10 março 2021

julio martínez mesanza / cidade de muitas torres

 
 
Durante muitos anos construíram
sólidas torres. Fizeram-nas altas:
torres de ataque e torres defensivas,
e ao combate civil se acostumaram.
Depois a emulação e o ouro escasso
buscaram os mais pobres materiais.
Amiúde caía uma das torres:
também se acostumaram ao escombro.
Por atacar a lei sobre edifícios
desse lugar absurdo me expulsaram.
Ao ver pela primeira vez de longe
aquela proliferação de torres
que nenhuma muralha protegia,
causou-me riso um símbolo evidente.
Desde então eu dedico os meus esforços
a investigar a causa dessas torres,
a redigir libelos infamantes,
a treinar minha hoste mercenária.
 
 
 
julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






 

09 março 2021

jack gilbert / antes do amanhecer em perugia

 
 
Sentei-me três dias
abismado pelo amor.
Vi durante três noites
as gradações do sombrio.
Da luz. Vi
três manhãs despontarem,
e em todas elas fui apanhado
desprevenido
pelos sinos estrondosos.
O meu coração fendido
como um melão.
E não sarará.
Dá-se
sem sentido
às velhas
que carregam o leite.
Aos homens que varrem, desastrados.
Aos telhados.
Deus me ajude.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020






08 março 2021

pier paolo pasolini / o pranto da escavadora

 
 
I
 
Amar, conhecer
é o que conta, não ter amado,
ou ter conhecido. Angustia
 
viver de um amor passado.
A alma já não cresce.
Neste calor encantado
 
da noite profunda, aqui,
entre os meandros do rio e as visões
adormecidas da cidade constelada de luzes,
 
onde ecoam ainda mil vidas,
o desamor, o mistério, e a miséria
dos sentidos tornam-me hostis
 
as formas do mundo que, até ontem,
eram a minha razão de existir.
Triste, cansado, volto para casa,
 
por negros largos de mercado, tristes
ruas em redor do porto fluvial,
por entre barracas e armazéns que se misturam
 
aos últimos campos. Aqui reina um silêncio
de morte: mas, mais em baixo, na avenida Marconi,
ou na estação de Trastevere, a noite
 
parece ainda amena. Para os seus bairros,
para os seus subúrbios, regressam em motas
ligeiras – de fato-macaco ou calças
 
de trabalho, mas cheios de um ardor festivo –
os jovens, com um companheiro no selim,
rindo, sujos. Os últimos fregueses
 
conversam, de pé, em altos gritos,
aqui e ali, na noite, às mesas
das tascas ainda iluminadas e quase vazias.
 
Magnífica e mísera cidade,
que me ensinaste o que os homens,
alegres e ferozes, aprendem em crianças,
 
as pequenas coisas em que a grandeza calma
da vida se descobre, como, por exemplo,
andar, duro e lesto, entre a multidão
 
das ruas, dirigir-se a outro homem
sem tremer, não ter vergonha
de verificar o dinheiro contado
 
com dedos lentos pelo empregado
que foge, suando, rente às fachadas
numa cor eterna de Verão;
 
defender-me, atacar, ter
o mundo diante dos olhos e não
apenas o coração, compreender
 
que poucos conhecem as paixões
em que vivi:
que, não sendo meus irmãos, são, porém,
 
meus irmãos, porque sentem, justamente,
paixões de homens
que, alegres, inconscientes, inteiros,
 
vivem de experiências
que nunca vivi. Maravilhosa e mísera
cidade que me fizeste viver
 
a experiência dessa vida
ignorada: até me fazeres descobrir
o que, em cada um, era o mundo.
 
Uma lua agonizando no silêncio
que dela vive alveja em violentos
clarões, que, miseramente, na terra
 
onde a vida se cala, nas belas avenidas,
nas velhas ruelas, cegam, mas não iluminam,
enquanto, lá em cima, farrapos de nuvens
 
quentes as reflectem até ao infinito.
É a noite mais bela do Verão.
O Trastevere, no seu cheiro a palha
 
de velhos estábulos, a pensões
vazias, ainda não dorme.
Nas esquinas escuras, nas pacatas paredes
 
ecoam rumores encantados.
Homens e rapazes regressam a casa
– sob festões de luzes que são agora o sol –
 
vão para os seus becos, pejados
de escuridão e lixo, naquele passo brando
que mais fundo se cravava na minha alma
 
quando amava realmente, quando realmente
queria compreender.
E, como então, desaparecem, cantando.
 
 
 
pier paolo pasolini
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005





07 março 2021

natércia freire / ouve

 
 
Ouve: que rios me trazes
Que eu não tenha navegado?
Uns na Morte. Outros na vida,
No meu dormir acordado.
 
Ouve: que rumos me apontas
Que eu não tenha experimentado?
Com anjos e aves tontas
Está-se bem acompanhado.
 
Ouve: que vícios trarias
Que eu não soubera descrer?
Líquida sombra nos dias
A escorrer-me de mulher.
 
Ouve por fim: que mistérios
Mais fascinantes e claros?
Que frágil fio de aranha,
Me trarias que eu não tenha
Dançado, corrido, andado?
 
(Bruxaria dos meus ossos?
Equilíbrio sem passado?)
 
Ouve: não peças à paz
O que a paz te tem negado.
 
 
natércia freire
a segunda imagem
1969

 




06 março 2021

vergílio ferreira / inventar a alegria

 
 
267 – Inventar a alegria. Ou estar atento à sua revelação. Mas é preciso merecê-la e não estarmos tão sujos. Esquecer um pouco talvez o ódio a fome a morte. Guerras de carnificina odienta, imensa fome dos sub-humanos da humanidade. Inventar a alegria por sobre tudo isso ou estar limpo de todas as fezes da alma para que ela apareça. Porque há pássaros ainda a explica-la e há a luz. E há o que simplesmente existe e é miraculoso no seu ser. Que a paz te inunde e te lave e tu ressurjas na pureza de um mundo que vai começar…
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001




05 março 2021

joan margarit / não deites fora as cartas de amor

 
 
Elas não te abandonarão.
Passará o tempo, apagar-se-á o desejo
– essa flecha de sombra –
e os rostos sensuais, inteligentes, belíssimos
ocultar-se-ão em ti, no fundo de um espelho.
Cairão os anos. Cansar-te-ão os livros.
Decairás ainda mais
e perderás até a poesia.
O ruído frio da cidade nos vidros
acabará por ser a tua única música,
e as cartas de amor que tiveres guardado
serão a tua ultima literatura.
 
 
 
joan margarit
misteriosamente feliz
trad. miguel filipe mochila
flâneur / língua morta
2020




04 março 2021

harold pinter / no palácio do imperador ao amanhecer

 
 
 
      O médico do século XVIII
Cobre de sanguessugas as narinas quebradas,
O louco e o alquimista ambos invocam
O grito do céu
O índigo favorece o olhar.
Agora tímidas marionetas
Desatam-se como caracóis.
Um outro Parténon desfaz-se em areia.
Mas, o caracol do amor ainda
Ilumina os conveses.
Na Quadragésima, em Março
As bolhas prendem as rãs
Em sacos transparentes.
Em Novembro, no São Martinho, uma doninha
Num pesadelo morde as coxas de um amante.
Os olhos corroem o manto da faia.
 
      Pedra muda – o tempo uma miragem,
Enterrado o mundo
Na fundida aldeia japonesa,
O gongue de madeira do templo ressoa
Onde o arroz se desagrega.
Rebentando as contas, as mangas,
Que ao início irradiavam.
E agora ouvimos a aflição do silêncio.
 
                                                                                                                                                                     1949
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 



03 março 2021

jacques prévert / vida em família

 
 
A mãe faz tricô
O filho faz a guerra
A mãe acha isso natural
E o pai? O que faz o pai?
Faz negócios
A mulher faz tricô
O filho a guerra
E ele negócios
O pai acha isso natural
E o filho e o filho
O que é que o filho acha?
Não acha nada absolutamente nada
Acha que a mãe faz tricô que o pai faz negócios e que ele faz a
      guerra
Depois de fazer a guerra
Fará negócios com o pai
A guerra continua a mãe continua a tricotar
O pai continua a fazer negócios
O filho foi morto já não continua
O pai e a mãe vão ao cemitério
O pai e a mãe acham isso natural
A vida continua com o tricô, com a guerra, com os negócios
Os negócios a guerra o tricô a guerra
Os negócios os negócios e os negócios
A vida com o cemitério.
 
 
 
jacques prévert
palavras
trad. manuela torres
sextante editora
2007





02 março 2021

joaquim manuel magalhães / abriu a porta

 
 
Abriu a porta. Os pés
Acariciam o soalho.
Lírios novos nos taipais.
O tanque, a barreira de silvas.
Atravessou pelo pinhal.
 
O dobre da luz passa nos montes.
Os coelhos abrigam-se no tojo.
Perdizes feridas na caruma
escavam para adormecer.
A tristeza de alguém que ri.
 
Espero até ao fim das brumas.
No largo do fortim abandonado
sentamo-nos os dois. Ondas
serenas, rouxinóis.
 
 
joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985




01 março 2021

jorge velhote / janela indiscreta

  
 
O jardim que rodeia a casa antiga
é um sobressalto no silêncio
penumbroso da luz. A sombra
das tuas pernas, movendo-se,
desperta-me a boca. Um arbusto que pulsa como um peixe
percorre-me repousadamente.
 
No limite contemplado das janelas dignas
de oitocentos, a névoa desce com a noite,
estreita o vento na fralda da camisa, frustra
a inquieta adolescência de um rosto impúdico.
Abre janelas ao murmúrio do tempo,
ao vagaroso esvoaçar
do pensamento. Irremediavelmente, a barba cresce
 
fiel à distância.
 
 
 
jorge velhote
hífen 2 abr / set 88
cadernos semestrais de poesia
1988






28 fevereiro 2021

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi / morte súbita

 
 
trago comigo o meu número de telefone
o meu nome e endereço
e assim se de súbito cair morto
podereis identificar-me
e meus amigos virão
 
Fancy, aconteça o que acontecer
não venhas.
ficarei na morgue duas longas noites
frios fios de telefone agitar-se-ão na noite.
a campainha começará.
sem resposta… uma vez… duas.
 
alguém irá ter com a minha mãe
e lhe dirá que eu morri
minha mãe essa triste camponesa
como caminhará só pela cidade
levando o meu endereço!
como passará a noite a meu lado
no átrio completamente mudo
subjugada pela solidão
confortada pelo seu recolhimento em dor
quando pondera só
por sobre as suas penas secretas
em tecer a minha mortalha das suas negras lágrimas
 
quem dera que a minha mãe tivesse
tatuado o meu braço de rapaz
assim não me perderia
assim não trairia meu pai
assim o meu primeiro rosto
não se perderia sob o meu segundo rosto.
quando vejo homens e mulheres saindo em silêncio
depois de terem passado duas horas diante de mim
durante as quais não trocámos olhares
ou vimos diferentes cenários
quando vi que a vida não tem loucura
e o pássaro da quietude se alvoroça sobre todos
sinto como se estivesse realmente morto
jazendo silenciosamente
contemplando este mundo agonizante.
 
 

ahmad ‘abd al-mu ‘ti hijazi
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução adalberto alves 
assírio & alvim
2001





27 fevereiro 2021

rui caeiro / na minha terra

 
 
Na minha terra, no capítulo das figuras típicas, havia muitos velhos, alguns deles muito velhos mesmo. A maior parte sentados, imóveis, pelos cafés, pelas tascas, pelos bancos de pedra da praça. Concentrados na sua solidão, no seu silêncio teimoso, com a pirisca já consumida a pender dos lábios…
 
Ainda me lembro de um ou outro desses magníficos velhos, por os considerar autênticos filósofos. Partidários talvez de uma filosofia concisa, meio empírica e meio pragmática, ou tão-só de uma filosofia calada, de um género não consagrado ainda.
 
 
 
rui caeiro
pranto por vila viçosa
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019




26 fevereiro 2021

jorge luís borges / uma rosa e milton

  
De tantas gerações de inúmeras rosas
Que se perderam no fundo do tempo
Quero roubar só uma ao esquecimento,
Uma sem marca ou sinal entre as coisas
Que existiram. Oferece-me o destino
O dom de nomear pla vez primeira
Essa flor silenciosa, a derradeira
Rosa que Milton do rosto aproxima
Sem ver. Ó amarela ou tu, vermelha,
Branca rosa de um jardim apagado,
Deixa magicamente o teu passado
Imemorial, e neste verso brilha,
Oiro, sangue ou marfim ou tenebrosa
Como nas suas mãos, oculta rosa.
 
 
jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o outro, o mesmo (1964)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998