26 novembro 2020

artur do cruzeiro seixas / não são cabelos


 

Não são cabelos
nem algas
nem o vento
o que prende estas mãos
no rio barrento
 
Tu estás
onde te sustento.
 
Áfricas, 57
 
 

cruzeiro seixas
viagem sem regresso
tiragem limitada
2001
 


 




25 novembro 2020

josé gomes ferreira / neste momento

 
 
I
 
Neste momento
um pássaro qualquer
canta, explica as flores
perto da margem dum rio.
 
Nunca ouvi esse pássaro cantar
nem sei onde o rio corre…
 
Mas todas as noites no meu quarto
tento aprender de cor
essa melodia que não ouço
– sentindo o coração pesado
como um pássaro morto.
 
 
 
 
josé gomes ferreira
melodia 1932
poesia I
portugália
1972





24 novembro 2020

jack gilbert / para ver se algo vem depois

 
 
Não há nada aqui no cimo do vale.
Céu e manhã, silêncio e o cheiro seco
da pesada luz solar na pedra, por toda a parte.
Cabras, ocasionalmente, e o som dos galos
no vivo calor onde ele vive com a mulher
morta e a pureza. Tentando ver se algo
vem depois. Perguntando-se se terá estagnado.
Talvez, pensa, seja como o Nó: sempre
que o guião pede dança, faça o actor o que fizer
é uma dança. Se permanecer quieto, está a dançar.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
DeStrauss
2020





23 novembro 2020

pat boran / a planta

 
 
 
Na praia em Malahide
o casal jovem num jogo estranho
com paus e fitas, andando para a frente e para trás,
para trás outra vez – sem bola à vista – está apenas
 
a planear a casa que tenciona construir,
as paredes e as entradas marcadas na areia húmida,
indo de quarto imaginado para quarto
sob o sol a pôr-se, a lua a nascer.
 
 
pat boran
o sussurro da corda
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





22 novembro 2020

joão almeida / duas esperas no domingo à tarde

 
 
Encontrei no bolso do casaco que te fica mal
Um lenço com manchas de suor
E sangue?
 
Um pensamento para encher a imensidão.
 

 
Chegou a chuva
Subirá pelo tronco até à nuca
E tudo será então absorvido.
 
 
 
joão almeida
canto skin
língua morta
2019

 



21 novembro 2020

joão miguel fernandes jorge / fins de outubro

 
 
Fins de Outubro. As uvas ainda estão
nas ramadas.
É preciso perder o rosto mais próximo
vencê-lo como se fisgam pássaros novos
e ficar preso a esse movimento.
Deixar nos campos crescer a flor do
aloés.
 
 
 
 
joão miguel fernandes jorge
à beira do mar de junho
relógio d´água
2019







20 novembro 2020

josé ángel cilleruelo / aqui

 
 
                                                                          Eu estou sempre aqui.
                                                                                          Ruy Cinatti
 

Gostava da chuva mansa
dos dias do norte.
adorava a humidade sobre o rosto:
pouso no chão o telefone
sobre o tapete cinzento
e ajusto a luz nas persianas;
ria-se por nada às sextas-feiras
quando ao entardecer
enlouquece de súbito a cidade:
fecho a varanda
em pleno agosto para impedir
que se espalhe a campainha;
não perdia uma única
das manhãs de feira,
as rifas, as lojas com sardinhas:
abro um livro para fechá-lo,
não me sobressalte a meio de um verso
o som do telefone;
atava à esquerda
o cachecol sobre a gabardina
desproporcionalmente clara:
ponho um disco, embora baixo,
e olho com prazer o aparelho
mudo sobre o tapete;
gostava de passar a noite em comboios,
apanhar aviões, camionetas
para qualquer lado:
no meu caderno anoto uma data mais,
outro dia, outro mês, outro ano,
eu estou sempre aqui.
 
 
 
josé ángel cilleruelo
o dom impuro
antologia
trad. joaquim manuel magalhães
averno

2004




19 novembro 2020

eduardo pitta / vejo-os chegar à velocidade

 
 
Vejo-os chegar à velocidade
da erva
inquietos mais que desolados.
 
Vêm mudos, sujos
quase sempre, periféricos
a qualquer melancolia.
 
O campo, a cidade
e mesmo as gentes
lhes são estrangeiras.
 
 
 
eduardo pitta
olhos calcinados
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011

 




18 novembro 2020

jorge velhote / fria é a água na escuridão

 
 
.2.
 
Eras sem destino como o vento.
 
Ou os pássaros exactamente.
 
Sob o abismo do silêncio a imensidão
 
das sombras é como estrume.
 
Ou a pureza dos pastores.
 
Diante da chuva o medo cresce
 
como o bosque inacessível.
 
Mais tarde, destinaste à morte
 
um relâmpago de tristeza.
 
E a serenidade das sementes.
 
 
 
jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018

 



17 novembro 2020

lawrence ferlinghetti / as mulheres de sarolla





joaquín sorolla, el água

 
 
 
               As mulheres de Sarolla com os seus chapéus
                                                                           [de retrato
estendidas nas praias que ele pintava nas telas
             eram uma tentação para os impressionistas
                  espanhóis
 
               E seriam elas retratos fraudulentos
do mundo
             devido ao brilho da luz sobre elas
                                   criando ilusões
de amor?
 
               Não posso deixar de pensar
                                   que a sua «realidade»
era quase tão real como
       a recordação que levo do dia de hoje
 
   quando o derradeiro sol se pendurou nas colinas
    e ouvi o dia a cair de súbito
     como as gaivotas a caírem
      quase na praia
enquanto os últimos picnicadores estendidos na
                                                                             [areia
 
     se amavam no amarelo das pinceladas fortes
e resistiam resistindo-se
     separando-se um do outro
           e enlaçando-se
               e separando-se outra vez
até que um último espasmo quente e suspenso
       a que não era possível resistir
               os fez gemer
 
E as árvores da noite se ergueram
 
 

lawrence ferlinghetti
pictures og the gone world
trad. josé palla e carmo
cadernos de poesia
dom quixote
1972




 

16 novembro 2020

charles bukowski / é engraçado, não é?

 
 
mudando de canal na tv
infinitamente
passas
por todas as caras
mas nunca encontras
a cara certa
 
só caras
 
é um desdobramento de
terror
flick
flick
flick
 
mais
de
menos
 
caras
que dizem
aquilo
com que
foram
preenchidas
 
como
é que entraram
naquele
vidro?
 
quem
as pôs
ali?
 
não há
nada
mais?
 
um
mundo a ter?
um
mundo a salvar?
 
essas não são
as minhas pessoas
 
para onde foram
as minhas
pessoas?
 
 
 
 
charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018





 

15 novembro 2020

maria gabriela llansol / um falcão no punho (fragmento)

 
 
Herb∂is: a ilha para onde nos dirigimos tinha sido riscada do mapa; a não ser que o lugar onde nos encontrávamos, desprendendo-se dos prados firmes, nos levasse para ela.
 
Os dias já não são o que eram; nunca havíamos suposto que seria necessário recorrer tano à escrita:
                  «si l’on pousse assez loin dans le langage,
                   on se trouve pris dans l´étreinte de la pensée.»
 
a perda do mar pela areia é inevitável; da vela que arde à folha que respira, o seu rosto permanecia sempre latente; e qualquer objecto estava sempre a ser rodeado por ela.
 
 
 
maria gabriela llansol
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987

 




14 novembro 2020

luís miguel nava / uma candeia

 
 
 
       Poisei na margem desta folha uma candeia, para que se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma candeia também ela feita de palavras e que, contrariamente às aparências, não está na margem mas dispersa nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os contornos dos banhistas.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020