31 agosto 2019

luis alberto de cuenca / happy family




O pai é corcunda e elegante,
magnânimo, discreto, compreensivo.
Recebe no castelo os filósofos
que não suportam o ancien regime,
enquanto a esposa, vinte anos mais nova,
manda servir o chá, vestida apenas
com o colar de pérolas que lhe trouxe,
do seu périplo pela Austrália, Cook.
Têm um filho loiro, tão cientista
ele, está destinado no futuro
a caçar borboletas por hipnose,
ou a dar uma seca na sociedade
geográfica, ou a fazer-se íntimo
de Cuvier ou Champollion. Dá-se
francamente bem a família, vê-se
por aquele costume da senhora
de lambuzar de chocolate o filho
todas as tardes sendo sete em ponto
– a nova hora taurina –,  face ao cúmplice
e orgulhoso olhar do seu paizinho.



luis alberto de cuenca
a vida em chamas
uma antologia
trad. miguel filipe mochila
língua morta
2018






30 agosto 2019

per aage brandt / o homem é um hóspede efémero da terra




*
o homem é um hóspede efémero da terra,
pensava o poeta asteca, mas um hóspede
nem sempre é um homem aqui na terra;
na rua, num país estrangeiro, na cama de alguém,
acontecem coisas estranhas, um coração é uma
arma eficaz, e (citação) de qualquer modo morreremos,
abandonando-nos uns aos outros, abraçados, com a língua na
orelha
de um corpo que vibra de prazer ou se alonga num grito de
guernica,
depois do encontro com alguém que passou
e desapareceu ou tomou a decisão de ficar

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






29 agosto 2019

charles bukowski / facto




poesia cautelosa
e pessoas
cautelosas
duram
apenas o suficiente
para
morrer
em segurança.



charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018







28 agosto 2019

charles simic / a execução



Foi o nascer do sol mais cedo
E o mais tranquilo.
Os pássaros, por razões deles,
Ficaram calados nas árvores
Cujas folhas permaneceram
Quietas o tempo todo
Um número pequeno apenas
Nos ramos mais altos
Salpicados com sangue recente.



charles simic
o último soldado de napoleão
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018







27 agosto 2019

saint-john perse / chuvas




VII

[…]

«Lavai, lavai a história dos povos nas altas mesas da memória: os grandes anais oficiais, as grandes crónicas do Clero e as publicações académicas. Lavai as bulas e as cartas, e os Diários do Terceiro Estado; as Convenções, os Pactos de aliança e os grandes actos federativos; lavai, lavai, ó Chuvas! todos os velinos e todos os pergaminhos, cor de muros de asilo e de leprosarias, cor de marfim fóssil e de velhos dentes de mula… Lavai, lavai, ó Chuvas! as altas mesas de memória.

[…]


saint-john perse
habitarei o meu nome
antologia
tradução de joão moita
assírio & alvim
2016







26 agosto 2019

eugéne guillevic / carnac (fragmentos)


1

MAR à beira do nada,
Que se mistura ao nada,

Para melhor saber o céu,
As praias, os rochedos,

Para melhor os receber.


guillevic
poesias de guillevic
tradução de david mourão-ferreira
editora ulisseia
1965








25 agosto 2019

miguel torga / pedagogia



Brinca enquanto souberes!
Tudo o que é bom e belo
Se desaprende…
A vida compra e vende
A perdição.
Alheado e feliz,
Brinca no mundo da imaginação,
Que nenhum outro mundo contradiz!

Brinca instintivamente
Como um bicho!
Fura os olhos do tempo,
E à volta do seu pasmo alvar
De cabra-cega tonta,
A saltar e a correr,
Desafronta
O adulto que hás-de ser!

Coimbra, 16 de Março de 1960



miguel torga
diário ix
1964







24 agosto 2019

tiago fabris rendelli / verdade



não podemos nos furtar do equívoco
nem esquecer que os espelhos só refletem reflexos.

desconfiai dos corretos
dos que declaram a verdade
pois são os mesmos que fuzilaram Lorca
que seguem atirando poetas em covas rasas
                                              matando sonhos
                                              cegando os pássaros
                                              cortando as asas.



cuidado
aquele que se esquiva do erro
nega o princípio da beleza.



tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017







23 agosto 2019

leopoldo maría panero / diário de um sedutor



Não é o teu sexo o que no teu sexo procuro
mas sujar a tua alma:
                                 desflorar
com toda a lama da vida
aquilo que ainda não viveu.



leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019














22 agosto 2019

fernando alves dos santos / recordação




Era eu pequeno e que gestos que tempestades de oiro punha nos vidros da janela para me fazer herói na própria sombra que temia.

Uma agonia no meu corpo não me deixou ver a claridade com que os meus me beijavam. Vivia muito perto do sol que os adolescentes cobrem de beijos com a alegria com que alargam a fronte.

E o meu corpo doente na manhã indiferente ressurgiu nessa luz que realiza a morte e a vida.



fernando alves dos santos
diário flagrante [poesia]
edição perfecto e. cuadrado
assírio & alvim
2005







21 agosto 2019

rui caeiro / retrato



Uma demora lenta nas palavras
um calor bom na palma das mãos
uma maneira de gostar das pessoas e das coisas
sem tolher movimentos ou forçar as superfícies
beber aos golinhos o café a ferver
ou o whisky chocalhado com pedrinhas de gelo
viver viver roçando as coisas ao de leve
sem poupar o veludo das mãos e do corpo
sem regatear o amor à flor da pele
olhar em torno de si perdida ou esperar o Verão
e saber de um saber obscuro que o calor
todo o calor é de mais dentro que vem


rui caeiro
livro de afectos
o sangue a ranger nas curvas apertadas do coração
maldoror
2019






20 agosto 2019

antónio franco alexandre / oásis




[…]

atravessar o mundo! Banhar as mãos num oceano índico, todo
de pedra recamado! bafejar a fortuna
a digressão por litorais, ravinas

de rigoroso corte! – abre-se, dizia,
a ditosa masmorra do ouvido. Esqueço,
por um instante, as mãos sobre o volante,

no caminho de espanha, magro sancho. Blanca niña, blanca niña
blanca niña blanca flor
e sobre a larga terra tudo dormira

[…]



antónio franco alexandre
oásis
assírio & alvim
1992






19 agosto 2019

joaquim manuel magalhães / somos de natureza contrária



Somos de natureza contrária.
Um de nós pode destruir o outro,
mas só por fora, uma onde que vem
de muito longe, demora a chegar
à praia, ao sol que soçobra
no lugar onde nós estamos,
entregues, entristecidos. Dentro,
no interstício de silêncio
ameaçado pela despedida, sempre
de despedida ameaçado, nenhum
de nós será destruído nunca,
a memória da rua com plátanos,
o pólen mordente da primavera,
o cântico dos pardais. Não,
eu não quero esse amor indeciso
que soçobra num frio inebriante:
cada um com o outro tenta conservar
o seu ser, a identidade que sorri
na janela do quarto que fica por fechar.



joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990