24 julho 2023

luís veiga leitão / prisioneiro

 



 

O prisioneiro é como navio
preso ao cais. Amarras de desterro
com ferrugem de noites a fio
e redes de ferro.
Do casco que um vento negro impele
caiu-lhe a pintura, o próprio nome.
Mas o mar está dentro dele
e não há força que o dome.
 
 
 
luís veiga leitão
ciclo de pedras
portugália
1964
 




23 julho 2023

antónio franco alexandre / cartão-postal

 




 
um moço, em Olinda, amava a palavra «ter»;
«eu acho bonito, ter». Como não tinha nada,
era livre de dar às palavras;
 
nalgumas não-bocas a palavra «ser»
dá vontade de morrer, já disseram.
Só essa
 
é a força formal das palavras.
esta não é a estória de um encontro.
foi a laboriosa a tarde, no ruído
 
de passos e gritos, e o som
de exactos motores. através dos dedos escorre
a relva, como a ignorância de um sonho;
 
o teu corpo deitado tem
um sabor raro a coisas certas
vê: a terra arada cheia de
 
guerra, uma coisa eu odeio mesmo
é a guerra, falou:
escrever deus ensina mas voz
 
homem só inventou.
 
 
 
antónio franco alexandre
cartão-postal
poemas
assírio & alvim
1996
 



22 julho 2023

harry martison / a impotência

 
 
Certa vez encontrei um machado cravado na terra
até ao ferro.
Era como se alguém tivesse querido cortar o mundo
inteiro em dois
bocados de um só golpe.
A vontade não tinha faltado, mas tinha-se partido o cabo.
 
       Gräsen i Thule, 1958



harry martison
o destino da árvore é
transformar-se em papel
antologia de poesia sueca
poemas vertidos para português por
amadeu baptista
contracapa
2021





 
 
 

21 julho 2023

daniel faria / zaqueu

 



 
A árvore foi a forma de te ver
E desci para abrir a casa.
De me teres visitado e avistado
Entre os ramos
Fizeste-me passagem
Da folha ao voo do pássaro
Do sol à doçura do fruto.
Para me encontrares me deste
A pequenez.
 
 
 
daniel faria
poesia
se fores pelo centro de ti mesmo
quasi
2003
 




20 julho 2023

josé gomes ferreira / melodia

 



 

IV
De súbito, acordei
perto das coisas distantes
com a vaga tentação
de dar um salto na sombra
até chegar ao coração da Morte.
 
Mas fiquei de olhos fechados
a cair dentro de mim
noutra sombra ainda mais densa
– onde dorme à minha espera,
tão ignorante de abismos,
a minha morte, só minha,
que nunca apagou estrelas
nem adormeceu raízes…
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972



19 julho 2023

miguel serras pereira / da insónia

 
 
Perdem-se todos os caminhos dessa casa
que não pára ao longe de fechar-se à tua espera
e de novo o cavalo do sono cai exausto
nas areias onde o tempo foi vencido
e as aves de passagem se esquecem de voltar
 
 
 
miguel serras pereira
á tona do vazio & reprise
cinquenta anos de poesia de miguel serras pereira 1969-2019
corça 1982
barricada de livros
2022
 





18 julho 2023

yvette k. centeno / primeiro tempo

 
 
 
Os amantes têm de ser terrivelmente inconscientes.
Porque se conhecem o mistério perde-se o sentido e o amor
e apesar de amantes ficam absurdos e cansados.
Assim se diluíram num beijo, momento sem limite dentro deles.
Assim ficaram longas horas estendidos um no outro.
Assim deixaram que os outros, os alheios, corressem de amanhã em amanhã
e só eles ficaram imóveis no passado.
Assim se esqueceram de si próprios, como um relógio muito velho
sem despertador.
Os ponteiros andavam ao contrário e não ultrapassavam nunca a Hora.
 
 
 
yvette k. centeno
opus 1
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019
 



17 julho 2023

sophia de mello breyner andresen / espera

 
 
Deito-me tarde
Espero por uma espécie de silêncio
Que nunca chega cedo
Espero a atenção a concentração da hora tardia
Ardente e nua
É então que os espelhos acendem o seu segundo brilho
É então que se vê o desenho do vazio
É então que se vê subitamente
A nossa própria mão poisada sobre a mesa
 
É então que se vê o passar do silêncio
 
Navegação antiquíssima e solene
 
 
 
sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015
 

16 julho 2023

mário de sá-carneiro / esta inconstância de mim próprio

 



 
Esta inconstância de mim próprio em vibração
É que me há-de transpor às zonas intermédias,
E seguirei entre cristais de inquietação,
A retinir, a ondular… Soltas as rédeas,
Meus sonhos, leões de fogo e pasmo domados a tirar
A torre de oiro que era o carro da minha Alma,
Transviarão pelo deserto, moribundos de Luar –
E eu só me lembrarei num baloiçar de palma…
Nos oásis depois hão-de se abismar gumes,
A atmosfera há-de ser outra, noutros planos;
As rãs hão-de coaxar-me em roucos tons humanos
Vomitando a minha carne que comeram entre estrumes…
 
 
 
mário de sá-carneiro
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes da
poesia moderna portuguesa
organizada por Herberto helder
assírio & alvim
1985
 




15 julho 2023

a. m. pires cabral / a andorinha ou tudo é relativo

 
 
Da andorinha dificilmente se dirá
que é um animal feroz. Pelo contrário,
convêm-lhe adjectivos como grácil.
 
Mas a grácil andorinha abre
para o mosquito uma boca aterradora.
 
 
 
a.  m. pires cabral
resumo, a poesia em 2009
assírio & alvim
2010





14 julho 2023

luis buñuel / não me parece bem não me parece mal

 




 
Eu creio que por vezes nos contemplam
à nossa frente     atrás de nós     ao nosso lado
uns olhos rancorosos de galinha
mais terríveis do que a água podre das grutas
incestuosos como os olhos da mãe
que morreu no patíbulo
pegajosos como um coito
como a gelatina que os abutres engolem
 
 
Creio que hei-de morrer
de mãos espetadas na lama dos caminhos
 
 
Creio que se nascesse um filho
ele quedar-se-ia eternamente a olhar
as bestas que copulam ao entardecer
 
 
 
luis buñuel
poemas
trad. de mário cesariny
arcadia
1977
 



13 julho 2023

a. c. swinburne / solidão

 
 
Mar e depois o mar, areia e depois a vastidão de areia,
     Aqui marfim suave, ali fendido e sulcado pelas águas
     Que através de sulcos escorrem suavemente como chuva ou
                                                                                    neve,
Alongando-se solitárias e tranquilas sob o doce
Brilho cinzento dos céus cujo sorriso nas ondas e na praia
     Refulge como o de um homem que sorri por saber
     Que nenhum sonho pode escarnecer da sua fé,
Nem as nuvens se parecerem ao mar ou à terra vivos.
Há um limite para toda esta desolação,
Para estas falésias desfiguradas e mutiladas,
Para estas eminências arruinadas de muralhas minadas pelo
                                                             mar que deslizam
     Para o mar com todos os seus taludes de flores batidas pelo
                                                                                  vento,
Mas felizes por viver, antes que a esperança se aquiete
     Sob o tumulto das sombrias e densas ondas e horas?
 
 
 
a. c. swinburne
poemas
tradução de maria lourdes guimarães
relógio d’ água
2006
 



12 julho 2023

adam zagajewski / a alma

 




 

Tu sabes que não nos é permitido usar o teu nome.
E nós sabemos que és inexprimível,
anémica, muito frágil e suspeita
de misteriosas faltas na infância.
Sabemos que não te é permitido morar agora
nem na música, nem nas árvores do crepúsculo.
Sabemos – ou melhor, assim nos foi dito –
que não existes em lado nenhum.
E no entanto continuamos a ouvir a tua voz fatigada
– no eco, na queixa, nas cartas que nos
escreve do deserto grego Antígona.
 
 
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017