22 setembro 2018

antónio reis / poemas quotidianos




49

É na piedade
dizem
que tudo nasce

eu prefiro
o amor

onde ela cabe

e morre


antónio reis
poemas quotidianos
tinta da china
2017









21 setembro 2018

carlos de oliveira / desenho infantil



II

Os camponeses, esses, destinados às sepulturas rasas, aos estratos de mortos sobre mortos, servem-se do pinho, dos adobes (materiais perecíveis), erguem casas na lama, manuseiam utensílios tão rudimentares como a charrua de madeira. Passam sobre a areia e as pegadas somem-se depressa, «mas carregam aos ombros a pedra do meu lar (pensa a criança obscuramente) e a minha lápide futura».



carlos de oliveira
a leve têmpera do vento
antologia poética
quasi
2001










20 setembro 2018

ruy belo / nos finais do verão



Quando alguns anos aí por finais de agosto o sol por momentos como que se vela
e eu me sinto talvez sem saber porquê subitamente triste ou não sei indeciso
posso fazer várias coisas, no entanto quase sempre o que faço
é correr completamente todas as persianas de todas as janelas de todas as divisões
                                                                                                                 da casa
meter-me na cama cobrir-me todo até a cabeça com a roupa
e começar a ouvir por exemplo o requiem de mozart. Talvez quase todo o verão
tenha passado por mim quase sem eu dar verdadeiramente por isso
terei descido meia dúzia de vezes à praia terei tomado ao todo um banho
terei visto distraidamente uma tarde a areia cair-me do punho
levemente fechado por entre os dedos para a palma aberta da outra mão
O sol terá aplicado diariamente a sua demão de luz a dois lados da minha casa
mais amarelado pela manhã na parede voltada a leste
mais amarelo torrado na parede do lado ocidental pouco antes de passar
o testemunho à sombra avassaladora da noite
O lugar exacto do pôr do sol ter-se-á desviado insensivelmente no
sentido norte-sul dou por isso exactamente no fim do mês
ao levantar os olhos da máquina de escrever e procurar em vão o sol prestes a pôr-se
no estreito intervalo de duas casas à beira-mar onde antes o via
e além disso a passagem do tempo será também visível por exemplo
na altura da pilha dos jornais acumulados a um canto do quarto
no progressivo desgaste do enorme sabonete que dia a dia utilizei
para lavar distraidamente as mãos as diversas vezes que as lavei
Alguma coisa passou para sempre passou irremediavelmente para sempre
alguma coisa que não será principalmente isso mas será também isso
alguns rostos pousados no verão de linhas suaves como certos sulcos na areia
sim decerto alguns rostos estes dias insistentemente repetidos
mas afinal desconhecidos ficarão para sempre nas dobras do verão
e mais uma vez na vida eu não saberei que fazer acreditem
no que digo não saberei verdadeiramente que fazer
Noutras alturas do ano quando a timidez se apodera de mim
ou não consigo olhar alguém nos olhos ou tratar de um assunto prático
tomo um whisky telefono a alguém leio certo tempo o jornal
Agora nestes finais de agosto quando o sol por momentos como que hesitou
o que fiz foi correr as persianas rodear-me de uma certa escuridão
e deixar correr a fita onde se encontra gravado o requiem de mozart
Os violinos como que procurarão serrar suavemente as vozes cheias e leves
instrumentos de sopro violinos e vozes dispor-se-ão aqui e ali por estratos
à maneira das nuvens no céu de alguns destes dias passados
pela hora do pôr do sol lá para os lados do poente sobre as águas mansas do mar
Sentirei talvez a mão de cotão da escuridão pesar-me no peito
estendido apenas existente devido ao ritmo lento da respiração
e o vento socorrer-se-á de vez em quando da cumplicidade da música
que abranda que como que poisa para garantir que sim
que está ali exactamente rente à moldura da janela e procura
fazer-se pequeno para ver se passa por algum interstício
e assinalar a sua presença no quarto por uma ligeira ondulação das cortinas
por um hálito na minha pele que seja bastante para me alterar o ritmo da
                                                                                                respiração
Sentir-me-ei levemente inquieto tenho dois ou três problemas a resolver
estarei triste indeciso inquieto terá passado para mim de maneira
irremediável e não sei porquê mais sensível um tempo de vida
voltarei a cassete do outro lado piscarei os olhos no escuro
Tenho a sensação de que me protegem três ou quatro pessoas
de que três ou quatro pessoas contra as quais às vezes me revolto me fazem falta
não descerei à praia não quero estes dias voltar a descer à praia
Talvez em meados de setembro se porventura se não alterar muito
o ritmo da minha respiração eu abra de novo as janelas veja o tempo que faz
dê uns passos pequenos na casa e me encaminhe lentamente na direcção do mar
Então sim então estarei só. Que é feito daqueles rostos de verão
daquelas silhuetas ao pôr-do-sol interpostas por vezes entre a luz e o livro que lia
a que profundidade se encontram agora determinados passos
ainda não há muito indubitavelmente impressos na areia do verão
perguntarei na falta de outras pessoas talvez ao mar esse mar que mora
sempre aqui e não vai para longe com o verão. Ficarei à escuta procurarei
distinguir no marulho do mar qualquer esboço de resposta
olharei os contrastes da luz incidindo na superfície do mar
Sei que é em vão que tudo será decerto em vão e que mais uma vez
assisti sem remédio de braços caídos à implacável destruição do verão
Que é feito do verão que é feito dessa pausada estação
onde eu sem saber cavara os alicerces da minha vida que é feito
dos olhos sérios e dignos dessa criança ameaçada pelo fim do verão?
por um tempo que em breve a roubaria ao ruidoso convívio do verão?
Quando eu era pequeno e pressentia que me iam levar para longe do mar
despedia-me uma a uma das árvores das pedras que não mais voltaria a ver
mesmo que no ano seguinte as voltasse a ver dava uns passos a cambalear
pensava que seria isso doer-me a cabeça que nunca me tinha doído
Mas não era por isso não era por sentir há pouco no pulso
o fim acerado do verão que eu estava inquieto triste
ia jurar que não era por nada disso que não tinha nada a ver com isso
Agora sim agora estarei inquieto e triste por saber mais profundamente
do que uma unha cravada na carne que alguma coisa sem remédio acabou
que certos rostos precisamente esses rostos que amiúde o verão
utilizava para ser leve fazer parte das minhas coisas fazer
talvez parte de mim repousam para sempre amortalhados no verão
estarei triste por ver que mais uma vez terei falhado inapelavelmente na vida
Inútil agora fechar as janelas deitar-me voltar a ouvir o requiem de mozart
inútil mesmo estar certo de que fizesse eu o que fizesse
mesmo que o fizesse no devido tempo tudo seria inútil
Abrirei a janela fincarei o queixo no peitoril da janela
farei uma última tentativa para procurar saber onde é que se esconde
o verão onde é afinal o sítio sossegado do verão
Ficarei sem remédio triste à janela do meu quarto
de olhos perdidos no mar perdidos com o verão



ruy belo
toda a terra
todos os poemas III
assírio & alvim
2004







19 setembro 2018

manuel gusmão / b.




aprende a falar – diz
a rosa: escreve de noite
e que o meu múltiplo sol
te guie inúmeros
os caminhos, põe-te numa sala
com a luz apagada
onde chegue acesa
a de uma outra, e
frágil,
ao papel que para ela
voltas. então, falas
das paixões, da pétala
que cai no interior
do coração
e navega na sombra do
sangue,
de assombro em
assombro.



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990







18 setembro 2018

luís miguel nava / as mãos nos bolsos





As mãos nos bolsos, como se com eles comunicasse o coração, às vezes aparecia por aí.

O nome que lhe tinham posto era, no entanto, demasiado para uma só pessoa. Trazê-lo assim sempre consigo abria-lhe feridas pelo corpo, onde as cortinas se metiam, agitadas pelo vento.

Não serei eu a negar que o raciocínio e a pele se contaminam, costumava-me ele dizer. Ainda hoje a pele ganha terreno ao coração.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002








17 setembro 2018

joaquim manuel magalhães / ancoradouro




Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um jardim com as cantarias
caídas e árvores altas e muros de musgo.
O burel das cortinas antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; termina
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.



joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






16 setembro 2018

bernardo soares / entre a vida teórica e a vida prática há um abismo,




Entre a vida teórica e a vida prática há um abismo, sobre o qual alguns, mais individuais, não sociais são ponte.

Manda quem quer, servo de pensamentos dispersos, anónimos, que por tais não são pensamentos.

Deixemos a acção àqueles que pensam pela cabeça alheia, pois que existem só para agir. Recolhamo-nos ao jogo alado, fútil até, das teorias, desiludidos de qualquer possibilidade de podermos agir sobre os outros, de sermos mais na vida que forasteiros.

Desdenhadores de todos os ideais, sobretudo dos que buscam a felicidade na terra para os outros — pois a felicidade não pode ser ideal senão para nós — vivamos separados, como os outros iniciados, os da alma (para além da inteligência), que nada, também, querem ou esperam da vida. Assim o visionista seguirá a par do adepto, entre as minas do templo de Salomão, e por aquele plaino próximo onde, um tempo, o Mestre esteve sepulto.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
presença
1990







15 setembro 2018

inês lourenço / miramar




Acender um cigarro na praia, proteger
o difícil estertor da pequena chama. Anular
o vento na manga do teu casaco. Reter
preso entre os dedos o princípio breve
dessa efémera combustão.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015












14 setembro 2018

judite canha fernandes / férias é







perceber que quando o sol se tapa o mar escurece

ter tempo

ver as sombras no tecto, a efervescência das palavras,
as árvores a tentar respirar contra o vento, coitadas
fazer festas aos cucos, namoriscar os pássaros,
ter ideias boas.
fazer testes ao vácuo,
observar a consistência da alegria,
escrever palavras ao acaso.
mergulhar.
processar as dores, a estupefacção com a crueldade e a ganância,
perceber apenas o medo, apenas.

observar calada a tua alegria de flor pelas vitórias inacabadas.

ver filmes a meio do dia com uma manta nas pernas
comer porcarias e chocolates
não sentir culpa nenhuma.

andar.

deixar o mundo andar sem olhar para ele
(ele anda sozinho)

olhar para o que não se vê
não ter raiva do inverno nem da chuva,
saber que a utopia anda às elipses como boa tartaruga.
dar beijos à luta para não esquecer o sabor que ela tem,
dançar.
não usar vendas no cérebro ou no coração,
não dizer “sim, mas…”.

perder-se no meio de um livro para encontrar outro
deixar para amanhã o que se pode fazer hoje.

escrever com as mãos geladas nas esplanadas
não ter medo que as esplanadas voem,
ou de lavar o caderno nas lágrimas.

pensar, escrever cartas, não pensar.

perceber que o vento assobia no pescoço antes de entrar nas
nas orelhas,
que se pode chorar de prazer quando se ri,
qual o tamanho do ecrã na casa.

dizer adeus e ficar dentro das pessoas.
falar com quem se gosta sem ver.
dançar com a música em mute.
deitar-se devagarinho.

férias, meu amor, é bom.




judite canha fernandes
o mais dofícil do capitalismo
é encontrar o sítio onde pôr as bombas
editora urutau
2018






13 setembro 2018

mário-henrique leiria / claridade dada pelo tempo




9

quando ferem alguém
é a mim     só a mim que ferem
é na minha carne
que todos os golpes se encontram
não quero
não posso com este constante sangrar
separem-me dos outros
separem a minha carne
da carne de todos
deixem-me o sangue
a correr
ser só o meu sangue
e nada mais


mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








12 setembro 2018

maria gabriela llansol / o raio sobre o lápis



V

a conclusão de que não há abismo, e que a infância não pára de desenvolver-se e
e crescer,
é um novo princípio de realidade, de morte, de velhice:
eu não deixo de viver no mundo interior e exterior das metamorfoses flutuantes;
é já dia, mas a noite que conduz a esperança no pensamento, e sobre si própria,
não acabou.
                Não acabou definitivamente;
                onde estará, protegendo-se da luz, o sapo que brilha?
                Eu tenho a intuição, Aramis, de que os monstros
são as tentativas mais puras do Universo.
“Olha-os, e não os mates.”



maria gabriela llansol
o raio sobre o lápis
livro de artistas
europalia 91
1991







11 setembro 2018

agustina bessa-luís / aforismos




*
Na consciência dessa presença alheia, única e permanente mesmo que seja pelo espaço de um momento breve, está o amor.

*
Ninguém se orgulhe de despertar amor. Ele é um efeito de sombras, de entendimentos com o passado de que nem sequer somos testemunhas.

*
O amor não é uma temperatura, é todo o fundamento duma cultura. É uma forma de impertinência sagrada, um repudiar de todas as crenças que envolvem a destruição desse segredo imenso que é o ser humano.





agustina bessa-luís
aforismos
guimarães editores
1988






10 setembro 2018

daniel faria / estranho é o sono que não te devolve





Estranho é o sono que não te devolve.
Como é estrangeiro o sossego
De quem não espera recado.
Essa sombra como é a alma
De quem já só por dentro se ilumina
E surpreende
E por fora é
Apenas peso de ser tarde. Como é
Amargo não poder guardar-te
Em chão mais próximo do coração.



daniel faria
explicação das árvores e de outros animais
fundação manuel leão
1998