12 novembro 2018

ron padgett / o poeta enquanto pássaro imortal




Um segundo atrás o meu coração deixou de bater
e eu pensei: «Seria uma péssima altura
para ter um ataque cardíaco e morrer,
a meio de um poemas», então reconfortou-me
a ideia de que nunca soube de ninguém
que morresse a meio da escrita de um poema,
assim como os pássaros nunca morrem a meio do voo.
Acho.



ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018









11 novembro 2018

bernardo soares / com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.




Com um charuto caro e os olhos fechados é ser rico.

Como quem visita um lugar onde passou a juventude, consigo, com um cigarro barato, regressar inteiro ao lugar da minha vida em que era meu uso fumá-lo. E através do sabor leve do fumo todo o passado revive-me.

Outras vezes será um certo doce. Um simples bombom de chocolate escangalha-me às vezes os nervos com o excesso de recordações que os estremece. A infância! E entre os meus dentes que se cravam na massa escura e macia, trinco e gosto as minhas humildes felicidades de companheiro alegre do soldado de chumbo, de cavaleiro congruente com a cana casual meu cavalo. Sobem-me as lágrimas aos olhos e junto com o sabor do chocolate mistura-se ao meu sabor a minha felicidade passada, a minha infância ida e pertenço voluptuosamente à suavidade da minha dor.

Nem por simples é menos solene este meu ritual do paladar.

Mas é o fumo do cigarro o que mais espiritualmente me reconstrui momentos passados. Ele apenas roça a minha consciência de ter paladar. Por isso mais [...] me evoca as horas que morri, mais longínquas as faz presentes, mais nevoentas quando me envolvem, mais etéreas quando as corporizo. Um cigarro mentolado, um charuto barato toldam de suavidade alguns meus momentos. Com que subtil plausibilidade de sabor-aroma reergo os cenários mortos e empresto outra vez as [...] de um passado, tão século dezoito sempre pelo afastamento malicioso e cansado, tão medievais sempre pelo inevitavelmente perdido.

s.d.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982









10 novembro 2018

diogo costa leal / voz alta




*
no quadro vivo desta ideia-viva com o sonho vivo
do teu nome ao centro
há uma criança a dançar space rock com luvas de fogão nos pés
e um pulmão de sol ventilado por árvores
e um beijo terno na testa das cobras
e óculos com hastes de rosas e lentes de fruta
e um baloiço de esponja sentado
por um cérebro que sorri enxaguado
brilhante e empurrado
por dedos de ninho
de um deus-cantado;
isto e
como disse, ao centro
um Lázaro gestual das memórias mais felizes
a abrir o fogão dourado nos relógios das raízes
prestes a servir novo banquete de infância
para a criança que dança, porque dança
num espaço em branco, teu por direito de quanto
e teu por dever de espanto e balança
para que o reconstruas com o corrimão
do teu próprio entretanto de quadro
no interno milagre de esquadro nas pontes do amor
para testemunho das fortunas
de flora fauna e faúlhas
em galáxia de celebração
nos raros arquipélagos
da solidão.



diogo costa leal
voz alta
editora urutau
2018











09 novembro 2018

andré domingues / estudo para um beijo




Era o fim do sonho europeu.
Como um animal preso numa linha férrea
eu queria que a figura da morte fosse dita
que te atravessasse a parte plena das artérias
e que algo amanhecesse ao mesmo tempo
como amanhece um pavor alegremente

dos lábios, da terra, dos espaços em branco
do interdito e da flor insólita das penínsulas
eu queria poder voltar a unir os continentes
neste poema.

E deixar os rios apenas a pairar
no fogo das florestas
como alguns sorrisos para
no momento de existir.



andré domingues
nervo/2
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










08 novembro 2018

henri michaux / nós dois ainda




Música do fogo, tu não soubeste tocar.
Lançaste sobre a minha casa um pano negro. O que é este opaco em toda a parte? É o opaco que tapou o meu céu. O que é este silêncio em toda a parte? É o silêncio que calou o meu canto.



henri michaux 
moriturus e outros textos
tradução de rui caeiro
língua morta
2018












07 novembro 2018

manuel altolaguirre / separação




Levo em mim a solidão,
torre de cegas janelas.

Quando meus braços estendo
abro suas portas de entrada
e dou caminho macio
a quem quiser visitá-la.

Pintou a lembrança os quadros
que enfeitam as suas salas.
Minhas venturas de outrora
com a dor de hoje ali contrastam.

Que juntos os dois estávamos!
Quem o corpo? Quem a alma?
Nossa última despedida,
que morte foi tão amarga!

Dentro de mim levo agora
a solidão alta e delgada




manuel altolaguirre
antologia da poesia espanhola contemporânea
selecção e tradução de josé bento
assírio & alvim
1985









06 novembro 2018

jorge luís borges / a chuva




Está de súbito o dia clareado
Porque já cai a chuva minuciosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que sem dúvida ocorre no passado.

Quem a ouve cair vê recuperado
Esse tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor chamada rosa
E a curiosa cor do encarnado.

Esta chuva que vai cegando os vidros
Alegrará em arredores perdidos
As uvas de uma parra em certo horto

Ou pátio já esquecido. Esta molhada
Tarde me traz a voz, voz desejada
Do meu pai que regressa e não está morto.



jorge luís borges
obras completas 1952-1972 vol. II
o fazedor (1960)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998







05 novembro 2018

wislawa szymborska / nuvens




Para descrever as nuvens
muito teria de apressar-me,
pois numa fracção de segundo
deixam de ser estas e começam a ser outras.

É sua propriedade
não se repetir
nas formas, tonalidades, poses e configurações.

Sem o peso de qualquer lembrança,
pairam sem dificuldade sobre os factos.

Mas nem testemunha-los podem,
pois logo se dissipam em todas as direcções.

Comparada com as nuvens,
a vida afigura-se firme,
quase duradoura, eterna.

Perante as nuvens
até uma pedra parece nossa irmã,
na qual se confia,
mas elas, enfim, umas levianas primas afastadas.

As pessoas que existam, caso queiram,
e depois morram uma por uma,
as nuvens não têm nada a ver com
coisas
tão estranhas.

Sobre toda a tua vida
e sobre a minha, ainda não toda,
desfilam com pompa, como desfilavam.

Não têm obrigação de morrer connosco.
Não precisam do nosso olhar para navegar.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006








04 novembro 2018

álvaro de campos / eu cantarei,





                I

Eu cantarei,
Quando a manhã abrir as portas do meu esforço,
Eu cantarei,
Quando o alto-dia me fizer fechar os olhos,
Eu cantarei,
Quando o crepúsculo limar as arestas,
Eu cantarei,
Quando a noite entrar como a Imperatriz vencida
Eu cantarei a Tua Glória e o meu desígnio.
Eu cantarei
E nas estradas ladeadas por abetos,
Nas áleas dos jardins emaranhados,
Nas esquinas das ruas, nos pátios
Das casas-de-guarda,
A Tua Vitória entrará como um som de clarim
E o meu Desígnio espera-la-á sem segundo pensamento.


                II

Perto da minha porta
Onde brincam as crianças dos outros,
Rompe um canto infantil, disciplinado e cómodo,
E eu sou a quinta criança ali, se houver só quatro,
E ninguém me abandonar embora eu não esteja lá
Canto também, dormindo transparente e calado.


s.d.


álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993







03 novembro 2018

fernando pinto do amaral / 7.




Foi por uma janela que te vi
chegar. A medo, olhámos um para o outro,
cercados de razões que não havia
em nenhuma das horas passadas à espera,
em nenhuma das artes do amor.

Um véu de sons cobria-nos o mundo,
as mesas de madeira envernizada,
a camisola       os olhos muito verdes
o livro dos telefones muito azul.


Quiseste despedir-te logo ali
talvez pra não nos verem. Se pudéssemos
sobreviver ao fogo dos sorrisos,
como se a um segredo confessássemos
mais do que a própria vida! Mas ias descendo
a longa rampa rumo aos repetidos
roteiros do saber. Retomarias
os horários de sempre, esse teu mundo
sem ventos nem marés, fins-de-semana
uns à espera dos outros. Quase tudo
o que tínhamos dito ficava a sonhar
com muitas outras tardes, com a luz
de menos breves horas. «Pode ser
que eu te escreva, que passe contigo
um dia de setembro».



fernando pinto do amaral
os olhos verdes
poesia reunida 1990-2000
dom quixote
2000







02 novembro 2018

ferreira gullar / arte poética




Não quero morrer não quero
Apodrecer no poema
Que o cadáver das minhas tardes
Não venha feder em tua manhã feliz
                               E o lume
Que tua boca acenda acaso das palavras
– ainda que nascido da morte –
some-se
                               aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
                               no presente veloz

Nada que se pareça
a pássaro empalhado múmia
de flor
dentro do livro
               e o que da noite volte
volte em chamas
                ou em chaga

                vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira




ferreira gullar
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001









01 novembro 2018

antónio pedro / poema




Os homens que fazem jazigos também cantam de manhã… e os jazigos envolvidos na cantiga têm um ar acolhedor, burguês e confortável…

Não te ocupes daquilo que está à tua volta, nem daquilo que à tua volta é um símbolo de outra coisa: nada tem símbolos e tudo é a sua própria definição. Não queiras saber das coisas à tua volta: elas são o seu porquê – adora! – e que o gosto de olhá-las te seja tão suave e sagrado como uma bênção!

– Vê como é tão simples a mote, e tão inúteis os mistérios insondáveis numa manhã de sol!



antónio pedro
antologia poética
obras clássicas da literatura portuguesa séc. xx
edição de fernando matos oliveira
angelus novus, editora
1998








31 outubro 2018

vasco graça moura / recitativos




                          absorpta est mors in vitctoria
                                                                     (coríntios, I-XV, 54)

I
em roma, onde eu não estive, sá de miranda,
assim falando, em terra estranha e em ar,
fazia agrimensura de saudades e recordo que tinha
a parente escritora, de 31 anos de idade,
e ambos eram tristes, perguntando
para quê chamar sempre a surda morte
pelos campos sem fim

o vento, o gosto amargo, a lua obscura transtiberim
chegavam ao postigo
donde viam
uma boa parte da cidade
cheia de majestade antiga

falavam longamente e os loureiros
e a pedra cor-de-rosa
aboliam o tempo




vasco graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007