09 setembro 2022

joan margarit / a rapariga do semáforo

 
 
Tens a mesma idade que eu tinha
quando comecei a sonhar com encontrar-te.
Então não sabia, tal como tu
não aprendeste ainda, que um dia
o amor seria esta arma carregada
de solidão e de melancolia
que agora aponta para ti desde os meus olhos.
És a rapariga que procurei
tanto tempo quando ainda não existias.
E eu sou aquele homem para o qual
quererás um dia dirigir os teus passos.
Mas então estarei tão longe de ti
como agora tu de mim neste semáforo.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




08 setembro 2022

edgar lee masters / chase henry

 
 
Em vida eu fui o bêbado da vila;
quando morri o padre negou-se a enterrar-me
em solo sagrado.
E isso acabou por ser para mim uma sorte,
pois os Protestantes compraram este lote
e enterraram aqui o meu corpo,
junto à campa de Nicholas, o banqueiro
e de Priscilla, a sua mulher.
Considerai, ó almas prudentes e piedosas,
como a vida, contra a corrente,
traz honras funerárias a quem viveu na humilhação.
 
 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




07 setembro 2022

sylvia plath / seria fácil dizer que estaria disposta a lutar por ti

 



28 de janeiro de 1956
 
 
seria fácil dizer que estaria disposta a lutar por ti, ou a roubar e a mentir; há em mim muito desse desejo de me entregar ao máximo, e se os homens lutam por causas, as mulheres lutam pelos homens. numa crise, é fácil dizer: irei erguer-me e permanecer ao teu lado, mas aquilo que eu faria é também o mais difícil para mim, com a minha tendência absurda para o idealismo e o perfeccionismo: acredito que estaria ao teu lado e te alimentaria e esperaria contigo ao longo dos inevitáveis reinos de mesas, cadeiras, couves-flores até esses raros e fantásticos momentos em que somos anjos, e nós somos anjos em crescimento (algo que os anjos celestes nunca poderão ser), e somo-lo quando, juntos, fazemos com que o mundo se ame a si mesmo e arda. eu  sentar-me-ia por ali, a ler, a escrever, a escovar os dentes, ciente de que em ti havia as sementes de um anjo, o meu tipo de anjo, com o fogo e espadas e um poder abrasador. porque é que levo tanto tempo a descobrir para que são feitas as mulheres? essa noção irrompe devagar em mim, insistente, como bolbos de túlipas em abril.

 
 
sylvia plath
diários 1950-1962
trad. josé miguel silva e inês dias
relógio d´ água
2021






06 setembro 2022

mário cesariny / parada

 
 
 
Com um grande termómetro no chapéu
e um certo ar marcial de género equidistante
todos saíram hoje das suas casas na duna
para a rua a soprar o vento que vem de longe
a certeza que há-de vir de longe
a formiga que vem de muito muito longe
 
Os prisioneiros polícias dos polícias prisioneiros
nas montras nos passeios por baixo dos bancos
passam os pontos escuros para o outro lado
sem esquecer o espelho
sem esquecer o aranhiço meticulosamente pequenino para fazer a
          surpresa
sem esquecer a borboleta tonta que sobe no horizonte
da cor do sol
o pescoço da nossa felicidade



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999




05 setembro 2022

fernando arrabal / tenho uma bolha de ar

 
 
Tenho uma bolha de ar.
Sinto-a perfeitamente.
Quando estou triste
ela fica mais pesada
e por vezes, se choro,
dir-se-ia uma gota de mercúrio.
 
A bolha de ar desloca-se
do cérebro
ao coração
e
do coração
ao cérebro.
 
 
 
fernando arrabal
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




04 setembro 2022

álvaro de campos / no lugar dos palácios desertos e em ruínas

 
 
 
No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas
De quem sabe amar.
 
Qualquer que ele seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,
Qualquer fosse o voo.
 
Por certo eles foram mais reais e felizes.
 
1-3-1917
 
 
 
fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944





03 setembro 2022

mário de sá-carneiro / eu não sou eu nem sou o outro

 
 
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
          Pilar da ponte de tédio
          Que vai de mim para o Outro.
 
 
 
mário de sá-carneiro
mário soares, os poemas da minha vida
público
2005






 

02 setembro 2022

leopoldo alas / o tempo nos olhos

 
 
Não é o tempo o que me preocupa ter perdido
quanto os olhos que tive, limpos. E o cheiro do mar,
um rumor de vozes, a praia que sem saber porquê
me figuro intensa (mesmo sabendo que já então
era incómoda a areia e que queimava).
E lamento ainda mais que tudo aquilo que nunca sucedesse,
que tantos dias quanto suponho que vivi não existam,
nem sequer na memória. Porque não posso lembrar-me
de nada. e é inútil evocar a imagem de sempre:
areia muito fina que se escapa entre os dedos da mão.
Porque é mais triste que uma imagem que se escape o tempo
e que, farto de demónios, o teu olhar se apague.
E o cheiro do mar, um rumor de vozes, a praia…
 
 
 
leopoldo alas
poesia espanhola de agora vol. II
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997





 

01 setembro 2022

paul bowles / mensagem

 
 
Ninguém gritou no Verão
Os dias eram quartos quentes
Pelos irrespiráveis corredores das noites
Um dragão atravessou as pontes do som
Com o brilho das suas escamas e arrastando a cauda
Através dos soluçantes parques, assustando os ratos
 
Tropeçando desceu as ruas e afastou-se da colina
O seu riso percorreu e serpenteante rio
Todas as cúpulas da cidade estremeceram no seu alabastro
E junto às árvores dos subúrbios do sul
As ervas mais secas quebraram-se e enrugaram-se
 
 
                                                         1929
 
 
 
paul bowles
poemas
trad. josé agostinho baptista
assírio & alvim
2008
 



31 agosto 2022

joão pedro grabato dias / quero explicar-lhes

 



 
Quero explicar-lhes, Venho a explicar-lhes
a técnica minuciosa de não chorar certas lágrimas
o código das mil pequeninas astúcias serenas
os concretos maneirismos viúvos que resultam nesta
petrificada imobilidade, nesta insónia alheada
de fazer medo aos amigos, a decompor-lhes os mil modos
correctos de hibernar em estátua passante,
desmontar-lhes, preciso, o sangrento teor das rodas
dentadas no indizível terror de aqui estar
de não ver o fim, de temer qualquer fim que seja
dar-vos o controlo total pleno do pânico
mergulhar convosco, amigos, inimigos, ó queridos indiferentes
na engrenagem particularmente ambígua da mágoa
no furor coalhado, represado, nos humores vítreos
deste mecanismo de névoa doce e parada
neste extensíssimo vale de ecos contraditórios
neste punho fechado sobre o grito inevitável
nesta preciosa pérola irisada de nunca mais nunca mais
neste gérmen pequeníssimo, neste átomo, neste
nada de nenhures, nesta ausência de tantos futuros possíveis.
 
 
 
joão pedro grabato dias
odes didácticas
o morto, ode didátctica 1971
tinta da china
2021



 

 


30 agosto 2022

marin sorescu / à ícaro

 
 
Fui pedir esmola às aves
E cada uma deu-me
Uma pena.
 
Uma era alta, a da águia,
Vermelha, a da ave do paraíso,
Verde, a do colibri,
Palradora, a do papagaio,
Medrosa, a da avestruz –
Ah, que asas fiz para mim!
 
Meti-as na minha alma
E comecei a voar.
Voo alto de águia,
Voo vermelho de ave do paraíso,
Voo verde de colibri,
Voo falador de papagaio,
Voo medroso de avestruz –
Ah, como eu voei!
 
 
marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997
 



29 agosto 2022

marianne moore / a um caracol

 
 
Se “a compressão é a graça primordial do estilo”,
esse dom te assiste. Ser contrátil é, tal como
a modéstia, uma virtude.
Não é a aquisição de uma coisa qualquer
para fins decorativos,
ou a qualidade incidental que, circunstancialmente,
advém de algo bem dito,
o que apreciamos no estilo,
mas o princípio oculto:
na ausência de metro, “um método de conclusões”,
“um conhecimento dos princípios”
no curioso fenómeno do teu corno occipital.
 
 
 
marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018



28 agosto 2022

t. s. eliot / east coker

 
 
I
 
No meu começo está o meu fim. Uma após outra
As casas erguem-se e caem, desmoronam, são aumentadas,
São mudadas, destruídas, restauradas, ou onde estavam
Fica um descampado ou uma fábrica ou um desvio.
De pedra velha a edifício novo, de lenha velha a fogos novos,
De fogos velhos a cinzas e de cinzas à terra
Que é já carne, pele e fezes,
Osso de homem e bicho, haste de trigo e folha.
As casas vivem e morrem: há um tempo para edificar
E um tempo para viver e procriar
E um tempo para o vento quebrar a vidraça solta
E abanar o lambril onde se apressa o rato do campo
E abanar o arrás em farrapos lavrado com uma divisa silenciosa,
 
No meu começo está o meu fim. Agora cai a luz
Ao longo do descampado e deixa a funda vereda
Encoberta por ramos, escura na tarde,
Onde te encostas a um talude enquanto passa uma carroça,
E a funda vereda insiste no rumo
Da povoação, no calor eléctrico
Hipnotizada. Numa névoa quente a luz sufocante
É absorvida, não refractada, por pedra cinzenta.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Espera pela primeira coruja.
 
                                         Neste descampado
Se não te chegares muito, se não te chegares muito,
A meio de uma noite de Verão, podes ouvir a música
Da débil flauta e do pequeno tambor
E vê-los bailar em redor da fogueira
A associação de homem e mulher
Na dança, a significar matrimónio –
Um honroso e conveniente sacramento.
Dois a dois, conjunção necessária
Um e outro de mão dada ou braço dado,
O que é sinal de concórdia. À roda, à roda do fogo,
Ora saltam as labareda ora se juntam círculos,
Rusticamente solenes ou em gargalhada rústica
Erguem os pés pesados dentro de sapatos toscos,
Pés de terra, pés de argila, erguidos em alegria rural
Alegria daqueles há muito debaixo da terra,
Alimento do trigo. A marcar o tempo,
A marcar o ritmo na sua dança
Como nas suas vidas nas estações vivas
O tempo das estações e das constelações
O tempo da ordenha e o tempo da colheita
O tempo do acasalamento de homem e mulher
E o dos bichos. Pés que se erguem e baixam.
Comida e bebida. Esterco e morte.
 
A madrugada desponta e mais um dia
Se prepara para o calor e o silêncio. No mar o vento da
     madrugada
Encrespa-se e desliza. Eu estou aqui
Ou ali, ou algures. No meu começo.
 
 
 
t. s. eliot
quatro quartetos
trad. gualter cunha
relógio d`água
2004