03 setembro 2021

paul éluard / irmãs de esperança

 
 
Irmãs de esperança ó mulheres corajosas
Que contra a morte tendes feito um pacto
O de unir as virtudes do amor
 
Irmãs sobreviventes
Que jogais vossa vida
P’ra que a vida triunfe
 
Aproxima-se o dia ó irmãs de grandeza
Para rir das palavras guerra dor e miséria
E do que foi a dor já nada restará
 
Cada rosto terá seu direito à carícia.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971





02 setembro 2021

antónio ramos rosa / como se fora aqui

 
 
Como se fora aqui aqui começo
Aqui procuro o gesto de encontrar
onde a procura é febre jovem pressa
a cidade se inclina por um tornozelo lúcido
rodopia a palavra que num lance se espera
o pulso livre martela a luz das têmporas
uma lâmina de água ondula no silêncio
a cidade transpira num corpo desnudado
por uma fenda vivíssima o espaço se ilumina
o poema atravessa o vidro do instante
 
Aqui encontro a chama adormecida errante
 
Como se fora aqui aqui começo
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





01 setembro 2021

joaquim manuel magalhães / cortei uma folha doutra terra

 
 
Cortei uma folha doutra terra
com que nas noites sem frio saíamos a passear.
Ouvi a tua voz ao telefone, rouca,
no susto de mentir, e foi então
que subiu o perfume da flor
ao arame enferrujado dos sentimentos,
os sentimentos à poeira indecifrável
com que te dizia “já és de novo
a ilusão”, o que não amava,
o que sentado ao carro no arrabalde
me dizia, encolhendo os ombros,
“tudo há-de passar”. E passou.
A porta fechou-se, o som do motor
perdeu-se no ruído monstruoso da avenida.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





31 agosto 2021

raymond carver / pelo menos

 
 
Quero levantar-me cedo uma manhã mais,
antes do nascer do sol. Antes mesmo dos pássaros.
Quero atirar água fria à minha cara
e estar à minha mesa de trabalho
quando o céu clarear e o fumo
começar a sair das chaminés
das outras casas.
Quero ver as ondas a quebrarem-se
nesta praia rochosa, não ouvi-las apenas
a bater, como fiz toda a noite durante o meu sono.
Quero ver de novo os navios
que passam pelo estreito vindos de todos
os países marítimos do mundo –
os cargueiros velhos e sujos movendo-se vagarosamente
e os novos e rápidos navios de carga
pintados, sob o sol, de todas as cores
que cortam a água à medida que avançam.
Quero manter-me de olhos bem abertos por eles.
E pelos pequenos barcos que manobram
na água entre os navios
e o porto, junto ao farol.
Quero vê-los a receberem um homem que sai do navio
e a pôr outro lá em cima, a bordo.
Quero passar o dia a ver isto acontecer
e tirar as minhas próprias conclusões.
Detesto parecer ganancioso – e já tenho tanto
pelo qual devo ficar agradecido.
Mas quero levantar-me cedo mais uma manhã, pelo menos.
E ir para o meu lugar com algum café, e esperar.
Esperar, apenas, para ver o que irá acontecer.
 
 
 
raymond carver
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
por luís filipe parrado
língua morta
2020






30 agosto 2021

francis picabia / nadar

 
 
Sou a miragem acima da literatura
dos absintos burgueses.
Terna suposição de mata-borrão alcoólico,
autor fantasma dum trabalho novo!
A estrada é discretamente selvagem,
entrecortada de iluminações.
A morte, ocasião única
de esplendores invisíveis,
está deitada numa cama de descanso.
Como um poeta ímpar,
Sou o autor do mau comportamento.
 


 
francis picabia
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





29 agosto 2021

yvette k. centeno / mediterrâneo

 
 
 
Mais um naufrágio,
quase de mil pessoas
querendo escapar à morte,
morrendo ali afogadas
nas águas traiçoeiras:
tanto corpo
para tão pouco peixe
quem os comer,
nas esplanadas felizes,
não morrerá do veneno
de tanta dor
tão negra?
 
 
 
yvette k. centeno
poemas com endereço (2010-2018)
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019





 

28 agosto 2021

maria teresa horta / os lugares

 
 
Passei pelos lugares
que inventámos
 
o mar
o gesto
o parapeito
 
mas não encontrei
o sol
nem o recanto em seu espanto
 
nem o motivo
o vitral
nem a chama que colhemos
 
Apenas as estradas me indicavam
a rota das mãos que as não tocavam
 
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
minha senhora de mim
dom quixote
2009






 

27 agosto 2021

fátima maldonado / o verão

 
 
Na luz amarela
que Raul Brandão
ousou contemplar
a máquina debulha trigo
na usura do grão, no ruído do pó,
ouvem-se queixas na ordália de espigas.
O gilvaz na cara por pragana
a pele morena cava trincheiras
no coração fugaz das raparigas,
safões sublinham elegância
na bainha dos ossos,
voraz beleza contamina ar
adensa a corrente da voz
tresmalha a fénix no rebanho do sangue.
Máscaras velam olhos,
protecção brutal dos que mergulham
perante tanto sol.
O suor imuniza a combustão,
salitre rasga, conserva, cauteriza,
jovens defuntos
no vinho da mastaba.
O Alentejo invade os enxames de cisco
de luz maligna,
a tarde vai-se desagregando
como um vitral perfeito,
o pólen fertiliza,
mirtilos do desejo
irrompem na lapela dos rapazes cansados
que extenuam os pés e acutilam na fronte
o tímpano da dor.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os frescos
averno
2021





 

26 agosto 2021

louise glück / um dia quente

 
 
Hoje, o sol brilhava,
por isso a minha vizinha lavou as suas camisas de noite no rio –
regressa a casa com tudo dobrado numa cesta,
radiante, como se tivesse acabado de ganhar
mais dez anos de vida. A limpeza fá-la feliz –
diz-nos que podemos recomeçar tudo outra vez,
não precisamos de ficar presos aos erros do passado.
 
Uma boa vizinha – cada uma de nós deixa a outra
entregue à sua intimidade. Ainda agora
ela se pôs a cantar sozinha, pendurando a roupa lavada e húmida no
    arame.
 
Pouco a pouco, dias como este
irão parecer normais. Mas o Inverno foi duro:
as noites a começarem cedo, o amanhecer escuro,
com uma chuva cinzenta e persistente – meses disso,
e depois a neve, como silêncio caindo do céu,
obliterando árvores e jardins.
 
Hoje, tudo isso já vai longe para nós.
Os pássaros estão de volta, a chilrear em torno das sementes.
A neve derreteu; as árvores de fruto estão carregadas de nova e
    aveludada colheita.
Uns quantos casais até passeiam pelo prado, fazendo as promessas
    que são as deles.
 
Deixamo-nos ficar ao sol e o sol cura-nos.
Não tem pressa de ir embora. Permanece suspenso sobre nós, imóvel,
como um actor satisfeito com o seu acolhimento.
 
A minha vizinha fica em silêncio por instantes,
a olhar fixamente para a montanha, a ouvir os pássaros.
 
Tantas peças de roupa, de onde terão vindo?
E a minha vizinha ainda está lá fora,
a pendurá-las no arame, como se a cesta jamais ficasse vazia –
 
Continua cheia, nada acabou ainda,
embora o Sol comece a deslocar-se mais abaixo do céu:
ainda não é Verão, lembremo-nos, é só o princípio da Primavera;
o calor ainda não veio para ficar, e o frio aproxima-se –
 
Ela sente isso, como se a última peça de roupa branca congelasse nas
    suas mãos.
Ela olha para as mãos – vê como estão velhas. Não é o princípio, é
    o fim.
E os adultos, esses, já morreram todos.
Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




25 agosto 2021

luís miguel nava / o azul do mar

 
 
O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020








24 agosto 2021

luiza neto jorge / recanto 13

 
 
Minha irmã é que nasceu a falar
de um derramamento colossal
da solidão.
 
As mulheres, é espesso perfume lembrá-lo,
têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam e nas ocultas
nebulosas do seu copo
o amante adivinha como um homem traído.
 
Assim assim mesmo: nessa penumbra de metal candente
anseia-se, decai a ansiedade
 
e a mulher (Ila, irmã de Ilo o mundo, a minha irmã),
que é repouso vasto enfurecido
corre a apanhá-los.
ao espelho, à flor,
da cintura irrompendo como de um jardim
para uma espécie de corpo inenarrável.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970






 

23 agosto 2021

margaret atwood / poemas atrasados

 
 
 
Estes são os poemas atrasados.
A maior parte dos poemas está atrasada
é claro demasiado atrasada,
como a carta enviada por um marinheiro
que chega depois de ele se afogar.
 
Demasiado atrasadas para serem úteis, tais cartas,
e com os poemas atrasados é parecido.
Chegam como se pela água.
 
O que quer que tenha acontecido:
a batalha, o dia ensolarado, o luar
deslizando para a luxúria, o beijo de despedida. O poema
dá à praia como destroços.
 
Ou atrasados, como se atrasados para jantar:
cada palavra fria ou ingerida.
Canalha, apuro, e vencido,
ou demorar, esperar, um pouco,
esquecido, lamentado, abandonado.
Amor e alegria, até: canções trituradas.
Feitiços enferrujados. Refrães gastos.
 
É tarde, é muito tarde;
demasiado tarde para dançar.
Ainda assim, canta o que puderes.
Acende a luz: canta lá,
canta: Vá.
 
 
 
margaret atwood
afectuosamente
trad. joão luis barreto guimarães
bertrand editora
2021




22 agosto 2021

herberto helder / lugar último

 
 
Escrevo sobre um tema alucinante e antigo.
Esquecimento
que me lembrasse agora para sempre
como
uma roseira. Como
que escrevo assim com um grito maravilhoso
dentro da carne podre, terrivel-
mente.
Nas pancadas da boca.
— Sei cantar devagar, de pé, a enlouquecer muito.
Respirando, sangrando tanto.
Sei cantar com estrelas iradas.
Há uma elevada mulher com flores
na boca e no ânus.
Contra mim, contra minha divagação.
Penso: a flecha ama a onça.
A morte ama o que morre.
Pensei ainda pela pancada dentro: a mulher
ama o homem.
E quando apodrecias debaixo de minha luz
espantada, também pensei:
eu amo-a. Porque mexeste nos meus
nomes desde o nascimento.
Contei-te pelas pétalas coloridas,
e agora
o meu amor é puro puro louco louco.
E o que dorme dorme
do que é forte.
 
Uma mulher passou quando eu dormia ou acordava.
Era uma luz molhada.
Estava ao cimo como lágrimas, estava
com folhas à tona da idade.
Passou uma delicadeza, uma mulher
que ficou.
Existiu um campo transviado.
Uma alagada adivinhação. Por cima
abruptamente
uma — pancada na noite dos órgãos.
 
A noite é não ter amor senão
em luzes.
Com uma pedra sobre a boca.
A pedra sente a boca, a solidão sente
o homem. Digo que um homem beija
interiormente a boca.
Mas era uma mulher que morria,
uma mulher que nascia agora altamente.
Um lúcido campo morto.
 
Passou, transferiu-se, reviveu
sobre a minha cabeça. Atra-
ves-
sava-a
uma flecha. Era
uma cabra silvestre uma cabra azul
uma cabra colorida
pela ira e a doçura e pela altura
saltada de uma cabra entrevista nos grandes céus
loucos.
Era caçada pelo caçador do amor.
Era com os cascos e os malmequeres. Com a delicadíssima
boca humana.
Os veios de ouro.
Era como as belas mamas brancas.
Quente como as urtigas.
Era deitada cor de violeta.
Uma mulher retumbante com todo o silêncio.
Dormia contra mim.
Ela vigiava, corria no ar.
Quebrava no ar. Era a mulher tão pura.
 
— Anos e anos de viagem sideral com os pés
iracundamente
azuis. Sou eu,
como um retrato de cabeça para baixo.
Conheci-me cantador em estado
de amante. Tive
o desviado ofício de canteiro.
Fiz uma catedral. Morri
acocorado. Eu era um amante
com ofício de poeta cego. Um dia
transformei-me na mulher que amava.
 
Em tantos anos não ignoro como os elefantes
florescem. Neste lado de agora
vejo como os cravos batem no ar que bate
na roupa que bate nas pedras.
E penso: houve uma quinta, quarta, uma
terça, uma segunda-feira, uma sexta-
-feira.
Bocados exaltados por cima.
Porta extática debaixo dos raios.
Sábado era um dia de ardente vileza.
Um domingo de amor ou de exemplo.
Eu era um amante que era uma semana
de lado:
               ou era a chuva
amada por uma misteriosa velocidade,
ou o sol que a lentidão
apaixona por dentro.
 
Eu era uma mesa com tantos anos
sentados para comer-me em estado
de pêra inclinada.
Eu fui um amante que comeu uma torre
no meio da praça. Um amante
antropófago.
Eu fui parado e unido.
Quantos anos iracundos. Cantadores.
E se a roupa molhada bate
sobre a minha cabeça, e nela se embebe
a luz penetrante — é preciso transformar-me.
Fui amante como um cão. Fui
de di-
vagação em divaga-
ção a lua lua. Eu ladrava de cima.
Eu era a baixa lua lua onde os pântanos
caíam em êxtase. Perdi
todas as mãos, e na derradeira mão
transformei-me na morte.
Batem os levíssimos nomes como pedras
no ar, mais verdes, como
crisântemos abrindo-se e depois
fechando-se. Crisântemos — digo —
virtuais. Com tantos tantos anos delicados
iracundos de todas as cores.
 
— Celebro agora os dias da sombra de onde
sagrada a loucura se lev-
antava. Quando os cantores eram tomados
pela embriaguez
soturna, e falavam
alto com as ondas à volta. E eu lembro
a entrada
desses dias retumbantes, quando alguém
entoava em sonhos as fontes
da ilusão. E a idade avançava por dentro
da aguda alegria, por dentro e a gente
gritava que era alto tão tão alto — o amor.
 
Celebro a tecelagem, as mãos som-
bria-
mente
embebidas no trabalho. E por cima
de tudo as pedras
rosas da cabeça, os cestos, as liras, o pão.
E em baixo o sangue bate acen-
den-
do e apagan-
do. E eu agora sei tudo, e esqueço
muito devagar. Também com força uma mulher
aperta
os pés sobre a minha boca. E eu pareço
pensar no ar. Pareço
dormir entre gotas frias. Ou então
também pareço vir verga-
do e louco debaixo do estuar celeste.
Nas noites onde cerrados os girassóis
esperavam a ressur-
reição. Ou nos dias levantados
sobre as melancolias mais fortes. Quando
a mulher era levada pela interior
fantasia do seu próprio encerramento.
 
Noites oh noites tantas e
tantas noites oh tantas noites seguidas
intactas, despedaçadas, regeneradas como noites
para dentro e para fora,
debaixo da chuva. Enlouquecendo.
E cantando o corpo, as voltas, os terrenos, os fetos
do corpo, e as achas aproximadas e brilhantes
do corpo humano.
 
E talvez seja este o último exemplo
de amor e a i-
memorial noite lancinante, solidão.
E eu me transmude na zona de uma idade
antiga, e Deus
fale de em mim no puro alto da carne.
E uma onda e outra onda e outra e outra
e outra
onda e onda
batem em sua belíssima deserta altíssima
voz.
 
E não sabemos escutar o barulho
Frio, nem vemos os roseirais dominados pelo silêncio,
oh nem
deliramos nos enormes inóspitos campos
de Deus.
 
 
 
herberto helder
poesia toda
lugar último
assírio & alvim
1996