17 maio 2019

adam zagajewski / mudança



Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.



adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017






16 maio 2019

howard altmann / a manter a postura



A história senta-se numa cadeira
de um quarto sem janelas.
De manhã procura uma porta,
à tarde dorme a sesta.
Ao bater da meia-noite,
espreguiça-se e boceja.
Está no tempo certo e fora do tempo,
sabe o seu lugar e não sabe o seu lugar.
Às vezes considera a cadeira um degrau,
às vezes acredita que a cadeira não está lá.
Vista dos cantos nunca parece a mesma.
Quando está lua cheia mantém a inteireza.
A história senta-se numa cadeira
num quarto por cima das nossas casas.



howard altmann
enquanto uma fina neve cai
trad. eugénia de vasconcellos
guerra & paz
2019





15 maio 2019

miguel filipe mochila / a vida faz-me falta para andar contente



E então é assim: a tarde passa
a língua só tangeu um par de coisas
é tão daninha a língua quando atrasa
de a deixar tão fruste assim à solta
sem ter onde aterrar
e vai planante
alta demais para largar raízes
baixa demais para ser sonora
e a aflita música nunca acorda
e então cala-se e ainda alada
podia bater as asas a vida toda
porque é ainda língua mais volátil
se volante enfim se arrasta
à pressa na prosa dos jornais…
e eu fico à escuta, aqui, parado
é triste ser-se alegre para a escrita
os dias porcos também cantam qualquer coisa
e eu queria mais era ter arte
para ouvir a valsa que desata
a dançar com o vento nos currais…
mas nunca acontece nada e então absurda
a fome já fermenta a carne fraca
ponho a mesa para o poema faz-me falta
levar um coração inteiro à boca
e então já oiço e quase existo
perto fala um vento atrás da porta
e se pergunto com que língua me vai entrar em casa
se será toda odorífera e sonora
como na velha casa a voz já morta
quando era viva a voz e a casa viva
se passará por mim rasante como a mosca
que se põe a pensar no voo e cai na sopa
se terá maneiras e timbre da rapariga
que sempre se tolhe quando pede
mais…
mas logo o sentido clama e a língua perde-se
a dizer isto e depois isto
(branco e azul não são a mesma coisa,
não é sangue o que no céu se arrasta
quando o sol se põe, etc., etc.)
e lá fora o que oiço é sempre só o que oiço
este tinir da chuva contra o copo
no parapeito a repetir já rouco
a algazarra da festa de ontem
o concerto alegre de ontem
que sendo de ontem
já não toca…
e é então que eu penso:
coisas reais nunca vêm à minha mesa
é triste este ser-se alegre e os dias cantam
e eu não ter arte, e ser já tarde
e a festa ter sido ontem e assobiante
ouvir-se o vento sobre os porcos
que belos bailam nos currais…




miguel filipe mochila 
nervo/5
colectivo de poesia
maio/agosto 2019











14 maio 2019

al berto / eras novo ainda



6

eras novo ainda
mal sabias reconhecer os teus próprios erros
e o uso violento que de noite eu fazia deles

esta cama de minerais secos
escrevo para despertar a fera de sol pelo corpo
escorrem aves de cuspo para a adolescência da boca
e junto ao mar existe ainda aquele lugar perdido
onde a memória te imobilizou

enumero as casas abandonadas ao sangue dos répteis
surpreendo-te quando me surpreendes
pela janela espio a paisagem destruída
e o coração triste dos pássaros treme

quando escrevo mar
o mar todo entra pela janela
onde debruço a noite do rosto tocado… me despeço


al berto
eras novo ainda 1981/1982
o medo
assírio & alvim
1997






13 maio 2019

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo



VI

não posso
tu sabes que não posso
repetir-me
o sangue que cai uma vez
não torna a cair
a estrela   a febre
as unhas cravadas no peito
palavra já afirmada
dita por mim e por ti
não   não   não
não quero
outra vez a mesma existência
tu sabes
que o abandonar o corpo
dentro de uma longa superfície
nos faz saber que
– cavalo ou mola de aço –
tudo é exaustivamente brilhante
os próprios extremos da noite
 se colam aos nossos dedos
e palpavelmente nos aparecem
luminosos
erguidos eroticamente

o espaço povoado
por esferas de cristal
digo eu
não sei   talvez

não posso
tornar à primeira vez
que te encontrei

agora vai
leva os teus braços
os teus olhos
o teu sexo

parte
deixa-me apenas
o vento

maio 1950


mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018







12 maio 2019

miguel torga / negrume



De tanto olhar o sol, queimei os olhos.
De tanto amar a vida, enlouqueci.
Agora sou no mundo esta negrura,
À procura
Da luz e do juízo que perdi.

Cego, tacteio em vão a claridade;
Louco, cuspo no rosto da razão;
E deambulo assim
Dentro de mim,
Negação a negar a negação.


miguel torga
câmara ardente
1962







11 maio 2019

josé gomes ferreira / as crianças



XIII

As crianças
atiravam o Sol umas às outras
a brincarem no pátio
entre gritos alegres de poeira.

Não percebo porque os deuses
em vez de viverem com os homens
nos esperam na sombra
com caveiras de incenso
e invenção de pequenos enredos na morte
para entreter o silêncio.


josé gomes ferreira
poesia V
memória – I 1957-1958
portugália
1973






10 maio 2019

josé tolentino mendonça / calle principe, 25




Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou



josé tolentino mendonça
a noite abre meus olhos
(poesia reunida)
assírio & alvim
2006






09 maio 2019

juan luis panero / enigmas e despedidas




Um gato que mia na noite antes de morrer,
um gato que mia, o seu histérico adeus.
Que segredo, que estranho e banal mistério
a vida nos oculta nesse grito atroz?
Como olhar depois o seu lugar na sombra,
as unhas da morte, a pele da impotência?
Tantos anos a partilhar o destino
que é agora uma cesta vazia,
derrotados arranhões, uns olhos apagados,
o absurdo de tudo, enigmas e despedidas.



juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003






08 maio 2019

césar simón / chegámos muito longe




   Chegámos muito longe,
pois a cidade funda é a cidade do tédio,
palmeiras indolentes,
de arrabaldes e comboios o pó leve.

   O pó e o asfalto
o jasmim e a ferrugem.
Vai fluindo o silêncio,
a essência da vida transparece.

  Arcos rotundos, solitários,
quando impera a tarde.
Sob os vãos hinos triunfam os vãos deuses,
oferece o sem-sentido um sentido solene.

   «O mar e nada mais».
Atrás, anos destruídos;
anos mortos, adiante. Nada interesse.



césar simón
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de josé bento
assírio & alvim
2001







07 maio 2019

e e cummings / xix poemas



[x]

ele não tem que sentir porque pensa
(os pensamentos de outros,entenda-se)
Ele não tem que pensar porque sabe
(que tudo é mau o que tu pensas bom)

porque sabe,ele não pode entender
(por que o Jones não me paga o que ele sabe que deve)
porque não pode entender,ele bebe
(e bebe e bebe e bebe e)

não calvo. (Tosse) Dois olhos pequenos pálidos e manhosos

equilibrados sobre um beicinho quebrado
(dentes lindos eram para dentro do que e fora
de) Vida,encerrais Vós uma maravilha que
esta morte de nome Smith menos estranha?
                                                                               Casado e mente


Assustado;agressivo e:Americano



e. e. cummings
xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço
assírio & alvim
1998






06 maio 2019

konstandinos kavafis / dias de 1903




Não voltei a encontrá-los – esses dias tão depressa perdidos…
esses olhos poéticos, esse pálido
rosto… no anoitecer da rua…

Não os encontrei mais – aos adquiridos inteiramente por acaso,
que tão facilmente deixei;
e que depois com ansiedade queria.
Esses olhos poéticos, esse pálido rosto,
aqueles lábios não os encontrei mais.


konstandinos kavafis
os poemas
II (1916-1918)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







05 maio 2019

bernardo soares / para compreender, destruí-me.



Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci, de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982