07 novembro 2020

adília lopes / kabale und liebe

 
 
Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
ô les insondables mystéres
de la poste!
e Marianna vê esta frase
que escreveu
já subrepticiamente num postal
desfigurada
por dedos peritos na Mal
dade (como os do Dr. Mabuse)
oh lez inssondiable Mjzthère
de La Pozte &
nada é tão humilhante como um erro
de ortografia
 
Mas não
uma vez um carteiro
inexperiente
deixou cair uma carta
perto duma sarjeta parisiense
e a carta de Marianna
envelheceu ao lado de uma folha
caída
com a água das ruas de Pari
com o lixo das ruas de Paris
deito-me para pensar em si
como para ouvir Bach
preciso de me deitar
não sei porquê
é tão forte o que me dá
et l’eau coule encore
 
 
 
 
adilia lopes
caras baratas
antologia
relógio d´água
2004





06 novembro 2020

daniel faria / para o instrumento difícil do silêncio

 
 
3
 
Porque a morte tem o seu tempo
A ruína soma ruína, à cabeça
Equilibra a existência desmoronada e inteira.
Tu és o que edifica
Tu constróis mil vezes.
Porque o raio tem o seu tempo.
És o clarão, a lâmpada, a estrela
Somas luz à luz.
Não és a luz, és mais que a luz
Porque a noite tem o seu tempo.
 
 
 
daniel faria
poesia
quasi
2003




 

05 novembro 2020

harold pinter / poema

 
 
beijavam-se voltei-me abriram bem abertos
os olhos voltados cegamente para mim
vi que aqui onde nos juntávamos
a luz que caía sobre nós queimava
tão vivamente as trevas que partilhávamos
enquanto eles com olhos cegos voltados para mim se voltavam
e eu o seu beijo cego formei
 

                                                                                    1971
 

harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006

 





04 novembro 2020

philip larkin / sexta à noite no hotel royal station

 
 
A luz desce e alastra obscuramente lá do alto
Dos cachos de luzes por sobre cadeiras vazias
De frente umas para as outras, em tons variados.
Pelas portas abertas, a sala de jantar afirma
Uma solidão mais vasta, de facas e copos
E silêncio assente como alcatifa. Um criado lê
Um vespertino que ficou. Passam as horas
E os vendedores já voltaram todos para Leeds,
Deixando cinzeiros atulhados na Sala de Congressos.
 
Nos corredores sem sapatos, ardem as luzes. Como
Fica isolado, que nem uma fortaleza –
O papel timbrado, feito para enviar para casa
(Se isso existisse) cartas de exílio: Agora
Avança a noite. Em ondas para lá das aldeias.
 
 
 
philip larkin
janelas altas
trad. rui carvalho homem
cotovia
2004

 





03 novembro 2020

aldo palazzeschi / novembro

 
 
Jovens e velhos
agrupam-se
entre as quentes ruínas de Roma,
e sobre elas os plátanos deixam cair
ao som do papel
as suas folhas douradas.
Os jovens falam aos velhos
das coisas que gostam,
e os velhos fazem de conta que nada ouvem.
 
 
 
aldo palazzeschi
um pouco do meu sangue
antologia de poesia italiana
trad. joão coles
contracapa
2020

 

02 novembro 2020

jorge luís borges / o instante

 
 
Onde os séculos, onde o sonho estranho
Das espadas que os tártaros sonharam?
Onde as fortes muralhas que arrasaram,
Onde a Árvore de Adão e o cutro Lenho?
Está só o presente. E a memória
Erige o tempo. Sucessão e engano
É a rotina do relógio. O ano
Nunca é menos vão que a vã história.
Entre a alva e a noite há um abismo
De agonias, de luzes, de cuidados;
O rosto que se fita nos cansados
Espelhos nocturnais não é o mesmo.
O hoje fugidio e ténue é eterno;
Não esperes outro Céu, ou outro Inferno.
 
 
 
jorge luís borges
trad. josé bento
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990




01 novembro 2020

adolfo luxúria canibal / 1.º de novembro

 
 
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
 
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
 
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
 
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
 
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
 
 
 
adolfo luxúria canibal
no rasto dos duendes eléctricos
(poesia 1978-2018)
cancioneiro 1984-1985
porto editora
2019




31 outubro 2020

pedro spigolon / sem título

 
 
recentemente afiei minha língua
na ponta de uma estrela
havia muito medo na saliva
e pensei que disto poderia livrar-me
lambendo essa fria luz.
recentemente fiz minha língua
um astro repleto de espinhos
sei que queria dizer ternura
mas só consegui falar agudo e frio.
refugiei-me do tumulto
na gruta da boca
acabei me confundindo
com as pensas estalactites
isso fez o abrigo
se passar por perigo
e senti a discórdia entre os dentes
me amassando como um teto baixo
queria dormir a paz
de quem se vai sem pedir perdão
o sono das estrelas
que se esqueceram da crueldade
mas meu perdão era cruel
como quem o pede
sem se arrepender.
 
 
pedro spigolon  
euOnça_3
editora medita
2014
 



30 outubro 2020

angeles dalúa / sinais de fumo

 
 
Sempre acreditei no que nunca tive.
Um dia deixei de crer
para olhar os olhos da morte
mas a morte não tinha olhos.
Náufrago como eu sobre um enigma
nasceste do amor
entre a tortura e uma estrela.
De ilha a ilha o nosso fogo
troca sinais de fumo e abismos
com a frágil ternura
do sol sobre a neve.
A sós com a areia
a nossa sede infinita
sem esperança espera
as mensagens de amor
que nos trazem nas asas
as pombas suicidas.
 
 
 
angeles dalúa
trad. amadeu baptista
hífen 9 setembro
cadernos semestrais de poesia
poesia hispânica
1995





 

29 outubro 2020

dino campana / poesia fácil

 
 
Paz não busco, guerra não suporto
Tranquilo e só vou pelo mundo em sonho
Cheio de cantos sufocados. Apeteço
A névoa e o silêncio num grande porto.
 
Num grande porto cheio de velas leves
Prestes a zarpar para o horizonte azul
Doces ondulando, enquanto o sussurro
Do vento passa com acordes breves.
 
E aqueles acordes o vento os leva
Distantes sobre o mar desconhecido.
Sonho. A vida é triste e eu estou só.
 
Oh quando oh quando numa manhã ardente
A minha alma despertará no sol
No sol eterno, livre e fremente.
 
 
 
 
dino campana
trad. albano martins
hífen 5 março
cadernos semestrais de poesia
tradução
1990





 

28 outubro 2020

sylvia plath / berck-plage

 
 
II
 
Esta bota preta não tem misericórdia por ninguém.
E porque deveria ter, se é a carreta de um pé morto?
 
O pé alto, morto e sem dedos deste padre
Que bombeia o poço que o seu livro é,
 
A página dobrada à sua frente como cenário.
Biquínis obscenos escondem-se nas dunas,
 
Peitos e ancas de confeitaria, açúcar de
Pequenos cristais, cintilando à luz,
 
Enquanto uma poça verde abre o olho,
Doente com o que tem engolido –
 
Membros, imagens, gritos. Atrás dos abrigos de cimento
Dois amantes despegam-se um do outro.
 
Ó branca loiça do mar,
Quantas chávenas de suspiros, quanto sal na garganta…
 
E o espectador, a tremer,
Esticado como um pano grande
 
Através de uma calma virulência,
E uma alga, peluda como as partes.
 
 
 
sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996




27 outubro 2020

tomas tranströmer / segredos pelo caminho

 
 
A luz do dia bateu no rosto de alguém que dormia.
E esse alguém teve um sonho com mais vivacidade,
ainda que sem acordar.
 
As trevas bateram na cara de alguém que ia a andar
entre a multidão, sob os raios
impacientes e fortes do sol.
 
De repente escureceu, como quando cai uma bátega.
Eu encontrava-me num quarto com espaço para todos os instantes –
a sala de um museu de borboletas.
 
Ali, porém, o sol brilhava tão intensamente como antes.
Os eus pincéis impacientes davam cor ao mundo.
 
 
 
 
tomas tranströmer 
50 poemas
tradução de alexandre pastor
relógio d´água
2012




26 outubro 2020

paul éluard / o espelho de um momento

 
 
Dissipa o dia,
Mostra aos homens as leves imagens da aparência,
Retira aos homens a possibilidade de se distraírem
É duro como a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da vista,
E o seu brilho é tal que todas as armaduras, todas
                                  [as máscaras, se tornam falsas.
O que a mão tomou desdenha tomar a forma da mão.
O que foi compreendido já não existe.
A ave confundiu-se com o vento,
O céu com a sua verdade,
O homem com a sua realidade.
 
 
paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977