04 maio 2019

vasco graça moura / nó cego, o regresso



I
esta é a sombra, o rigor
do coração: nó cego, indesatável
por nevoeiro espesso
ou ténue gaze na distância.

uma obscura (translúcida razão?)
como papel de seda vibra
ou se amarfanha
surda, tu e eu poderíamos

rasgar a sombra intocável?
nenhum sentir distingue
seu intrincado músculo ansioso,
propulsor de sombras e sangue?

nenhum poder é transparente,
ileso? poderíamos?



vasco graça moura
nó cego, o regresso
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






03 maio 2019

pier paolo pasolini / as cinzas de gramsci


V

Não falo do indivíduo, do ardor
sensual e sentimental…
outros vícios terá, outro é o nome

e a fatalidade do seu pecado…
Mas há nele tantos outros vícios comuns,
de antes de ter nascido, e um tão grande

pecado objectivo! Os actos
nele ou fora dele nascidos, que o fazem
despertar para a vida, não escapam a uma só

das religiões que na vida existem,
hipotecas de morte, instituídas
para enganar a luz, iluminar o engano.

Se os seus restos se destinam a ser
sepultados no Verano, é católica
a sua luta com eles: jesuíticas

as manias a que habitua o coração;
e ainda mais intimamente: na sua consciência
há astúcias bíblicas… e um irónico ardor

liberal… e a tosca luz, entre náuseas
de dandy provinciano, de uma saúde
provinciana… Até aos ínfimos detalhes

em que se esfumam, num fundo animal,
a Autoridade e a Anarquia… Bem protegido
da virtude impura e da embriaguez do pecado,

defendendo uma ingenuidade de obcecado,
e com quanta consciência!, assim vive o eu: assim
vivo, iludindo a vida, tendo no peito

o sentimento de uma vida que seria esquecimento
dolorido, violento… Ah como
compreendo, mudo neste húmido rumor

do vento, aqui onde Roma é silêncio,
por entre os ciprestes cansadamente revolvidos,
junto de ti, a alma a quem uma inscrição chama

Shelley… Como compreendo o turbilhão
dos sentimentos, o capricho (grego
no coração do patrício, visitante

nórdico) que o engoliu no ofuscante
azul do mar Tirreno; a alegria
carnal da aventura, feita de beleza

e de infância: enquanto a Itália, prostrada
como no ventre de uma cigarra
enorme, escancara brancos litorais,

salpicados, no Lácio, por velados bosques
de pinheiros, barrocos, amareladas
clareiras de eruca, onde dorme

com o membro túrgido envolto nos andrajos, num sonho
goethiano, o rapazinho de Ciociaria…
Sombreados, na Maremma, por rastos deslumbrantes

de sagitários onde se destaca a mancha clara
das avelaneiras, nos carreiros que um pastor
enche, sem saber, da sua juventude.

De uma fragrância alucinante nas enxutas
curvas da Versilia, que para o mar,
emaranhado, cego, volta os estuques claros,

e os leves embutidos dos seus campos
pascais totalmente humanos,
sombrios em todo o Cinquale,

nítidos no sopé das tórridas Apuanas,
vítreos azuis sobre o cor-de-rosa… Semeados de rochedos,
escombros, revolvidos, como por um pânico

de fragrância, na Riviera, húmida,
escarpada, onde o sol luta com a brisa
para dar suprema suavidade aos óleos

do mar… E em redor zumbe de alegria
o interminável instrumento de percussão
do sexo e da luz: tão habituada

está Itália que não treme, como
se estivesse morta em vida: gritam, calorosos,
em centenas de portas, o nome

do amigo jovens de tez morena e
radiosa, por entre a gente
da terra, junto dos campos de cardos,

em sórdidas e minúscula praias…

Irás pedir-me, tu morto austero,
para renunciar a esta desesperada
paixão de estar no mundo?




pier paolo pasolini
le ceneri di gramsci
poemas
trad. maria jorge vilar de figueiredo
assírio & alvim
2005







02 maio 2019

paul éluard / em primeiro lugar



IV

Disse-to pelas nuvens
Disse-to pela árvore do mar
Por cada onda pelos pássaros nas folhas
Pelos calhaus do ruído
Pelas mãos familiares
Pelos olhos que se volvem rosto ou paisagem
E o sono dá-lhe o céu da sua cor
Por toda a água da noite
Pelas linhas das estradas
Pela janela aberta por uma fronte descoberta
Disse-to pelos teus pensamentos pelas tuas palavras
Toda a carícia toda a confiança sobrevivem.


paul éluard
algumas das palavras
trad. antónio ramos rosa e luiza neto jorge
publicações dom quixote
1977






01 maio 2019

josé saramago / fraternidade




A qual de nós engano quando irmão
Nestes versos te chamo?
Não são irmãs as folhas que do chão
Olham outras no ramo.
Melhor é aceitar a solidão,
Viver iradamente como o cão
Que remorde o açamo.


josé saramago
os poemas possíveis
porto editora
2018








30 abril 2019

alexandre o'neill / amigos pensados: gente de pau e manta



Nunca jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus, sornas e vivos.

O aguardente aquece-lhes a casa,
o tabaco fuma-lhes a prosa.

Quando dormem,
nem a formiga os acorda.

Aceitam trabalho aqui,
Mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
ó minha linda,
gente que pra ti não há.


alexandre o´neill
feira cabisbaixa 1965
poesias completas
assírio & alvim
2000






29 abril 2019

carlos de oliveira / papel




                Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001













28 abril 2019

natália correia / o livro dos amantes




III
Príncipe secreto da aventura
em meus olhos um dia começada e finita.
Onda de amargura numa água tranquila.
Flor insegura enlaçada no vento que a suporta.
Pássaro esquivo em meus ombros de aragem
reacendendo em cadência e em passagem
a lua que trazia e se apagou.



natália correia
poemas
antologia poética
dom quixote
2018







27 abril 2019

josé de almada negreiros / a invenção do dia claro



[…]

Imaginava eu que havia tratados da vida das pessoas, como há tratados da vida das plantas, com tudo tão bem explicado, assim parecidos com o tratamento que há para os animais domésticos, não é? Como os cavalos tão bem feitos que há!

Imaginava eu que havia um livro para as pessoas, como há hóstias para cuidar da febre. Um livro com tanta certeza como uma hóstia. Um livro pequenino, com duas páginas, como uma hóstia. Um livro que dissesse tudo, claro e depressa, como um cartaz, com a morada e o dia.

[…]


josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971







26 abril 2019

sophia de mello breyner andresen / quadrado



Deixai-me com a sombra
Pensada na parede
Deixai-me com a luz
Medida no meu ombro
Em frente do quadrado
Nocturno da janela



sophia de mello breyner andresen
a noite e a casa
obra poética
assírio & alvim
2015








25 abril 2019

josé gomes ferreira / só hoje


XXXI

Só hoje
sinto esta verdade
em carne e sangue
de sol comum.

Liberdade
– muro transparente de cada um.



josé gomes ferreira
poesia V
grito plural 1958
portugália
1973






24 abril 2019

gil t. sousa / desertos


2-

da luz
nem sempre quis a
a verdade

tenho agora
vícios de deserto
e o coração

pede-me sombras curtas
não confio no vento,
esse pássaro louco

que despreza a cor
do alecrim
e da tâmara madura

estou cansado
e assisto de longe
à traição da primeira hora

já só escrevo na areia quente
o frio que não
posso guardar

mas danço
como o orvalho
de flor em flor

e agora
qualquer madrugada me serve
para despertar



gil t. sousa
desertos







23 abril 2019

eduardo pitta / detenho-me a roer



Detenho-me a roer
os dias que ainda faltam
e conto a mim mesmo
com desencanto
histórias velhas como o tempo
histórias que sirvam de ponte
entre o passado e o futuro.

E tão pouco tempo para as contar.


eduardo pitta
um cão de angústia progride
desobediência
poemas escolhidos
dom quixote
2011







22 abril 2019

rui knopfli / baldio



O menino que eu fui debruça-se furtivo
de meus olhos sobre o recanto da paisagem.
Entre a dureza austera dos prédios
e o largo sorriso colorido das vidraças
aquele recanto que sobrou da paisagem
pertence intacto ao menino que eu fui outrora
e o menino que eu fui outrora desce
alvoraçado de meus olhos, desliza
entre o capim, atira pedras ao gala-galas
e salta sobre velhas folhas de zinco
apodrecido, num cenário querido de girassóis
antigos. Então parto dali
e o menino que fui regressa extenuado
e adormece na sombra dos meus olhos.


rui knopfli
mangas verdes com sal (1969)
memória consentida
20 anos de poesia 1959/1979
imprensa nacional -casa da moeda
1982