11 fevereiro 2021

charles simic / o maluco

 
 
O mesmo floco de neve
Caiu continuamente do céu cinzento
A tarde toda,
Caía, caía
E levantava-se
Do chão,
Para voltar a cair.
Mas agora, quando a noite veio dar uma volta
Para ver o que se passa,
Mais disfarçada
E cuidadosamente.
 
  
 
charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





10 fevereiro 2021

bernardo soares / agir é intervir. um braço que se estende ocupa espaço...

 
 
Agir é intervir. Um braço que se estende ocupa espaço e torna-se, assim, uma escultura metafísica. Nunca pude deixar de dar a este facto insignificante uma importância alada sobre o quotidiano.
 
Nunca vi em mim senão uma romaria de inconsciências para o outono das minhas intenções. As longas horas que tenho passado à beira do meu correr têm-me [...] rios sobre a existência.
 
Com os meus passos treme a luz das estrelas. Um gesto da minha mão, que me oculta a lua um momento, mostra, com este meu assombro, quanto pode realmente significar. Destes pensamentos, tornados domésticos e quotidianos ao meu escrúpulo, adveio ao meu instinto que ele naufragava no porto.
 
Pareceu-me sempre que ser era ousar; que querer era aventurar-se. Inércia soube-me a santidade, e não-querer a ter bons costumes. Construí assim uma moral burguesa do pensamento, um cuidado da comodidade e da decência através do respeito do mistério. A exagerada consciência, que sempre tive, dos meus momentos, doeu-me sempre a mistério e a divino. Nunca me compreendi sobretudo quando me surpreendi a viver as inconsciências dos meus instintos e a vulgar correcção dos meus reflexos nervosos.
 
s.d.
 
 
fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990
 




09 fevereiro 2021

josé miguel silva / estela funerária

 
 
Era um rapaz sem vocação para o caminho,
um arco sem arqueiro.
Chamava-se Elpenor.
 
Mais do que a palavra preocupava-o a lama
na sandália do poeta,
a mancha no tapete.
 
Movia-o a coragem de estar só,
divisão dos que celebram
o massacre da esperança.
 
Caiu a sua casa, vendeu as suas veias,
partiu para o desastre,
 chegou à nossa frente.
 
 
 
josé miguel silva
ulisses já não mora aqui
língua morta
2014





08 fevereiro 2021

diogo vaz pinto / caídos, acordamos sempre estranhos

 
 
Caídos, acordamos sempre estranhos,
como quem dormiu ao relento,
pasto de estrelas,
e demora mais a fazer a infeliz conta.
 
À volta: coisas longínquas,
mordes o reflexo na maçã,
gosto que dirá à carne
o que d enoite apodreceu.
 
Caroços de violino, dentes
de leite, a roupa usada pelas silvas;
uma outra idade.
O que da infância a colher susteve,
como um gesto para explicar a boca.
 
Um interesse por mais e outra gente.
Puxar a mesa que faz a fama dos cafés
onde venham e falem como no sono,
façam a vida parecer algo menos ordinária
por uma hora ou duas.
 
Perceber por que a noite vê mais que o dia,
como no vidro dos corpos cada um escolhe e protege
o seu reflexo,
fazendo de umas poucas ruas de encanto duvidoso
o que Kaváfis fez por Alexandria.
 
Foi fácil alguma vez?
Para mim foi. Tinha outras armas,
outra inocência.
 
Entendo-me com o silêncio
e a eterna demora.
Não quis o inferno na gaiola
e à janela, para assustar ou comover
a vizinhança.
Ainda prefiro o passo à palavra,
e ter-me perdido,
agarrado um erro, estúpido e doce,
grosseiro do seu bem,
sua escusada graça, como uma doida
bendição entre estes talentos.
 
 
diogo vaz pinto
aurora para os cegos da noite
maldoror
2020





07 fevereiro 2021

claudio damiani / é uma guerra onde não se combate

 
 
É uma guerra onde não se combate,
caem bombas, e chega,
apanham-te na rua, na frutaria,
nos cinemas, nos supermercados, nos lugares de trabalho,
também em casa: entram pela janela
e explodem-te na cara.
Mesmo se construísses um bunker
cem metros debaixo da terra,
com paredes de aço, com portas de diamante,
mesmo assim as bombas haviam de te alcançar ali.
E as pessoas não vão para os refúgios,
nem ficam em casa, nem procuram esconder-se,
na verdade fazem todas as coisas como se tudo fosse normal,
saem do trabalho vão ao bar divertem-se
como se tudo fosse normal
como se tudo fosse como era dantes.
 
 
 
claudio damiani
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020

 



06 fevereiro 2021

nicolás arnedo marañon / amargura

 
 
Há dias em que qualquer um
deitaria fogo a uma floresta
para ver arder nela
a raiz da sua tristeza.
Dias em que qualquer um participaria
de uma guerra com a condição de merecer
a explicação da sua derrota. Dias
em que a estupidez
é uma vingança astuta,
enteada do ressentimento para consigo mesmo.
Dias em que compreendes
que é demasiado tarde
para esquivar do olho de um revólver
tanta amargura a sós.
 
 
 
nicolás arnedo marañon
(espanha, 1950-1991)
o meu livro de cabeceira é um revólver
dezassete suicidas
trad. jorge melícias
língua morta
2020
 




 

05 fevereiro 2021

fernando luís sampaio / cinco portas fechadas

 



 
1.
 
Desceu as pálpebras
Como quem sacode
Uma toalha –
Não havia vinho na mesa
E pão a servir de faqueiro.
 
 
2.
 
O teu nome aparelha
A paisagem percorrida,
Deixa entrelaçada a respiração
E mãos e boca
Desacompanham-se
Quando te vejo às compras
No mercado.
 
E não sabes que no saco
Dos legumes e fruta levas
A luz já extinta
Da minha juventude.
 
Nenhum caminho é
Para depois.
 
 
3.
 
O mundo falha em mim
Porque a noite
É maior do que a língua
Em que falas –
 
Nela misturas escórias
E o laço artilheiro
Que nos serve de fantasia.
 
 
4.
 
A casa como resto da rua – vazia.
No sentido inverso de tudo
Digo o que vai a par
De coisas imaginadas,
E se calha falar da fresca
porcelana é para reter
A luz das mãos do oleiro.
 
 
5.
 
O coração é um detrito da língua.
 
 
 
 
fernando luís sampaio
nervo/10
colectivo de poesia
janeiro/abril 2021




04 fevereiro 2021

miguel-manso / estoril, hotel do parque

 
(com a voz de Alexander Alekhine)
 
 
o mar vem pôr seus dedos
escuma de café
sobre a rocha e o cimento
enquanto um peixe
trépido nada por dentro de um copo
 
ouvem-se passos no corredor
uma colher sobre a toalha
reflecte um incêndio de consumadas
luminâncias
 
roda a toda a lentidão a maçaneta
e a lembrança desse abeto coberto de neve
tantos quilómetros ao fundo
amenizou o corado enxovalho deste
hesitar com o rei encurralado
 
Morte, é a tua vez de jogar
 
 
 
miguel-manso
mortel
do lado esquerdo
2018

 




03 fevereiro 2021

paulo da costa domingos / cais das colunas

 
 
Fui ali sentir uma aragem no rosto e
pedir a mim mesmo somente um pouco
de sossego, mas eu era um peão
do poema a rugir de encontro
à muralha dos ministérios.
 
E as mulheres que ali vinham
lutavam… íó como lutavam elas!
por sapatos de salto e lingerie
para melhor saltarem no vazio
dos mistérios ocultos no rio.
 
(E não sendo assim, é cinza
que se acumula nas pestanas
de gente de barbatanas munida
para a travessia do denso
negrume das avenidas.)
 
Os meus olhos choraram sal
sobre a nefasta semente desse
trabalho assalariado, cansado,
com o rosto de encontro à pedra
como um miúdo no quarto escuro.
 
 
 
paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017

 




02 fevereiro 2021

joão miguel fernandes jorge / este ano

 
 
Este ano o verão atravessou
Lisboa. O verão foi invisível.
Atravessou a cidade e os outros
levou do meu corpo
memórias do teu nome.
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







01 fevereiro 2021

howard altmann / depois de escurecer

 
 
Sou o rapaz que regressa
à mesma prostituta
no mesmo país estrangeiro;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que foge
da mesma verdade
com a mesma máscara;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que pede
o mesmo amor
à mesma mulher;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que esvazia
a mesma massa de água
com a sua mesma massa de reflexões;
sou esse homem.
 
Sou o rapaz que entra
nos mesmos quartos com as mesmas janelas.
E o que dorme na mesma cama à mesma luz;
sou esse homem, sou esse homem.
 
Sou o rapaz que deixa atrás de si
o mesmo eco
com diferentes vozes;
sou esse rapaz, sou esse rapaz.
 
 
 
howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019

 



31 janeiro 2021

marguerite duras / escrevi durante uma vida inteira

  
13 de abril
 
Escrevi durante uma vida inteira.
Como uma imbecil, fiz isso.
Também não é mau ser assim.
Nunca fui pretensiosa.
Escrever durante uma vida inteira ensina a escrever.
Não salva de nada.
 
 
 
marguerite duras
é tudo (c´est tout)
trad. joão costa
livros do brasil
1999






30 janeiro 2021

wallace stevens / conversa de café

 
 
 
Claro, morremos para sempre.
A vida, então, é em grande parte uma coisa
De acontecer gostar-se, não de ter de.
 
E isso, também, claro, porque é que
Acontece eu gostar de arbustos vermelhos,
Relva cinzenta e céu cinzento-esverdeado?
 
Que mais resta? Mas vermelho,
Cinzento, verde, porquê essas de entre todas?
Isso não é o que eu disse:
 
Não essas de entre todas. Mas essas.
Gosta-se do que acontece gostar-se.
Gosta-se do modo como o vermelho cresce.
 
Não tem nenhuma importância.
Acontecer gostar-se é um
Dos modos como as coisas acontecem calhar.
 
 
 
wallace stevens
ficção suprema
trad. luísa maria lucas queiroz de campos
assírrio & alvim
1991