13 outubro 2020

antónio franco alexandre / recuso ver que face

 
 
recuso ver que face
na tua face a tempo pousa
o agrimensor
da sombra
 
ouvir que voz repete
a tua voz dormida
junto ao pão
os instrumentos
 
talhados sobre
a boca
 
na água viva o sopro
alvoraçado
 
 
 
antónio franco alexandre
a pequena face
assírio & alvim
1983



 

12 outubro 2020

jane hirshfield / vinagre e azeite

 
 
A solidão pelas razões erradas avinagra a alma,
a solidão pelas razões certas lubrifica-a.
 
Que frágeis que somos, entre os raros momentos bons.
 
Indo e vindo incompletos,
intrigados com o destino,
 
como o relevo inacabado
 
 
jane hirshfield
a mulher do casaco vermelho
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017


11 outubro 2020

ana paula inácio / como vais tu morrer

 
 
Como vais tu morrer
em portugal
que te assenta de igual modo à camisola
que lavaste no programa errado;
Como vais vender os teus versos
ao preço da chuva
num país de cheias
e lágrimas fáceis;
Como vão as tuas palavras
arder no coração daqueles
que vêem as florestas
sucumbir ao fogo
todos os verões;
Como vais ficar em nada
como o gelo no whisky
no copo da mulher
que o teu marido ama;
Como vais, tu, abrir os braços
se só tens penas
como o pobre Garção?
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011



10 outubro 2020

amalia bautista / os aloendros

 
 
Tenho visto como crescem nas bermas,
nos separadores das auto-estradas,
em jardins privados e luxuosos
e rodeando prédios de tijolo
em subúrbios tão tristes como o homem.
Surpreende-me que sejam tão bonitos,
que se adaptem tão bem a qualquer meio,
que precisem de tão poucos cuidados.
Surpreende-me que sejam venenosos.
 
 
 
amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020




09 outubro 2020

leopoldo maría panero / saída de cena

 
 
Era mais romântico talvez quando
arranhava a pedra
e dizia por exemplo, cantando
da sombra para as sombras,
assombrado pelo meu próprio silêncio,
por exemplo: «há
que arar o Inverno,
e há sulcos, e homens na neve».
Hoje as aranhas fazem-me calorosos sinais desde
os cantos do meu quarto, e a luz titubeia,
e começo a duvidar que seja verdade
a imensa tragédia
da literatura.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019




 

08 outubro 2020

egito gonçalves / o poder da literatura

 
Eu tinha acabado de escrever
na folha ocasional
que a poesia era o lugar da ausência.
As mãos tinham partido:
cada uma teria agora a sua solidão
como travesseiro imediato.
Na escrita, o seu rosto afogado
cantava na esferográfica. Eu sonhava
a mão que pousa numa rótula
e nesse gesto hipoteca a morte.
Então abri um livro de Lezama Lima:
ele definia a poesia
como Metáfora da Ressurreição.
O sol desabotoou-se todo. Brilhava
nos recifes, abria-se nos pulmões.
As cidades ganham relevo
em estado de paixão. A voz
do vidraceiro afastava-se. Fiquei
a ouvi-la desaparecer. Nada doía.
Podia continuar a dar notícia.

 
A Coruña, 1993
 
 
 
egito gonçalves
hífen 8 janeiro
cadernos semestrais de poesia
artes poéticas
1994

 



07 outubro 2020

muhammad ‘afifi matar / o visitante nocturno

 
 
eram seus olhos verdes
um sonho que chorava no asfalto da rua
e os versículos da sua inocência
uma sede no homem enterrada
 
desatou o cavalo verde da chuva dos cravos do raio
e deslizou através das nuvens
para visitar o sonho adormecido nas camas das crianças
e alimentá-las, ou dar-lhes de beber, da fonte do verde mel.
 
seus pés bons
e seu corpo trémulo e nu
esfolavam-se nos mastros da noite.
e nos seus dorsos fundiam-se colunas de granito.
foi enterrado sobre os beirados dos tectos e das torres
crucificado, sangrando, mordido nas trevas pelos gatos.
 
o peixe negro salta na corrente do sangue
e escapa:
comboios de gente surda
trombetas que ressoam,
génios que gritam dentro duma garrafa
vozes que chamam na garganta do asfalto
 
quem, no ventre tenebroso, morreu
e quando secará o sangue?
 
 
 
muhammad ‘afifi matar
trad. adalberto alves
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001

 


06 outubro 2020

josé luis garcía martin / o assédio

 
 
Sei que firme e fugaz aguarda sempre
junto do meu coração desabitado;
sei que um mínimo gesto bastaria
para o deixar entrar e não estar só.
 
Mas eu reforço paredes, vidros, portas;
peço ajuda a filósofos antigos:
«O que nada tem nunca perde nada;
tem todas as coisas quem nada deseja.»
 
Ouço os seus passos, seu rondar contínuo;
perto da minha janela canta e ri:
«Abre um momento, abre, quero dar-te
rosas vermelhas embriagadoras.»
 
Estou pronto para resistir, pronto
para longo assédio, fome, desamparo:
«Vai-te embora, amor, deixa-me em paz;
a ventura que me trazes dá-a aos cães.»
 
 
 
josé luís garcia martin
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998



 

05 outubro 2020

ron padgett / palavras da frente

 
 
Não parecemos tão jovens
quanto parecíamos
excepto a meia-luz
especialmente no
calor suave da luz das velas
quando dizemos
com toda a sinceridade
És tão gira
e
És o meu giraço.
Imagina
duas pessoas idosas
a comportarem-se assim.
É suficiente
para te fazer feliz.
 
 
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018




 

04 outubro 2020

edmundo de bettencourt / relâmpago

 
 
Um agudo gemido felino
incendeia-lhe os olhos.
E ei-la que de novo se recorta
nua e fosforescente no escuro.
 
Nas trémulas narinas, de prenhez, afilando-se,
zune electricamente
a insatisfação duma semente apenas.
 
Quer mais,
quer outras!
 
Cega do consciente amor que atrai,
tumultuária noite riscada de fulgores,
sonha o inteiro fruto.
 
 
 
 
edmundo bettencourt
poemas surdos 1934-1940
poemas de edmundo de bettencourt
assírio & alvim
1999

 

03 outubro 2020

antonin artaud / renego o coração

 
 
Renego o coração
e também a morte.
 
É sempre por piedade
pelos outros
que nos deixamos meter num esquife,
que nos deixamos enfiar
 
no buraco cavo,
oco de cânfora
e de sangue avermelhado.
 
 
antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019




 

02 outubro 2020

luis alberto de cuenca / in illo tempore

 
 
Os teus pais tinham ido não sei onde
e a casa ficara só para nós,
como aquele convento abandonado
do poema de Jaime Gil de Biedma.
Com a música no máximo, fizeste
uma mistura explosiva num jarro
enquanto eu te tirava, docemente,
a roupa da cintura para cima.
Encheste dois copos até ao topo.
Bebemos. Veio aquele riso parvo,
e ficámos com um brilho nos olhos
que sublinhava a nossa juventude,
e então beijámo-nos como nos filmes,
e amámo-nos como nas canções.
 
Quando a realidade era o desejo
e o nosso reino não era deste mundo.
 
 
 
luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018





01 outubro 2020

herberto padilla / às vezes é necessário e obrigatório

 
 
Às vezes é necessário e obrigatório
que um homem morra por um povo,
mas jamais há-de morrer todo um povo
por um só homem.
 
Isto não o escreveu Herberto Padilla, cubano,
mas sim Salvador Espriu, catalão.
O que acontece é que Padilla sabe-o de cor,
gosta de repeti-lo,
juntou-lhe música
e agora cantam-no em coro os seus amigos.
E cantam-no a toda a hora,
tal como Malcolm Lowry toca ukelele.
 
 
 
 
herberto padilla
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
luís filipe parrado
língua morta
2020