13 abril 2020

heiner müller / o anjo sem sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.


heiner müller
o anjo do desespero
trad. joão barrento
relógio d´ água
1997







12 abril 2020

herberto helder / lenha, legna





Lenha – e a extracção de pequenos astros,
áscuas. De poro a poro,
os electrões das corolas. Somente no mais escuro
não há nada. No escuro, a carne é um buraco
invisual, e o que arde é o pão
no estômago, e nos brônquios
cortadamente
o ar. E o carbono devora sono a sono a inocência
das imagens. O que toca o órgão mais profundo
do sopro não é música
nem chama: apenas um dedo de mármore entre
as têmporas como
uma bala. E enquanto pontas de fogo marcam
a boca, morremos afogados,
no espelho, no rosto. E se a loucura um instante
levanta as pálpebras.
A grande válvula do corpo.
A escuridão, a terra.

Abril, 1980




Legna – e l´estrazione di piccoli astri,
scintile da poro a poro,
gli elettoni delle corolle. Solamente nel più buio
non c´è nulla. Nel buio, la carne è un buco
cieco, e quel che arde è il pane
nello stomaco, e nei bronchi
tagliatamente
l´aria. E il carbónio divora sonno a sonno l´innocenza
delle immagini. Quel che tocca l´organo più profondo
del soffio non è musica
né fiamma: soltanto un dito di marmo tra
le temple come
una pallottola. E mentre punte di fuoco segnano
la bocca, moriamo affogati,
nello specchio, nel viso. E se la follia per un istante
alza le palpebre.
La grande valvola del corpo.
L´oscurità, la terra.


Aprile, 1980



herberto helder
flash
a cura di carlo vittorio cattaneo
empira
roma
1987






11 abril 2020

jorge de sousa braga / ao relento



Para encherem a noite, os grilos não precisam mais que
De uma lura. Mesmo no cativeiro continuam a cantar.

Para o homem, momentos há – e é doloroso reconhe-
cê-lo – em que até o universo é uma prisão.


  

jorge de sousa braga
o poeta nu
fenda
1991










10 abril 2020

italo calvino / as cidades e as trocas. 4



Em Ersília, para estabelecer as relações que governam a vida da cidade, os habitantes estendem fios entre as esquinas das casas, brancos ou pretos ou cinzentos ou pretos e brancos, conforme assinalem relações de parentesco, permuta, autoridade, representação. Quando os fios são tantos que já não se pode passar pelo meio deles, os habitantes vão-se embora: as casas são desmontadas; só restam os fios e os suportes dos fios.

Da vertente de um monte, acampados com as mobílias, os refugiados de Ersília vêem o intricado de fios estendidos e de postes que se ergue na planície. Isto é ainda a cidade de Ersília, e eles não são nada.

Reedificam Ersília noutro lugar. Tecem com os fios uma figura semelhante que desejariam mais complicada e ao mesmo tempo mais regular que a outra. Depois abandonam-na e levam ainda para mais longe tanto a si próprios como as suas casas.

Assim viajando no território de Ersília encontramos as ruínas das cidades abandonadas, sem as muralhas que não duram, sem as ossadas dos mortos que o vento faz rebolar: teias de relações intricadas que procuram uma forma.



italo calvino
as cidades invisíveis
trad. josé colaço barreiros
teorema
1999






09 abril 2020

joaquim manuel magalhães / encontro-te depois de procurar-te



Encontro-te depois de procurar-te
nas ruas onde é costume encontrar

Beijo-te no pescoço, os lábios
húmidos de treva, as mãos
firmes nos teus ombros.
Oculto, inseguro, dividido
quero festejar, festejar-te.

A alma, esta dilatação do corpo extasiado,
canta no quarto habitado pelo tempo.
Um som falso de cassettes sobe no descampado donde vens.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990






08 abril 2020

antónio osório / trinta e nove anos



É um bem que me roubem e explorem;
um bem que saibam quanto valho (nada);
um bem que espreitem, que circulem
incólumes, que amedrontem e persigam;
um bem que me desprezem e destruam
e um bem maior ainda que me ignorem,
porque é preciso pagar, e caro, a vida.



antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982









07 abril 2020

mário cesariny / homenagem a cesário verde



Aos pés do burro que olhava para o mar
depois do bolo-rei comeram-se sardinhas
com as sardinhas um pouco de goiabada
e depois do pudim, para um último cigarro
um feijão branco em sangue e rolas cozidas

Pouco depois cada qual procurou
com cada um o poente que convinha.
Chegou a noite e foram todos para casa ler Cesário Verde
que ainda há passeios ainda poetas cá no país!



mário cesariny
pena capital
assírio & alvim
1999






06 abril 2020

luís miguel nava / nos teus ouvidos



Nos teus ouvidos isto explode
de amor, palavra ampola sob
os astros funcionando abril à boca das cidades, dos
imperturbáveis muros aos quais as crianças
que de cristais nos punhos acontecem passam,
seus chapéus brevíssimos, os indícios
de nada, o modo de ler, de acender um texto
de amor nos ouvidos, isto explode e entra
nesta página o mar da minha infância, meigo
no modo de lembrá-lo, lê-lo, de acender
de carícias um texto na memória. De astros
as ruas eram cheias que os cuspiam hoje
na minha mãe de outrora, nas crianças de água, nos
pensamentos nenhuns que eu punha em seus joelhos, em
seus amáveis joelhos a que os astros acorriam,
minha mãe que arranco ao sono, às areias virgens
das palavras, que amanhecido eu gero, as mãos
tão de repente em pânico nos muros.


luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
películas
publicações dom quixote
2002





05 abril 2020

antónio ramos rosa / eu queria encontrar aqui ainda a terra



Eu queria encontrar aqui ainda a terra
e a chama
e a limpidez da simplicidade única
e reunir-me no silêncio a uma boca silenciosa

Eu desejava o centro e a festa na folhagem
mas estou submerso ou não afundo-me ou levanto-me
Caminho através da não-verdade
Esta palavra ou aquela uma palavra a mais
Eu não soube escutar-te eu oiço-te eu pergunto
quem unirá o silêncio da terra submersa
ao incêndio da festa à boca incompleta?


antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






04 abril 2020

yvette k. centeno / shepperton



no rio
só peixes solitários
só uma lua
a que nunca se vê
só barcos sem pessoas
só água sem maré



y. k. centeno
perto da terra
editorial presença
1984










03 abril 2020

sophia de mello breyner andresen / a hora da partida



A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


sophia de mello breyner andresen
poesia III
obra poética
assírio & alvim
2015





02 abril 2020

firmino mendes / requiem, em tempo de saturno



Adormeçam comigo nas grandes avenidas
de choupos negros
com o coração em sobressalto
tocado pelos sonhos que rodeiam colinas
outeiros à beira da morte
teias de aranha em suspensão nas ervas cortadas
onde brilha a água do céu

Aproximam-se os exércitos em linha de fogo
prontos para a grande laceração
nos socalcos
que aproximam o rio dos cumes
nas escarpas
onde se resguardam as águias
antes do grande ataque à casa viva

Adormecem comigo com o rosto sempre fixo
nos últimos campos de alface e hortelã
Alguém dirá que estamos desacordados
e passará ao lado sem calcar as rosas
enquanto de longe chega o ruído dos bandoleiros

Desaparecem os caminhos mais estreitos
Já não podem passar as palavras
para chamar os vegetais mais pequenos:
alecrim, tomilho, beldroegas, salsa
cardos, orégãos, coentros, cidreira

O mundo toca-se
os dedos renovam a pele
multiplicando os nervos
antes que cheguem os aplicadores de queimaduras




firmino mendes
hífen 10 maio 1997
cadernos semestrais de poesia
anos noventa (alguns poetas)
1997






01 abril 2020

alejandra pizarnik / estar


Vigias neste quarto
onde a sombra temível é a tua.

Não há silêncio aqui
só frases que evitas ouvir.

Sinais nos muros
narram a bela distância.

(Faz com que não morra
sem voltar a ver-te.)



alejandra pizarnick
antologia poética
extracción de la piedra de locura – 1968
tradução fernando pinto do amaral
tinta da china
2020