01 fevereiro 2022

josé carlos barros / os anos

 
 
À janela verás um rosto
de criança
e nem um sorriso terás
no fundo do bolso
para caiar a sua infância
pequena
e sem cuidados.
 
Talvez um pássaro te poise então
no fundo dos cabelos.
 
Mas quando estenderes a mão
 
não haverá um brilho na tarde
e a criança há-de ser
um esqueleto de sombras
a rilhar o riso
com quatro dentes castanhos
sobre uma tábua
onde caíram os anos
fartos de voar.
 
 
 
josé carlos barros
estação
on y va
2020




 

31 janeiro 2022

miguel cardoso / se desci a poços

 
 
Se desci a poços
 
foi por não saber
fazer palas sobre os olhos
nem outros truques de visionário e abat-jour
 
Porque largar a infância
era ir na direcção inversa
dos túneis vastos que me deixara na vista
 
Era arranque em bruto para o alarme
das idades que descem
 
cruzando-me com rimbaud em sentido contrário
deixando cair lâminas de barbear pelos bordos
e levando às cavalitas poetas gastos
nortes de áfrica de hugo pratt
a cores tatuados nas costas da mão
para o caso de se cansar de cadernos e delúgios
 
Se subi a postes
foi pela mesma razão exacta
 
porque o chão era extenso
 
e que viesse depois a gravidade
dizer-me onde estava que ano era
 
e onde aplicar as ligaduras
 
 
 
miguel cardoso
fruta feia
douda correria
2014




30 janeiro 2022

fernando namora / nós e as coisas

 
 
 
Fechou-se este olhar sobre o mundo
deixámos de perscrutar os sussurros interiores
as veias das coisas estão vazias
ao nosso impuro tacto
é preciso o cataclismo para que as neves brilhem
no coração absorto
lá onde a montanha tem a imobilidade das criaturas
                                                          [fulminadas
os enigmas abriram-se como sortilégios
extintos de um brinquedo quebrado
de flor em flor o insecto em vão semeia
a perenidade do testemunho
nem os esfíngicos embustes da natureza
nos fazem tremer de dúvidas iradas
os ventos calaram-se mesmo se bravios
sentámo-nos no átrio onde o sonho é um mural
esfumado e os relógios pararam
 
somos máscaras com o pranto seco
somos espectros.
 
 
 
fernando namora
nome para uma casa
livraria bertrand
1984




 
 
 

29 janeiro 2022

tereza balté / os idílios

 
 
1
Eis o meu demónio
o nosso encontro
o sílex a lareira
a primeira caverna
que voltei
a habitar
 
 
de novo a paixão ou o delírio
o rio à espera
e no fim do tempo o anjo veio
lavrar a pedra
 
 
 
tereza balté
horizontes portáteis
editorial inova
1977




28 janeiro 2022

louise glück / caminhando à noite

 
 
Agora que é velha,
os homens não metem conversa com ela,
por isso as noites estão livres,
as ruas que ao crepúsculo eram tão perigosas
são agora tão seguras quanto o prado.
 
À meia-noite, a povoação está serena.
Os muros de pedra reflectem o luar;
nos passeios, é possível escutar os ruídos nervosos
dos homens estugando o passo para casa, para as suas mulheres e
   mães; a esta hora tardia,
todas as portas estão trancadas, as janelas às escuras.
 
Quando eles passam, não reparam nela.
É como uma folha de erva seca num campo de gramíneas.
Por isso, os seus olhos, habituados a não descolarem do chão,
são agora livres para passear onde quiserem.
 
Quando faz bom tempo e está cansada das ruas, caminha
pelos campos que demarcam o fim da povoação.
Às vezes, quando é Verão, chega a ir até ao rio.
 
Os jovens costumam encontrar-se não muito longe daí,
mas agora o rio está raso por falta de chuva, por isso
a margem está deserta –
 
Na altura, faziam-se piqueniques.
Os rapazes e as raparigas acabavam por formar pares;
Passado algum tempo, metiam-se pelos recessos dos bosques
que o crepúsculo sempre visita –
 
Agora, não se veria vivalma nos bosques –
tendo os corpos nus encontrado outros lugares para se esconder.
 
No rio, a água é só suficiente para que céu nocturno
desenhe padrões nas pedras cinzentas. A Lua brilha,
uma pedra entre muitas outras. E o vento levanta-se;
sopra as pequenas árvores que crescem à beira do rio.
 
Quando olhamos para um corpo, vemos uma história.
Assim que esse corpo deixa de ser observado,
a história que tentava contar acaba por se perder –
 
Em noites como esta, ela chega a caminhar até à ponte
antes de voltar para trás.
O cheiro do Verão persiste em todas as coisas.
E o corpo dela começa a parecer outra vez o corpo que fora o seu
   em jovem,
reluzindo sob as roupas ligeiras de Verão.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




27 janeiro 2022

anna akhmatova / acordar de madrugada

 
 
Acordar de madrugada
Pois a alegria sufoca,
E olhar pela vigia
Para as vagas de cor verde,
Ou no convés com mau tempo
Gasalhada em brandas peles,
Ouvir o bater da máquina,
E não pensar em nada,
Mas, pressentindo o encontro
Com esse que se tornou minha estrela,
Pelas gotas salgadas e o vento
Em cada hora rejuvenescer.
 
Julho de 1917
Slepnevo
 
 
 
anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003
 


26 janeiro 2022

wislawa szymborska / instante

 
 
Vou pela ladeira da colina verdejante.
Erva, florinhas na erva,
como nas gravuras para crianças.
O céu enevoado, a ficar azul.
A vista para as outras colinas propaga-se no silêncio.
 
Como se por aqui não tivesse havido nenhuns câmbricos, silúricos,
rochas rosnando umas às outras,
abismos sublevados,
nenhumas noites em chamas
nem dias em baforadas de trevas.
 
Como se por aqui não se tivessem deslocado planícies
em febris delírios
e gélidos calafrios.
 
Como se somente em outro lugar se tivessem revoltado os mares
e se rompessem as orlas dos horizontes.
 
São nove e trinta, hora local.
Tudo no seu lugar e em impecável concórdia.
No vale, a pequena ribeira na qualidade de pequena ribeira.
A vereda sob a forma de vereda desde sempre e para sempre.
 
O bosque sob o pretexto de bosque por toda a eternidade, ámen.
No alto, os pássaros no papel de pássaros em voo.
 
Até onde a vista alcança, reina o instante.
Um desses instantes terrenos
aos quais se pede que perdurem.
 
 
 
wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006
 




25 janeiro 2022

raymond queneau / sonho

 
 
 
Parecia-me que estava tudo enevoado e nacarado à minha volta, com presenças múltiplas e indistintas, entre as quais, no entanto, apenas se desenhava com bastante nitidez a figura de um homem jovem cujo pescoço demasiado longo parecia, por si só, anunciar o carácter simultaneamente cobarde e refilão da personagem. A fita do chapéu tinha sido substituída por uma guita entrançada. Discutia depois com um indivíduo que eu não via; a seguir, como que amedrontado, lançava-se na sombra de um corredor.
 
Uma outra parte do sonho mostra-mo a caminhar com o sol a pino, em frente da estação de Saint-Lazare. Está com um companheiro que lhe diz: “Devias mandar acrescentar um botão ao teu sobretudo.”
 
Nesse momento, acordei.
 
 
 
raymond queneau
exercícios de estilo
tradução colectiva
edições colibri
2000




 
 
 

24 janeiro 2022

marina tzvietáieva / à vida

 
 
Não colherás no meu rosto sem ruga
A cor, violenta correnteza.
És caçadora – eu não sou presa.
És perseguição – eu sou fuga.
 
Não colherás viva minha alma!
Acossado, em pleno tropel,
Arqueia o pescoço e rasga
A veia com os dentes, o corcel
 
Árabe.
 
 
 
marina tzvietáieva
poesia da recusa
trad. augusto de campos
perspectiva
2011




 

23 janeiro 2022

nydia bonetti / a dor é uma canção…



 
a dor é uma canção colada numa pedra
que vai ao fundo
de qualquer poça d´água
rio
ou mar – água qualquer onde se possa
se afogar
 
 
 
nydia bonetti
& natália gregorini
de barro e pedra
editora urutau
2017





 

22 janeiro 2022

manuel de freitas / alta definição

 
 
                          [para o Carlos Luís Bessa]

 
Escombros, «coisas assim», a raiva
de todos os partidos
a adivinhar-se sem fulgor, murada.
Tristes evidências, triste
desobedecer. Na rua da Alegria
existe ainda uma taberna
com vista para as pombas
e os prédios muito em derrocada.
Que sei eu? na televisão
resgatam corpos sem rosto
de um rio que não passou na minha infância.
O Inverno, como é sabido,
pode ser mortal. «Nós cobrimos
o acontecimento» - parabéns,
o horror em directo fica mais bonito.
 
Convido-te para um copo,
aqui onde tudo finda
– alegria nenhuma, débeis parras
de fingir. Se entardece
ou chove
já não sei falar.
 
 
 
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002




21 janeiro 2022

alexandre o'neill / fim de semana

 
 
Estirado na areia, a olhar o azul,
ainda me treme o parvalhão do corpo,
do que houve que fazer para ganhar o nosso,
do que houve que esburgar para limpar o osso,
do que houve que descer para alcançar o céu,
já não digo esse de Vossa Reverência,
mas este onde estou, de azul e areia,
para onde, aos milhares, nos abalançamos,
como quem, às pressas, o corpo semeia.
 
 
 
alexandre o´neill
de ombro na ombreira 1969
poesias completas
assírio & alvim
2000
 



20 janeiro 2022

vitor matos e sá / festa

 
 
Vamos proteger os dias contra o desgaste
dos dias, a invasão do medo e a dissociação das coisas
repetidas. É preciso, excessivamente, promover
a comunicação do grande e do pequeno tempo,
convidar o imprevisto e o rosto inicial. Dispensaremos
os especialistas da evocação, os funcionários
que administram os lugares e comemoram o eterno.
Vamos antes recriá-lo todos nós para além
do espaço dos templos, teatros,
estádios, nadar no rio elástico
dos gestos e das vozes. É preciso
 
virar o forro às palavras, deixar que fervam
nelas a alegria e o vigor dos risos,
recuperar o jogo livre onde, a arder,
foram pronunciadas as primeiras regras
 
e deixar circular o amor, como um vinho, entre os lábios,
abrir os dedos, trocar as almas, emprestar os rostos,
confundir as vozes no cântico unânime e completo,
pegar fogo ao corpo dançando uns para os outros
nosso único público, hospedados no êxtase
e no possível, para explicarmos com palavras e corpos
o excesso e as fronteiras, a terra e o céu,
a luz e a sombra, a vida e a morte.
 
 
 
vitor matos e sá
poesia do mundo
edições afrontamento
1995