09 setembro 2018

fernando echevarría / domingo




Ficou-lhe a paz. Do tempo
em que, movido o olhar à santidade,
parávamos no campo vendo
correr a água e adubar-se o caule
que abrirá sua roda de sustento
à fadiga do homem, que uma coroa de aves
reconhece no ar, de estar aberto
à cálida saúde da passagem.
Depois da missa, pelo domingo adentro,
crescia essa saudade
fresquíssima de estarmos tão atentos
à tarefa que, sem nós, a tarde
cumpre na terra. E mesmo ao pensamento
que amadurece nas árvores,
tocadas de longe, no estremecimento
que se enreda por nós e em nós se abre.
Ficou-lhe a paz. O doce movimento
que nos inclina para a primeira idade.




fernando echevarría 
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







08 setembro 2018

antónio osório / amo os loucos




Amo os loucos,
crianças tagarelando
que descobrem, instante
a instante, o mundo
e tudo enovelam
à sua translúcida maneira.

Não possuem maldade,
mas ignorado amor
e incapaz poesia.



antónio osório
o lugar do amor
a boca junta
gota de água
1981









07 setembro 2018

ana hatherly / o regresso




I

O termo que eu temo
Em mim estremece.
Não é o que passa
Nem aquilo que esquece
Que o meu ser receia
É antes
Essa dor contínua
Que de si mesma se torna cadeia.
Se alguma dor existe
Que o termo não atinja,
Não existe porém termo algum
Que a própria dor não finja:
Sentes? Mentes.
Sabes? Não vês.
Quando descobres, passaste
Quando interpretas
Esqueces.


II

A senda que eu sigo
É a meta que atinjo.
Partindo, regresso
E regresso avançando.
Temendo é que eu venço.

Chorando, me alegro
E sofrendo, embeleço
Entendendo a ordem
Oculta e evidente:
Ou amo e morro
Ou vivo e não amo.


III

As lágrimas que dos meus olhos caem
São o teu pranto em mim realizado.
As tuas penas em mim se vivificam
E o teu sofrer em mim encontra forma.
O teu silêncio é a minha voz mais funda,
O teu querer, a minha esperança intensa,
De sorte que não existe morte
Tua que a mim me não pertença.
E a solidão que de alma a alma aumenta
O anseio do encontro antigo,
É a inarmonia que vive
Da diferença que a desunião gera.
Reúne-te comigo no meu chamamento,
Reúne-te comigo ao que nos demora,
E levemos connosco o fim desta espera!



ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980









06 setembro 2018

jorge luís borges / poema




ANVERSO

Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
 O sabor das uvas e do mel.


REVERSO

Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.




jorge luís borges
obras completas 1975-1985 vol. III
a cifra (1981)
trad. fernando pinto do amaral
editorial teorema
1998










05 setembro 2018

anna akhmatova / a criação




Acontece deste modo: uma certa languidez;
No ouvido não se calam as pancadas dos relógios;
Ao longe diminui o estrondo do trovão.
E vislumbram-se queixas e gemidos
De aprisionadas vozes que não se reconhecem.
Um certo círculo secreto estreita-se,
Mas nesse abismo de badaladas e murmúrios
Levanta-se um som que tudo venceu.
É tal o silêncio irreparável em seu redor
Que se escuta como no bosque cresce a erva,
Como anda pela terra o mal com um alforge…
Mas as palavras começaram já a ouvir-se
E das rimas leves os tinidos de sinalização,  
É quando eu começo a compreender,
E de modo simples as linhas ditadas
Deitam-se no caderno branco de neve.

5 de Novembro de 1936



anna akhmatova
poemas
trad. joaquim manuel magalhães e
vadim dmitriev
relógio d´água
2003







04 setembro 2018

fiama hasse pais brandão / do mar




Aqueles de um país costeiro, há séculos,
contêm no tórax a grandeza
sonora das marés vivas.
Em simples forma de barco,
as palmas das mãos. Os cabelos são banais
como algas finas. O mar
está em suas vidas de tal modo
que os embebe dos vapores do sal.

Não é fácil amá-los
de um amor igual à
benignidade do mar.




fiama hasse pais brandão
as fábulas (2002)
obra breve
poesia reunida
assírio & alvim
2017






03 setembro 2018

sophia de mello breyner andresen / aquele que partiu




Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.

Ele não ficou para connosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Poupada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
À morte da verdade e à vitória do tempo.

Que ao longe
Na mais longínqua praia
Onde só haja espuma sal e vento
Ele se perca tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento.

E que ninguém repita o seu nome proibido.



sophia de mello breyner andresen
mar novo
obra poética
assírio & alvim
2015









02 setembro 2018

natália correia / marcelo e as tágides





Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso – ó bacanal! –
ao leito húmido das Tágides daninhas

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
jogou-se ao verso o épico? Ilusões!...
Bate-o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluías
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios – dizem – congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola,
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é de galinhola.



natália correia
cancioneiro joco-marcelino
antologia poética
dom quixote
2018







01 setembro 2018

vergílio ferreira / canta-me uma miséria de penas sem razão




Melo, 31 de Agosto de 1948


Canta-me uma miséria de penas sem razão
Com branda névoa de criança brincando na lama
e sois doentes morrendo.
Que a minha presença para mim seja este sonho magoado
sem corpo, sem desejo de que não seja magoado.
Que os meus olhos sejam a folha que o vento fez ave por
                                                                       segundos,
que o coração seja apenas o órgão mercenário para isto
                                                                             tudo,
e um momento estarei de acordo.



vergílio ferreira
diário inédito 1944-1949
bertrand editora
2008






31 agosto 2018

wislawa szymborska / as três palavras mais estranhas




Quando pronuncio aa palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.


wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006











30 agosto 2018

adonis / seis notas do lado do vento




I

                Que a poesia seja uma viagem aos confins do fora ou até ao mais íntimo do dentro, vivi nela, desde o início da minha empresa, um dentro que é no seu todo um fora, um fora indissociável do dentro. Senti porém que esse acto de escrita me exprimia menos do que designava o que eu queria exprimir de mim próprio, e o meu sentimento não variou desde então. A poesia, aos meus olhos, completa o homem, não é em nada a sua imagem. Não tinha nenhuma preocupação em criar uma harmonia entre o mundo e eu, mas tinha sempre o olhar fixo no abismo que se situa entre nós. Não escrevi portanto poesia no desígnio de encher esse abismo, mas como errância dentro dele e como exploração. Embora seja solicitado pela busca do sentido, ou de um sentido, adivinho que a minha identidade não se estabelece no que é estável, mas no que se move. Sinto que estou do lado do vento e da vaga.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016







29 agosto 2018

eduardo moga / sempre o soubemos: somos erro, erro




[…]

Sempre o soubemos: somos erro, erro
que caminha e constrói pirâmides, erro
que julga e apedreja e se solidifica
e reza a Deus e quebra as ancas do vinho.
E antes de perceber ao nosso redor
a lentidão com que trabalham os fósseis, muito antes
de saber que só há um mundo – espera ser –
o que o vento que move os plátanos também
move as nossas correias e que um mesmo escoamento
luminoso – detém-te – arrasta a gangrena
e o silício e o pânico e as folhas do ácer
para um mar de silêncio onde tudo se anula
e dolorosamente recomeça, muito antes
de nos darmos conta da nossa radical
penumbra, construímos a casa dos sabres
e caímos, cobertos de língua, num nadir
de destruição, de edemas e de recifes, de gruas,
de enxertos e suor, de seiva acorrentada,
com a única ambição de iludir o crónico
esqueleto, mas indo até ele, vendo-o erguer-se,
sentindo que se incarna no voo exausto
do condor e da farinha, na polpa indómita
dos assassinados, na hérnia do bosque
que já não vê a luz, que só sente o hálito
dos astros mais negros, lentamente invocados.



eduardo moga
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







28 agosto 2018

luís garcia montero / espelhos




                   Para Luis Muñoz



Não importa se dormiste pouco ou muito,
os espelhos de hotel nunca perdoam
e são como animais de montanha
que não aceitam o convívio dos homens.

A luz dos espelhos familiares
compadece-se de nós, porém,
ajuda-nos a fingir, e por afecto
ou por hábito consegue perdoar-nos.

Eu sei que os espelhos são a água
estagnada de um rio que se move.
E vi como o sol que se reverbera
pode ocultar o lodo das sombras.

Mas quem espreita o fundo dos teus olhos
vê as gretas do tempo, as aranhas
de um passado que surge inesperado
em manhã de hotel e nos ofende.

Para quê responder. Feche os olhos,
porque não há outra coisas que envelheça
pior do que o teu olhar.



luis garcia montero
quartos separados (1994)
as lições da intimidade
antologia
trad. de nuno júdice
abysmo
2018