26 maio 2020

antónio franco alexandre / encontro-te perdido não tens corpo



encontro-te perdido não tens corpo
que sombra alguma guarde
não sei que luz destrói a linha de água
o ombro dividido

são secos ossos, terra
sem paisagem,
as tábuas dos navios e
o frio veneno

junto do cais a água de óleo mãe
o farrapo amanhã não te despeças


antónio franco alexandre
poemas
a pequena face
assírio & alvim
1996






25 maio 2020

manuel antónio pina / cuidados intensivos



I

"A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?"

Terça-feira, 3 de Março



manuel antónio pina
monólogos
todas as palavras, poesia reunida
assírio & alvim
2012





24 maio 2020

alberto caeiro / o meu olhar azul como o céu


XXIII

O meu olhar azul como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta...


Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer coisa no sol de modo a ele ficar mais belo...
(Mesmo se nascessem flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol...
Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso…)

s.d.



alberto caeiro
o guardador de rebanhos
poemas de alberto caeiro
fernando pessoa
ática
1946






23 maio 2020

amadeu baptista / mil novecentos e cinquenta e três



Logo no primeiro ano
estou só
e não me consigo manter de pé.

Se suspeitasse sequer
que iria ser assim para toda a vida
não me riria

com estas gargalhadas
cristalinas.



amadeu baptista
açougue, 2012
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017







22 maio 2020

maria teresa horta / dias de agrura


capa: gil maia


Não sei o que mais
custa
nestes fins de tarde

de doença e mágoa

Se o animal do medo
que pé ante pé
nos tenta entrar em casa

se este silêncio imenso
que ao chegar da rua
aflige e atordoa

Nesta cidade triste
em que
se tornou Lisboa



maria teresa horta
nervo/8 janeiro/agosto 2020
colectivo de poesia
2020







21 maio 2020

alejandra pizarnik / a carência



Eu não sei de pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que a minha solidão deveria ter asas.


alejandra pizarnick
antologia poética
las aventuras perdidas  – 1958
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020














20 maio 2020

amalia bautista / no fundo



No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.



amalia bautista
conta-mo outra vez
tradução de inês dias
averno
2020






19 maio 2020

luis alberto de cuenca / penso em ti



Os amantes pensam-se. Cada um
pensa que pensa muito mais no outro
que o outro nele. Estão centrados
no seu ofício pensante e não notam
os fios invisíveis com que o medo
vai enredando as suas reflexões
e matando o amor. Só o esquecimento
poderia resgatá-los dessa dúvida,
mas não estão dispostos a esquecer-se.


luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018








18 maio 2020

john freeman / o rapaz debaixo do carro



Naquela noite em Damasco
a sua função era dispor
o chá e o bolo
e um raminho de menta
num tabuleiro de prata
e percorrer
o caminho calcetado da entrada
até ao rapaz a quem pagavam
para dormir debaixo do carro.
Ele nunca chegou
a dizer o seu nome, que
aspecto teria,
ou se, ao chegar
à beira dele,
enroscado,
olhos pretos luzidios,
o teria surpreendido
a cantarolar sozinho
logo antes de o estrondo do metal
o calar para sempre.



john freeman
mapas
trad. miguel cardoso
tinta da china
2019







17 maio 2020

bernardo soares / reconhecer a realidade como uma forma de ilusão,



Reconhecer a realidade como uma forma da ilusão, e a ilusão como uma forma da realidade, é igualmente necessário e igualmente inútil. A vida contemplativa, para sequer existir, tem que considerar os acidentes objectivos como premissas dispersas de uma conclusão inatingível; mas tem ao mesmo tempo que considerar as contingências do sonho como em certo modo dignas daquela atenção a elas, pela qual nos tornamos contemplativos.

Qualquer coisa, conforme se considera, é um assombro ou um estorvo, um tudo ou um nada, um caminho ou uma preocupação. Considerá-la cada vez de um modo diferente é renová-la, multiplicá-la por si mesma. É por isso que o espírito contemplativo que nunca saiu da sua aldeia tem contudo à sua ordem o universo inteiro. Numa cela ou num deserto está o infinito. Numa pedra dorme-se cosmicamente.

Há, porém, ocasiões da meditação — e a todos quantos meditam elas chegam — em que tudo está gasto, tudo velho, tudo visto, ainda que esteja por ver. Porque, por mais que meditemos qualquer coisa, e, meditando-a, a transformemos, nunca a transformamos em qualquer coisa que não seja substância de meditação. Chega-nos então a ânsia da vida, de conhecer sem ser com o conhecimento, de meditar só com os sentidos ou pensar de um modo táctil ou sensível, de dentro do objecto pensado, como se fôssemos água e ele esponja. Então também temos a nossa noite, e o cansaço de todas as emoções aprofunda-se com serem emoções do pensamento, já de si profundas. Mas é uma noite sem repouso, sem luar, sem estrelas, uma noite como se tudo houvesse sido virado do avesso — o infinito tornado interior e apertado, o dia feito forro negro de um traje desconhecido.

Mais vale, sim, mais vale sempre ser a lesma humana que ama e desconhece, a sanguessuga que é repugnante sem o saber. Ignorar como vida! Sentir como esquecimento! Que episódios perdidos na esteira verde branca das naus idas, como um cuspo frio do leme alto a servir de nariz sob os olhos das câmaras velhas!

14-5-1930



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






16 maio 2020

fernando pinto do amaral / fuga


Não há para o que resta deste mundo
nenhum jardim. O mais distante
paraíso
ficou para trás, cavaleiro
fugindo entre montanhas. Tantas vezes
eu fui a sua sombra, o seu mortal
refúgio.

«Una storia sanguinosa.»
Janela por onde olharemos
a nossa própria história, uma pequena
nuvem de fumo, as últimas conversas
de alguns adolescentes. Deixai-me seguir
os seus passos, transpor essa porta
tão estreita.

Quase todas as noites desejam
entrar aqui. Não saberemos nunca
esgotar a sua dor, os lugares mais perigosos
da vida. Tanto faz
ganharmos ou perdermos – eu só queria
dizer como o teu rosto nesse instante
trazia de outro céu a luz nos olhos.




fernando pinto do amaral
amor hereos
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000






15 maio 2020

mário cláudio / cefaleia


Sem que os víssemos nos viam
marcavam a hora,
elegiam a rua,
compravam um jornal que nem desfolhavam.

Eram estranhos,
retiravam um cartão,
abandonavam as mesas
precipitadamente.

Há anos isto foi,
os ossos nos
magoam desde então.


mário cláudio
hífen 4 abr/set 89
cadernos semestrais de poesia
viagens
1989







14 maio 2020

gastão cruz / thriller



Mil bares conheci cheios de gente
morta, como se aqueles dias vivos,

sem que eu soubesse, o dia de hoje fossem,
e talvez pertencessem ao filme

num clube visto outrora;
podia ser ali o paraíso, mas outrora

era agora: e aqui nenhuma vida
ou morte sobrevive


gastão cruz
relâmpago, revista de poesia nº 34
abril 2014