25 maio 2023

manuel antónio pina / calo-me

 



 

Calo-me quando escrevo
e assim as palavras falam mais alto e mais baixo
Nada no poema é impossível e tudo é possível
Mas não arranjo maneira de entrar no poema
e de sair de mim e por isso a minha voz é profunda e rouca
e por isso me calo (e como me calarei?)
No entanto ninguém é tão falador como eu
Nem há palavras que não cheguem para não dizer nada
 
E vós também: não me faleis de nada, ou falai-me.
Porque não sabeis o que dizeis.
 
 
 
manuel antónio pina
ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde (1969)
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992
 



24 maio 2023

eugénio de andrade / as mãos e os frutos

 



 

V

Nos teus dedos nasceram horizontes
e aves verdes vieram desvairadas
beber neles julgando serem fontes.
 
 
eugénio de andrade
as mãos e os frutos
poesia
fundação eugénio de andrade
2000





23 maio 2023

federico garcia lorca / encruzilhada

 




 
Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
 
 
 
federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013
 



22 maio 2023

walt whitman / canto de mim mesmo

 




I
 
Celebro-me e canto-me,
E aquilo que assumo tu deves assumir,
Pois cada átomo que a mim pertence a ti pertence também.
 
Vagueio e convido a minha alma,
À vontade vagueio e inclino-me a observar a erva do Verão.
A minha língua, cada átomo do meu sangue, composto deste solo, deste ar,
Aqui nascido de pais aqui nascido de outros pais aqui nascidos, e dos seus
           pais também,
Eu, aos trinta e sete anos, de perfeita saúde começo,
Esperando que só a morte me faça parar.
 
Suspensos os credos e as escolas,
Retiro-me por certo tempo, deles saturado mas não esquecido,
Sou o porto do bem e do mal, e seja como for falo,
Natureza sem obstáculos com a sua energia original.
 
 
 
walt whitman
canto de mim mesmo
trad. de José agostinho baptista
assírio & alvim
1999



21 maio 2023

samuel beckett / sânie II

 
 
Havia uma terra de felicidade
o American Bar
na Rue Muffetard
havia lá ovos vermelhos
tenho um sujo quero dizer hemorróidas
regressando do banho
o vapor o deleite o refresco de sumo de frutas
a pena do velho corpo
magrizela, indolente feliz
à larga no meu velho fato
navegando indolente até Puvis a dupla fileira
                                                 [de tulipas
açoitem-me açoitem-me com tulipas amarelas
baixarei as minhas velhas calças
o meu amor coseu as algibeiras vivas vivas olé
                  [pois fê-lo dizendo que era melhor
e então imaculado deslizando dentro dos
                                       [farrapos castanhos
fresco e livre subindo o fiorde de ovos pintados
                                                        [e sinos
desapareço não sabias na taberna
as cavalas jogam bilhar gritam os pontos
a Barfrau produz grande impressão com o seu
                                            [enorme traseiro
estão lá Dante e a bem-aventurada Beatriz
antes da Vita Nuova
as bolas espadanam pouca sorte camarada
estão lá Gracieuse Belle-Belle pia abaixo
Percinet de botas com a sua queixada de
                                                        [cobalto
beijocam-se à lufa-lufa
sugar não é sugar que altere
lo Alighieri retira-se ao revoir a isso tudo
não consigo reprimir um risinho de despeito
escuta
silêncio terrível no salão
um frémito convulsiona Madame de la Motte
percorre sonoro as suas carnes
o grande traseiro silencia-se em espuma
depressa depressa as bengalas de cipó de
              [cavalete para o desconexo palavrório
vivas puellas mortui incurrrrrsant boves
oh súbito súbito antes que ela se recomponha
               [a golilha de bambu para a bastonada
uma fessade à la mode de lua amarga
oh Becky poupa-me não te fiz nenhum mal
                                          [poupa-me maldita
poupa-me boa Becky
manda às tuas víboras que parem Becky que
                          [eu te darei larga recompensa
Senhor tem misericórdia de
Cristo tem misericórdia de nós
 
Senhor tem misericórdia de nós
 
 
 
samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970

20 maio 2023

pablo neruda / acolhe-me no tear da tarde

 
 
Acolhe-me no tear da tarde,
quando o anoitecer vai urdindo
o seu vestuário e palpita no céu
uma estrela cheia de vento.
 
Traze-me a tua ausência até ao fundo,
pesadamente, com os olhos tapados,
atravessa-me a tua existência, admitindo
que este meu coração está destruído.
 
 
 
pablo neruda
antologia breve
tradução de fernando assis pacheco
dom quixote
1971




19 maio 2023

emanuel jorge botelho / poética iii

 



 
e há os poemas que ainda não escrevi,
os que são antes do papel,
os que estão prontos antes das palavras.
desses só há uma sombra
a dizê-los no silêncio,
uma espécie de rumor
que os põe dentro do tempo.
 
 
quando chegam,
já são de linho.
 
 
 
emanuel jorge botelho
nervo/18 maio / agosto 2023
colectivo de poesia
2023
 




18 maio 2023

saint-john perse / os sinos

 



 

 

     Velho homem de mãos nuas,
     reposto entre os homens, Crusoé!
     choravas, imagino, quando as torres da Abadia, como um
fluxo, derramavam o lamento dos sinos sobre a Cidade…
     Ó Despojado!
     Choravas ao pensares nos recifes sob a lua; nos silvos das praias mais distantes; nas músicas estranhas que nascem e sufocam a asa fechada da noite,
     semelhantes aos círculos encadeados que são as ondas de uma concha, à amplificação dos clamores sob o mar…
 
 
 
 
saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016
 



17 maio 2023

albano martins / desta varanda, o mar



 
A saudade do cais não é de pedra,
é de água. Que o digam os olhos
dos que partem, dos que ficam…
 
*
 
La saudade del muelle no es de piedra:
es de agua. Que lo digan los ojos
de los que parten, de los que quedan.
 
 
 
albano martins
desta varanda, o mar
tradução para castelhano de
alfredo pérez alencart
edições simplesmente
2014
 



 

16 maio 2023

antónio josé forte / declaração

 


 

Eu de barba branca a tiracolo
rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
com um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-lo
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo para baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado
 
 
 
antónio josé forte
uma faca nos dentes
parceria a. m . pereira
2003




15 maio 2023

josé maria valverde / sensatez

 
 
             Porque, no amor, a loucura é o mais sensato.
                                                                              A.M.

 
 
É inútil que tu e eu prediquemos
sensatez aos meninos. Adivinham
que não vivem por nada sério, senão
porque o poeta, esse, ainda estudante,
enamorou-se por uma rapariga inerme
e rebelde perante o mundo, sem projectos,
deixando-se viver… E agora não somos
um bom exemplo; sem dúvida se nos nota
que aquele amor nos cresce de ano para ano,
e que se trabalhamos, bem formais,
é para defender a nossa paixão.
 
 
 
josé maria valverde
iluminação do eu
antologia de poesia hispano-americana
tradução de daniel ferreira
contracapa
2021




 

14 maio 2023

cristovam pavia / havia grandes tílias

 




 

Havia grandes tílias aromáticas…
E pedrinhas brilhantes, coloridas
Conforme a luz…
E havia animais
Com rotas desconhecidas…
E folhas estranhas todas diferentes…
 
No jardim passado, em tardes encantadas…
 
E tu estavas lá:
– Menino
Das pálpebras tombadas.
 
 
cristovam pavia
poesia
dom quixote
2010




13 maio 2023

adília lopes / desde as cozinhas na cave

 
 
Desde as cozinhas na cave onde
marroquinos preenchiam tacinhas escacadas
com um doce cor-de-laranja suspeita
até às retretes com as paredes cheias
suponho que de palavrões em várias línguas
tudo era muito cosmopolita a casa
para mim bastante duvidosa ou talvez fosse só eu
que andasse suspeitosa nunca o saberei
lá não hei-de voltar
jamais no meu quarto começou por estar
uma americana que se não se chamava
Daisy pouco lhe faltava
fingia que lia Rich Man, Poor Man
gritava de noite à janela Shut up!
porque realmente saía muita gente
sempre em grita e riso do passage
de que esqueci o nome onde havia poeirentos
vidros azuis translúcidos salitre osgas
depois apareceu-me uma Stefania
que se dizia ruiva veneziana
e viver na Via Cava Aurelia
nunca acreditei em Roma
fazia por tudo e por nada queixas
ao gordo guardador das chaves
que dormia de tronco nu debaixo
de um cobertor branco de pelúcia
dois ou três gatos geralmente pretos perto
(embora estivesse muito abafado o tempo)
lá não hei-de voltar
 
 
 
adilia lopes
dobra
poesia reunida
o decote da dama de espadas (1988)
assírio & alvim
2021