17 fevereiro 2023

roberto juarroz / também traímos a água

 



 
Também traímos a água.
 
A chuva não se reparte para isso,
o rio não corre para isso,
o charco não se detém para isso,
o mar não é presença para isso.
 
Novamente perdemos a mensagem,
as vogais abertas
da linguagem da água,
a sua inaudita transparência palpável.
 
Nem sequer soubemos
beber a transparência.
Beber algo é aprendê-lo.
E aprender a transparência é começar
a aprender o invisível.
 
 
 
roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018




16 fevereiro 2023

oscar wilde / a minha voz

 



 
Neste veloz mundo moderno, inquieto,
Tivemos tudo o que quisemos – eu e tu
E o nosso barco tem agora mastros nus,
E provisões já não nos restam.
 
E, de chorar, minha alegria me abandona,
A minha face empalidece prematura,
A minha boca rubra é curva de amargura,
E a Ruína é o dossel da minha cama.
 
Mas para ti toda esta vida tão repleta
Foi lira só, ou alaúde, ou leve encanto
De violas, ou como quando canta o mar
Que dorme numa concha, e o eco se repete.
 
 
 
oscar wilde
poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2005




15 fevereiro 2023

yorgos seferis / eurípedes, ateniense

 



 
Envelheceu entre o fogo de Troia
e as pedreiras da Sicília.
 
Gostava das cavernas no areal e dos desenhos
          do mar.
Viu as veias dos homens
como rede dos deuses, onde nos apanham como às alimárias;
tentou rompê-la.
Era sibilino, seus amigos poucos;
veio o tempo em que os cães o devoraram.
 
 
 
yorgos seferis
caderno de exercícios
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993
 




14 fevereiro 2023

fernando guimarães / uma planta nasce

 



 

 
Uma planta nasce dividida num vaso. Metade das suas folhas
pertence-me; a outra é de alguém que desconheço. Ambos
estamos ali a ver o mesmo? É no meio que principia a erguer-se
um caule inexistente. Seremos os dois um só? E olhamos
para o que fica dividido até sabermos onde está completa a planta.
 
 
 
fernando guimarães
relâmpago
revista de poesia 15
fundação luís miguel nava
outubro 2004





13 fevereiro 2023

manuel francisco t. / fevereiro, 9



 

Visitam capelas no nevoeiro
a manhã assim os aconselha na
margem de rios gelados os santos a eles
se assemelham recolhidos restos na talha.
 
O calção do menino, a espia doce
que cais conhecem a biografia do
sonho: três poemas, um dia
de chuva nevoeiro pedras sob a pele
 
Visitam túmulos quando acordam.
Os anjos assim os resguardam os círios
a toalha e uma nudez de fra angelico
 
quando já homem à terra se dispôs
a cair para conhecer o lento
carvão da alma, dias de fevereiro
 
 
 
manuel francisco t.
colóquio letras 113-114
fundação calouste gulbenkian
1990


 


12 fevereiro 2023

pedro tamen / annie besant

 
 
Os falsos deuses sentaram-se em redor
Tal como nas mesas de pé-de-galo
foi preciso chegar aos últimos extremos
foi preciso que o ar ardesse de murmúrios
para que o lápis começasse a mover-se
Não há morte dizia
de um lado e outro do papel
não há morte dizia
de um lado e outro do papel
são as mesmas vozes o trovão
é o mesmo atroando os ouvidos pois
de um lado e outro do papel dizia
não há morte
Morte há porém no papel onde o lápis
soprado se moveu
Só no papel
só no papel mortalha
 
 
 
pedro tamen
relâmpago nº. 13 10-2003
revista de poesia
fundação luís miguel nava
2003
 



11 fevereiro 2023

ruy belo / metamorfose

 



 
Ó homem que passas tranquilo na rua
atrás de qualquer próximo perfume
e chegas a casa sem incidentes
ó homem que tens à espera de ti
virada a esquina da rua e do tempo o teu próprio rosto
não tenhas pena de quem morre
de árvore para árvore
e é diferente no princípio e no fim da rua
 
 
 
ruy belo
todos os poemas I
aquele grande rio eufrates
assírio & alvim
2004



10 fevereiro 2023

paul bowles / sidi amar no inverno

 



 

Penso que nunca vi o teu rosto
Num dia de chuva, quando as sombrias artérias do céu
Pulsam junto às árvores, e no teu coração
A água corre. Nunca te vi chorar
Com o monólogo da noite, com a tua mente resistindo ao silêncio.
 
Chegará o dia em que as linhas do céu
Se desprenderão das torres
E em que tu, que tremes pela noite
Partirás para os lugares sombrios ao lado de um desconhecido.
 
 
                                                                              1935
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 




09 fevereiro 2023

regina guimarães / outras gravidades

 




 
Da futura nudez se vestem os factos
mas fio a fio se desnudam horizontes
imitando o que morre ou mata
pois ao nó na garganta seremos reduzidos
se acaso nos julgarem com distinta lata
 
Contudo enlameada vou e voo
sob o signo da pesada lei das asas
acima dessa forca e das minhas forças
abraçando a precisão das bancarrotas
que paira sobre os espírito das casas
 
E se vergonha tenho
é do que ainda não penso
é do que penso e me é estranho
é deste sangue em suspenso
é desta roupa sem corpo
interior e exterior ao mesmo tempo.
 
 
 
regina guimarães
nervo/17 janeiro/abril 2023
colectivo de poesia
2023
 





08 fevereiro 2023

paul celan / oiço tanta coisa de vós

 




 
OIÇO TANTA COISA DE VÓS
que não oiço mais
do que ouvir,
 
vejo tanta coisa de vós
que não vejo mais
do que ver,
 
tanta coisa me assedia
com desconversa
que dou por mim a falar
como quem conversa,
que dou por mim
a falar como quem
fica em silêncio.
 
Eu vivo, forte.
 
 
 
paul celan
a morte é uma flor
trad. de joão barrento
relógio d´água
2022




07 fevereiro 2023

joão miguel fernandes jorge / vivi nesta casa muitos anos

 



 

Vivi nesta casa muitos anos.
Agora mudaram já decerto a fechadura
e as pequenas coisas que fazem uma casa.
As chaves já não as trago
ao lado dos meus gestos.
 
Mudaram os móveis
deitaram fora as cortinas
e as paredes
trazem agora um calendário novo.
 
Uma casa é sempre
caliço cheiros alianças.
Eu avanço sobre o silêncio de
ainda
esperar por ti.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019




06 fevereiro 2023

rui caeiro / fica e é só o que fica

 
 
Fica e é só o que fica: o primeiro encontro
o primeiro beijo numa gare deserta
o mar por líquida ou aérea testemunha
 
depois a longa gestação do adeus
único e verdadeiro adeus
o subtil envenenamento da memória
 
 
 
rui caeiro
baba de caracol
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




05 fevereiro 2023

tereza balté / os idílios

 




 

Pousando no espelho os olhos serenos
não te encontrei ou procurei atento
quem ultrapassa a mão pelos cabelos
onde passaremos o inverno?
 
quem abrirá a porta quando torno
à ternura do braço agora outro
pesado e mais antigo no contorno
de quem também voltou mas volta novo?
 
os olhos repousam calando nos olhos
a justa memória de cada abandono
são retinas cegas no espelho sem fundo
já nada reflectem perderam o rosto.
 
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977