24 outubro 2018

leonard cohen / o regresso




Mas eu não me perdi
mais do que se perdem as folhas
ou vasos enterrados
Esta não é a minha hora
Só te faria cismar

Sei que deves chamar-me traidor
porque desperdicei o meu sangue
num amor sem sentido
e tens razão
Sangue como este
nunca ganhou um átomo de estrela

Sabes como chamar-me
ainda que semelhante ruído agora
apenas confundisse o ar
Nenhum dos dois pode esquecer
os passos que dançámos
as palavras que me estendeste
para que saísse do pó

Sim, desejo-te
não como uma folha ao tempo
ou o vaso do tempo
mas com um estreito anseio humano
que faz com que um homem recuse
outro campo que não o seu
Espero-te num
lugar inesperado da tua viagem
com uma chave enferrujada
ou uma pluma que não recolhes
até ao regresso
quando for claro
que o remoto e doloroso destino
nada mudou na tua vida



leonard cohen
poemas e canções
flores para hitler
tradução margarida vale de gato e manuel alberto
relógio d´água
1999






23 outubro 2018

rené char / rasto negro




Ao compilar do pôr-do-sol sonoro
A cada andar de nuvens
A noite reencontra, esquece o seu nome

Não há similitude
Há apenas solidão
Que se abandona, uivo e lobo

O amor que tinha adormecido
Como o mar sob uma vaga
Guarda um rosto de múmia
E fala uma língua de areia.

1926





rené char
este fanático das nuvens
furor e mistério
o pau de roseira (1983)
tradução y. k. centeno
cotovia
1995







22 outubro 2018

joaquim manuel magalhães / fotografias de jorge molder




1.

Amanhã do dia leva a noite num fino fumo.
A promessa quebrada abre uma porta e partia.
O alarme do corpo aprende outras palavras,
guardam-no do bem os cantos mais escuros.
A última cadeira de um homem espera
na sala vazia. Onde secavam as flores das canas?
Um pássaro voava contra o vento
o das lágrimas, não sabendo como dizer adeus.


joaquim manuel magalhães
fotografias de Jorge molder
os dias, pequenos charcos
editorial presença
1981









21 outubro 2018

antero de quental / voz do outono




Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
‑ "Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,

Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da Ilusão!

Mais valera à tua alma visionária
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba vária,

(Sem ver uma só flor, das mil, que amaste)
Com ódio e raiva e dor... que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!" ‑



antero de quental
sonetos









20 outubro 2018

john havelda / um ford modelo t




                    Para M.E.


Ford pensou fazer fortuna
a fabricar relógios.
Mas, enfim, nem toda a gente
precisa de um relógio.


Normalmente, não acreditava
em pregar as janelas das suas ideias infelizes
tão cedo. Aquela, no entanto, ele bem via
que não ia longe.

Nem toda a gente precisa de um relógio, mas o que toda a gente
deseja em breve se tornou claro.
Um belo dia, entediado com o tilintar do gelo
no seu cocktail, pôs-se a olhar quem passava para lá
e ao fim do segundo copo,
passava para cá. Na verdade ninguém
estava ali,
em frente àquela janela.
«Sou o único aqui», disse ele,
e bateu palmas porque finalmente
nascera a fortuna.
Enquanto pulava pela sala,
entornando gin na camisa,
até ele se tornou um freguês potencial,
porque ninguém, nem mesmo sua excelência
o próprio senhor Henry Ford
quer ficar onde está.



John havelda
poesia do mundo
tradução do autor
edições afrontamento
1995








19 outubro 2018

antónio maria lisboa / acento




Vem dos montes friíssimos da Noruega
onde te sonhei para beberes estrelas
e caminhar a custo entre as cascatas
onde a ternura é um escadote
e o ar um caracol de planetas nas órbitas.


antónio maria lisboa
ossóptico e outros poemas
poesia
assírio & alvim
1995












18 outubro 2018

antónio ramos rosa / este homem que esperou




Este homem que esperou
humilde em sua casa
que o sol lavasse a cara
ao seu desgosto

Este homem que esperou
à sombra de uma árvore
mudar a direcção
ao seu próprio destino

Este homem que esperou
com uma pedra na mão
transformá-la num pão
transformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra



antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985






17 outubro 2018

virgínia woolf / shakespeare




1930
Domingo, 13 de Abril

Li Shakespeare imediatamente após ter acabado de escrever, quando a minha mente está boquiaberta, ao rubro e fogosa. Então é assombroso. Nunca tinha percebido ainda quão surpreendente é o seu alcance, velocidade e capacidade de cunhar palavras, até sentir como me deixa completamente para trás e vence a minha, parecendo começar a par, e depois vejo-o adiantar-se e fazer coisas que não poderia imaginar na minha mais desenfreada agitação e máxima pressão mental. Mesmo as menos conhecidas e piores das suas peças são escritas a uma velocidade que é mais rápida do que a mais rápida de qualquer outra pessoa; e as palavras derramam-se tão depressa que não nos é possível recolhê-las. Evidentemente a flexibilidade da sua mente era tão completa que ele podia polir qualquer sequência de pensamentos; e, ao relaxar, deixar cair uma chuva dessas flores desconsideradas, para quê, então, qualquer outra pessoa tentar escrever? Isto não é “escrever” de todo. De facto, podia dizer que Shakespeare supera completamente a literatura, que soubesse o que queria dizer.



virgínia woolf
diários
trad. de jorge vaz de carvalho
relógio d´água
2018









16 outubro 2018

maria azenha / gaia




Ao longo de eras quiseram torturar-me.
Planearam crucificar-me.
Quando me quiseram matar
doei todas as minhas lágrimas.


Quando me deixaram completamente só, fiz companhia.



maria azenha
xeque-mate
editora urutau
2018









15 outubro 2018

ron padgett / paul eluard




Paul Eluard disse:
«Há outro mundo
mas está dentro deste»
ou algo semelhante.
Eu diria:
«Tudo é suficientemente estranho
tal como é»
ou algo semelhante.
A minha escrita à mão, por exemplo,
e a minha mão a escrever.
Mão, diz olá ao Paul Eluard.



ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018







14 outubro 2018

josé pascoal / a pele dos dias




Morremos duros
E compridos,
Cheios de palavras
Que nunca dissemos.

Morremos duros
E cobertos
Por uma nudez
Educada



josé pascoal
sob este título
editorial minerva
2017







13 outubro 2018

maria f. roldão / percorro-lhe o corpo pequeno




Percorro-lhe o corpo pequeno
verificando as falhas
os excessos
Entro e saio inúmeras vezes
da loja das palavras
em busca de sinónimos
Compro metáforas
a peso de ouro

Fica caro o poema
– ruína do poeta.





maria f. roldão
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018










12 outubro 2018

iosif brodskii / ab ovo




No limite, devia haver uma língua
em que a palavra “ovo” se reduzisse ao O
apenas. O italiano é a que mais se aproxima,
naturalmente, com a sua “uova”. Por isso o Alighieri achava
que o alimento mais saudável era o ovo, comungando
dessa predilecção com sopranos e tenores, cujos torsos
em forma de pêra, em última análise, dão corpo à “ópera”.
O mesmo é válido para os verdadeiros românticos, ou seja,
os poetas alemães, em que praticamente todos os versos
começam com o que comeram ao pequeno almoço,
ou para os igualmente emproados matemáticos,
aninhados em cima da boa poedeira da sua infinidade,
cujos imaculados zeros jamais chocarão.

1996




iosif brodskii
paisagem com inundação
trad. de carlos leite
livros cotovia
2001