24 novembro 2021

al berto / eras novo ainda

 
 
1
 
pelo lado norte vem o cortante vento do mar
o dia acaba de se agasalhar no musgo das acácias
fico imóvel
atento ao estalar nocturno das madeiras
 
a roupa foi deixada em cima da cadeira
cobre-se de penumbras… a casa treme
com a explosão da pedreira
 
viro-me para a terra alegre dos sonhos
invento uma lua um inverno só para mim
 
donde chegarão aqueles barcos de sobressalto?
 
um dedo arde na poeira das vidraças
uma planta corrói o silêncio dos corredores
debruço-me para a velha mesa encerada
uma aranha arrasta-se sobre a folha de papel
espeto-lhe o aparo… escrevo
a crueldade das palavras que te cantam
 
tento acender outras imagens devoradas pelo tempo
mas estou confuso e definitivamente só
 
de que lado da casa rebentará o novo dia?
em que arrecadação escura sossegará o amor?
 
resta-me escancarar a porta da casa
e sorrir a todos os desconhecidos
 

 
al berto
eras novo ainda 1981/1982
o medo
assírio & alvim
1997






 

23 novembro 2021

jacques roubaud / meditação de 8/5/85

 
 
 
Todos os fins de tarde
 
O vector de luz atravessa
 
A mesma vidraça
 
Afasta-se
 
E a noite
 
Leva-o
 
Até onde te escondes
 
Invisível
 
Na espessura
 
 
 
 
jacques roubaud
alguma coisa negro
trad. josé mário silva
tinta-da-china
2016





 

22 novembro 2021

carlos poças falcão / sinais

 
 
Porque as palavras servem para um mercado de coisas claras, mas para as questões cegas são elas o próprio selo da cegueira. Que fazer com a experiência da incerteza? Ela é a justa provação – e entretanto os sinais tombam como poeira sobre os campos.
 
 


carlos poças falcão
arte nenhuma
poesia 1987-2012
opera omnia
2012






21 novembro 2021

maria amélia neto / meditação sobre sísifo

 
 
Vi-o de novo,
Pela alquimia ancestral da solidão.
De novo se afundou no tempo
A pergunta desde sempre murmurada,
E o fogo crepitou suavemente
E queimou, uma a uma,
As horas da noite.
 
Trazemos na retina a eternidade.
Da aurora
Conhecemos os sinos,
Os planetas adormecidos,
O rio coberto de junquilhos mortos.
Do resto do tempo
Conhecemos o orgulho,
A lucidez desumana,
A tela por pintar,
E o ruído subtil do medo.
 
Aprenderemos a crescer ao lado das roseiras?
A saciar de sol a demência do vazio?
A destruir as velhas raízes?
 
Fluido, fluido é o cerco da solidão.
 
 

maria amélia neto
equinócio
1962

 




20 novembro 2021

antónio gedeão / lágrima de preta

 
 
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
 
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
 
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
 
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
 
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
 
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
 
 
 
antónio gedeão
máquina de fogo
1961




 

19 novembro 2021

paavo haavikko / agora as noites são longas

 



 

 
Agora as noites são longas,
          um breve tempo,
                    quando a penumbra cai sobre a pele,
quando o alento de alguém se confunde com o
                                         cabelo de alguém.
 
 
 
        Puut, kaikki heidän vibreytensä, 1955
 
 


 
paavo haavikko
o mundo adormecido espera impaciente
antologia de poesia finlandesa
trad. amadeu baptista
contracapa
2021

 






18 novembro 2021

gastão cruz / assim nos despedimos

 
 
Assim nos despedimos do violento
som gasto e demorado com que as armas
se despedem agora do outono
assim começa e cessa
 
a solidão na zona destruída
pelos seus acidentes pela demora
da palidez que estende
sobre os dias e noites o desgaste
 
da luz e das palavras
assim nos despedimos das feridas
brevíssimas do tempo sobre o corpo
 
assim nos despedimos do violento
som breve com que as armas de despedem
agora do outono
 
 
 
gastão cruz
as aves
1969





17 novembro 2021

rené magritte / o homem do rosto sem caminho

 
 
 
     Toda a gente se parece com ele mas os seus olhos estão atentos à cidade e ao campo também. É dono das recordações, pormenoriza as aparências. O seu sonho é infalível.
 
 
 
 
rené magritte
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021







16 novembro 2021

fiama hasse pais brandão / da fala

 
 
 
Quando ainda não sabia as palavras possíveis
para passar entre voz e silêncio dos outros,
tal como entre troncos das florestas mudas,
eu falava com as nuvens que vinham
sobre nós a cantar, de trémulas asas,
e aspergiam os aromas do extâse.
 
 

fiama hasse pais brandão
as fábulas
quasi
2002








15 novembro 2021

r. lino / palavras do imperador hadriano no princípio do sono

 
 
cortados os olhos em sono aberto
pelas pálpebras se me ferem os dias
e o teu corpo vejo
desfeito entre lençóis:
sombras de dentes
cravados pelos ombros, sinais do tempo
no rebordo das manhãs.
a mim, no poder, me usaste tu
mais do que a ti, no amor, eu usei.
caminhos e túnicas
por iguais desígnios eu tive
e sobre uns e sobre outras
me alonguei
ferindo de atenção pelos olhos
o corpo como conquista.
antinöé é – no entanto –
teu eco e não minha vontade
de lutar contra a morte.
enquanto percorro esta alegria
de saber que, morto tu,
em mim a vida sinto
para te saudar,
ferem-se-me os dias pelas pálpebras
em sono aberto…
 
 
 
r. lino
livro de lentidão
políptico
companhia das ilhas
2016





 

14 novembro 2021

irene lisboa / outono, um dia

 
 
Cidade, velha cidade,
a ti regresso!
 
Outono, voltaste,
mas nada me trazes,
nem gostos,
nem lembranças,
nem saudades…
 
Nunca tive saudade!
A minha pena,
dor de não ter,
ou de lembrar,
foi sempre rápida e amarga,
nunca dolente,
como é a saudade…
Engano-me?
 
Enfim, outono,
Voltaste! sentimos-te.
Amável, caricioso tempo,
o mais suave do ano!
E eu voltei, também,
aqui estou…
como um molusco
agarrado à concha,
adaptado,
calmo,
indiferente.
 
Passou tempo…
dias, meses,
que me não remoçaram
nem agitaram.
Durante eles vi o mar.
 
O mar é formoso.
Mais formoso
que as casas e as ruas…
Quanto as estranho!
Noto.
Escuras, desiguais!
¿Mas que me importam as casas
e até o mar?
Tudo são quadros
e solidão.
 
É grandioso o mar.
Belo, mas confrangedor…
violento, monótono.
 
Mas que estranheza há em mim,
que há em mim?
 
Há bocado,
daquela janela,
vi uma gaivota.
Tudo me parecia incaracterístico.
Mas a gaivota
lembrou-me o mar…
 
Ó, estar deitada na areia,
e ver passar por cima,
longe,
numa onda de sol,
as gaivotas brancas,
de asas abertas,
refulgentes,
avançando sempre
e parecendo imóveis…
é ver uma coisa ideal,
quase irreal.
 
As gaivotas…
 
Nada! Nem elas,
nem o sol,
nem a névoa,
nem as rochas,
nem a água
têm vida como nós,
nos interessam!
Entristecem-nos…
 

 
irene lisboa
um dia e outro dia…
poesia I
obras de irene lisboa  I
editorial presença
1991






 

13 novembro 2021

fátima maldonado / signo dos peixes

 
 
4
Ontem junto do mar
o fumo devolveu-me a tua sensação.
Caída ali ao pé a gaivota esperava
que uma vaga a levasse
se quiseres.
De qual das mortes teria sucumbido?
Um tiro atravessando o luminoso céu
tê-la-ia prostrado
ou da traição teria reavido
o justo pagamento?
No marfim do bico o sangue destoava
como um dente arrancado nos fica no dentista.
As pedras que apanhara enquanto caminhava
formando à minha volta um túmulo sumário
lembravam-me que a morte
já quase não se afasta.
Acenando aos navios vislumbram-se as sereias
sustendo os maçaricos com que abrem sem gazuas
os cofres submersos,
entesourando assim moedas gangrenadas
de perfis corroídos como talheres inúteis
de prata causticada por noiva que morreu
sem perpassar na loiça a mão suja de Vim.
Antes tínhamos dito
Vendo os pequenos negros de seca carapinha
(maciços de coral espinhando na cabeça):
«Parecem violentos.»
Andando às voltas de bicicleta
nos rápidos passeios que pedem por empréstimo
trazem dependurados no ferro dos pedais
gritos de hienas velhas.
E rindo-se na virilha
assoma a palmatória que misturou as linhas
na palma de seus pais
encostados que foram à parede do posto.
 
 
fátima maldonado
sem rasto
signo dos peixes
averno
2021

 




12 novembro 2021

antónio franco alexandre / duende

 
 
2.
Olha-me agora, que me tens vencido
e sou nas tuas mãos pobre veludo,
de pele morta e rôta mal vestido
e, de sábio que sou, já tartamudo.
Fala-me agora, que não tenho boca
e sou na tua pele mero ouvido,
diz-me palavras soltas sem sentido
ou pede-me por graça o consentido.
Olha-me só para que veja como
tão claro e fundo olhar me tem mantido
na solidão sem nome deste pranto;
ou escreve em mim com hálito de lume
para que seja eu a enrodilhada chama
que se esquece de si e sonha o fumo.
 
 
antónio franco alexandre
duende
assírio & alvim
2002