07 junho 2020

álvaro de campos / a luz crua do estio prematuro



A luz crua do estio prematuro
Sai como um grito do ar da primavera...

Meus olhos ardem-me como se viesse da Noite...
Meu cérebro está tonto, como se eu quisesse justiça...
Contra a luz crua todas as formas são silhuetas.

10-4-1929


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993










06 junho 2020

daniel faria / homens que são como projectos de casas



Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltadas para a velhice
Muito danificados pelas intempéries

Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior

Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior



daniel faria
homens que são como lugares mal situados
fundação manuel leão
1998







05 junho 2020

juan luis panero / lendas e metáforas



Sozinho, na penumbra de outra noite, neste quarto
onde a ténue claridade da lua
filtrando-se pelas cortinas,
ilumina a mancha grande e branca do teu cu.
Umas palavras que não pronuncio,
o cheiro morno e ácido do teu sexo,
remotas, retocadas imagens de outros corpos,
algo impreciso e íntimo
como uma conversa de bebedeira
e tudo o que me resta, lendas,
metáforas dos quarenta anos da minha vida.




juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003






04 junho 2020

federico garcia lorca / gazel da fuga



Muitas vezes me perdi no mar,
o ouvido cheio de flores recém-cortadas,
a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes me perdi no mar,
como me perco no coração de alguns garotos.

Não há noite que, ao dar um beijo,
não sinta o sorriso da gente sem rosto,
não há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
esqueça as imóveis caveiras de cavalos.

Porque as rosas buscam numa fronte
uma endurecida paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
que imitar raízes debaixo da terra.

Como no coração de alguns garotos,
muitas vezes me perdi no mar.
Ignorante da água, vou procurando
uma morte de luz que me consuma.




federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013









03 junho 2020

carlos poças falcão / eu vi por dentro a fábrica do inferno



Eu vi por dentro a fábrica do inferno. Agora vejo
o muito que já tive. E o pouco me é tirado.
A voz que me guiava, agora cala-se. Os meus íntimos
estranham-me e afastam-se. E eu mesmo os desconheço.
Meus dias aparecem e assim desaparecem.
A morte dança em festa e a mentira em todo o lado
erige monumentos. Digo o nome do meu Deus
e abismos de palavras o engolfam num tumulto.
Até o coração já me não é um coração
mas um relógio-bomba a detonar no seu reduto.
E a minha voz é fraca e o ouvido duvidoso;
se peço, ninguém ouve; se me chamam, não escuto.



carlos poças falcão
sombra silêncio
opera omnia
2018







02 junho 2020

leopoldo maría panero / brindemos com champanhe sobre o nada



                                                 A Marava


Brindemos com champanhe sobre o nada
salto de um saltimbanco no aço escrito
onde a flor se despe e habita entre os homens
que dela se riem e afastam o olhar
sem saberem oh ilusão que é também ao nada
que eles a devolvem e que a cada jogada
se estende a Morte ante o jogador, nua,
e anões jogam com cabeças humanas.


leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019







01 junho 2020

jack gilbert / falhar e voar



Todos se esquecem que Ícaro também voou.
É o mesmo quando o amor chega ao fim,
ou o casamento falha e as pessoas dizem
que sabiam ser um erro, que todos
disseram que nunca resultaria. Que ela tinha
idade para saber como as coisas são. Mas qualquer coisa
que valha a pena fazer, vale a pena fazer desastrosamente.
Como estar ali naquele oceano estival
no outro lado da ilha enquanto
o amor se extinguia nela, as estrelas
cintilando tão extravagantemente nessas noites que
qualquer um poderia perceber que não perdurariam.
Estava adormecida na minha cama todas as manhãs
como uma visitação, a brandura nela
como antílopes erguidos no nevoeiro da alvorada.
Via-a regressar todas as tardes
pelo quente campo pedregoso depois de nadar,
a luz marítima atrás de si e o céu imenso
do outro lado. Ouvia-a
enquanto almoçávamos. Como podem dizer
que o casamento falhou? Como as pessoas que
regressaram da Provença (quando era Provença)
e disseram que era bonita, mas a comida gordurosa.
Acredito que Ícaro não falhava enquanto caía,
chegava apenas ao fim do seu triunfo.



jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020






31 maio 2020

eugénio de andrade / rosa de areia



Enquanto
um calor mole nos tira a roupa
e mesmo nus sobre a cama
os corpos continuam a pedir água
em vez de outro corpo,
penso no tempo em que o suor
e a saliva e o odor e o esperma
faziam dessa agonia
a alegria
a que chamávamos amor.


eugénio de andrade
rente ao dizer
poesia
fundação eugénio de andrade
2000







30 maio 2020

david lehman / robert desnos


                               para Ron Horning


Não sei se um ponto é possível,
Um novo começo, um fim menos arbitrário
Do que a minha própria morte; mas falei tanto
De deuses, sonhei tanto as suas ausências
Sussurrantes, que ao calar-me
Naqueles momentos antes da morte, sinto que estou a ouvir
A escuta dos deuses.



david lehman
uma echarpe no banco da frente
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2017







29 maio 2020

claudio rodríguez / pardal


Não esquece. Não se afasta
este vadio astuto
da nossa vida. Sempre
por empréstimo, errante,
como um qualquer, aqui
anda, teimoso, lava-se
entre os nossos sapatos.
Que procura na escura
vida nossa? Que amor
no nosso pão tão duro?
Já deu ao ar os mortos,
o pardal que podia
ter voado, mas insiste
em ficar aqui, firme,
enfiando no peito
o pó todo do mundo.



claudio rodríguez
sem epitáfio
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2019






28 maio 2020

jorge melícias / lembro-me dos anjos da dirimição


Lembro-me dos anjos da dirimição.
E de como pela fome
os homens
falqueavam a culpa
até aos ossos.

Era a guerra, asseveravam,
e à força cénica
desse horror
em movimento
chamavam deus.

Mas há muito que a penúria
desertou desta paisagem:
aqui já nem o desespero faz fé.



jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020






27 maio 2020

albert camus / mediterrâneo



I
Ao olhar ausente das janelas, a manhã ri
Com todos os seus dentes azuis e rebrilhantes.
Amarelas, verdes e vermelhas,
Às varandas ondulam as cortinas.
Jovens de braços nus estendem roupa.
Um homem, a uma janela, tem na mão uma luneta.
Manhã clara, esmaltada de mar
Pérola latina do alvor do lírio:
                Mediterrâneo!

Outubro de 1933



albert camus
cadernos de albert camus II
escritos de juventude
trad. josé carlos gonzalez
livros do brasil
1972






26 maio 2020

antónio franco alexandre / encontro-te perdido não tens corpo



encontro-te perdido não tens corpo
que sombra alguma guarde
não sei que luz destrói a linha de água
o ombro dividido

são secos ossos, terra
sem paisagem,
as tábuas dos navios e
o frio veneno

junto do cais a água de óleo mãe
o farrapo amanhã não te despeças


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996