à curiosidade, máscula e esplêndida armadura de luxúria. Ela é tão meiga que o meu coração se transforma. Eu temia as grandes sombras que tecem os tapetes do jogo e os vestidos, tinha medo das contorções do sol ao cair da noite, dos inquebráveis ramos que purificam as janelas de todos os confessionários onde as mulheres adormecidas nos esperam.
 
Ó busto de memória, erro de formas, linhas ausentes, chamas extintas dos meus olhos cerrados, estou perante a tua graça como uma criança na água, como um ramalhete de flores num grande bosque. Nocturno, o universo move-se no teu calor e as cidades de ontem têm gestos de rua mais delicados do que a flor do espinheiro, mais impressionantes do que a hora. A terra ao longe multiplica-se em sorrisos imóveis, o céu envolve a vida: um novo astro do amor desponta em todos os horizontes, e eis que os últimos sinais da noite se desvanecem.
 
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977




19 outubro 2023

maria-mercè marçal / o anjo





 

 
Aquém do esquecimento e além da memória
há um anjo negro, de asas afusadas,
que me prende o olhar, e nele espelha
seu desejo lascado, a sede nos lábios:
– Cubos de sangue no fundo da taça mais vazia.
 
 
 
maria-mercè marçal
desglaç / degelo
tradução meritxell hernando marsal
e beatriz regina guimarães barboza
editora urutau
2019



 

18 outubro 2023

robert desnos / terra

 
 
 
Dia após dia,
Uma onda atrás de outra.
Aonde vais? Aonde vão?
Terra assassinada por tantos homens errantes!
Terra enriquecida pelos cadáveres de tantos
                                                       homens.
Mas a terra somos nós,
Não estamos em cima dela
Mas nela, desde sempre.
 
 
 
robert desnos
luto por luto / poemas
trad. diogo paiva
sr teste edições
2022
 

17 outubro 2023

miguel serras pereira / na morte das horas

 
 
Um dia ficámos sós e a teu lado
os anos vão ficando enquanto passam
 
Perdendo-se vão connosco adormecidos
nas casas sem regresso onde moramos
 
Que água lavará da tua boca
o sangue que secou de tanto vento?
 
Quebra-se a espada e vira a sua lâmina
o fulgor contra nós dos nossos olhos
 
Um mar de areia insiste nestas veias
que roubam o alto mar aos mares do sono
 
que as sementes do sangue não semeiam
senão o vento inútil que as secou
 
Árvore moribunda pântano de sede
ou animal que nasce da ferida
 
Agora voam e as asas envenenam-nas
as horas que te esperavam e morreram
 
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
todo o ano 1990
barricada de livros
2022
 



16 outubro 2023

francisco josé viegas / da dimensão das ilhas

 




 
de um lado, a visão de um farol, Oileán na Tuí,
e os declives de Daibhche escurecendo o mar.
do outro, em frente aos ilhéus desabitados,
a pequena aldeia de Bun Gabhla;
estende-se a mão sobre o mapa, fica quente
ao tocar as pequenas elevações de pedra. nelas cresce
o musgo, a melancolia, flores que resistem ao temporal,
é talvez o destino que repete a viagem
de John Dillon em direcção à América, escapando aos saxões.
assinala a sua partida uma pequena inscrição
junto às igrejas da colina, em Tempall Chiaráin.
viu ele, depois de outros, que o destino da sua pátria
teria de atravessar essas ruínas vazias.
 
 
 
francisco josé viegas
hífen 7 abr 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992
 


15 outubro 2023

bernardo soares / quantas coisas que temos por certas e justas,

 
 
Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou envólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!
 
Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. E todo o mundo me surge, em momentos em que a meditação se me torna um sentimento, e com isso a mente se me obnubila, como uma névoa feita de sombra, um crepúsculo dos ângulos e das arestas, uma ficção do interlúdio, uma demora da antemanhã. Tudo se me transforma em um absoluto morto de ele mesmo, numa estagnação de pormenores. E os mesmos sentidos, com que transfiro a meditação para esquecê-la, são uma espécie de sono, qualquer coisa de remoto e de sequaz, interstício, diferença, acaso das sombras e da confusão.
 
Nesses momentos, em que compreenderia os ascetas e os retirados, se houvesse em mim poder de compreender os que se empenham em qualquer esforço com fins absolutos, ou em qualquer crença capaz de produzir um esforço, eu criaria, se pudesse, toda uma estética da desconsolação, uma rítmica íntima de balada de berço, coada pelas ternuras da noite em grandes afastamentos de outros lares.
 
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de porque se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era que um via uma coisa e o outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão.
 
Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
 
s.d.
 
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol. II
europa-américa
1986
 



14 outubro 2023

maria victoria atencia / a visita

 



 

 

    Em noites que eram suas à casa regressava
pela vaga memória de um antigo desejo
e às escuras deixava no chão do corredor
uma pegada de cinza acre e o sussurro
de uma voz que me ia dando alento o dia inteiro.
 
 
 
maria victoria atencia
antologia poética
compás binario
tradução josé bento
assírio & alvim
2000




13 outubro 2023

ruy belo / uma forma de me despedir

 




 
Há o mar há a mulher
quer um quer o outro me chegam em acessíveis baías
abertas talvez no adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não de uma forma qualquer
chamar mas de uma certa maneira
talvez um apelo ou uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas disponho somente de duas palavras
desde a primeira manhã do mundo
para nomear só duas coisas
apenas preciso de as atribuir
Não sei se gosto mais do mar
se gosto mais da mulher
Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a mulher
não digo mar ou mulher só por dizer
Ao dizer o mar a mulher
há penso eu um certo tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a mulher o mar
mar mulher assim ditos
são uma maneira talvez de gostar
e a consciência de que se gosta
e um prazer em o dizer
um gosto afinal em gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos ser a/mar a mulher
mera forma talvez de uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular melhor de tarde em tarde
no mês de setembro nas marés vivas
O melhor da mulher talvez o olhar
é para mim o mar da mulher
e à mulher que um só dia encontro na vida
de passagem um simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos quilómetros do mar
mas mulher que não mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor ou submerso em cuidados
a essa mulher qualquer
eu chamo mulher do mar
Nos fins de setembro quando eu partir
de uma cidade seja ela qual for
quando eu pressentir que alguém morre
que alguma coisa fica para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou numa água
num pouco de água ou em muita água
onda do mar lágrima ou brilho do olhar
eu recear seriamente vir-me a submergir
direi alto ou baixo conforme puder
com a boca toda ou já a custar-me a engolir
as palavras mar ou mulher
com certo vagar e cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra coisa qualquer
uma forma de me despedir
 
 
 
ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004




12 outubro 2023

mark strand / os restos





 

 

                               Para Bill e Sandy Bailey
 
 
 
 
Esvazio-me dos nomes dos outros. Esvazio os meus bolsos.
Esvazio os meus sapatos e largo-os à beira do caminho.
À noite faço retroceder os relógios;
Abro o álbum de família e vejo como era em rapaz.
 
O que gano com isto? As horas fizeram o seu trabalho.
Digo o meu próprio nome. Digo: adeus.
As palavras seguem-se umas às outras seguindo vento.
Amo a minha mulher mas mando-a embora.
 
Os meus pais deslocam-se dos seus tronos
para dentro dos quartos leitosos das nuvens. Como posso cantar?
O tempo diz-me o que sou. Mudo e sou o mesmo.
Esvazio-me da minha vida e a minha vida é o que me resta.
 
 
 
mark strand
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020
 





 

11 outubro 2023

billy collins / o papel da poesia

 



 
Acordei cedo numa terça-feira,
fiz uma cafeteira de café para mim,
fui de carro até à aldeia,
parando no correio,
a seguir no banco, onde descontei um pequeno cheque
de uma revista, e quando voltei para casa
li o jornal um bocado,
começando pela secção de ciência,
bebi outro café e comi uma tigela de cereais.
 
Daí a pouco era hora de almoço.
Não tinha fome nenhuma
mas parei por um momento
a olhar pela grande janela da cozinha
e foi então que percebi
que o papel da poesia é recordar-me
que há muito mais na vida
do que aquilo que faço habitualmente
quando não estou a ler ou a escrever poesia.
 
 
 
billy collins
a aranha irlandesa & outros poemas,
trad. francisco josé craveiro de carvalho
do lado esquerdo
2023




10 outubro 2023

juan manuel bonet / não tenhas medo

 
 
 
Pelo corredor avança a penumbra,
umas formas que parecem fantasmas.
Mas não tenhas medo, não são espíritos maus.
São apenas duendes brincalhões
cujo ser se dissolve na música
do piano vizinho ou na canção
de um rio do teu país, que lembres
fechando os olhos. Não, não tenhas medo,
eu acenderei a lâmpada e ir-se-ão.
 
 
 
juan manuel bonet
poesia espanhola de agora volume I
trad. de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997