06 agosto 2018

mário-henrique leiria / poema das quatro horas




Olha, lá vem o barco
que traz sonhos e sacas de feijão…

Porque há ainda tanto frio,
agora que tudo adormeceu?
Lá em cima o violinista
toca aquela sinfonia
que nós ouvimos na tarde de 6.ª feira
e a sentinela que guarda
os Azuis-Mistério
passeia à espera da hora de almoço.
Tudo se vende e tudo se compra
ali na loja do Frio e
até há quem goste de comprar
bailados de homens que passeiam…
desde que a noite é baça,
tanto faz que a dancem
com movimentos heráldicos ou
com curvas sensitivas…
O imprescindível é sempre o imprescindível
e a dança lá está,
seja ou não verdade…
A sentinela
dança os bailados
do SETE
e tudo olha o fundo
que fica para lá dos homens…

………………………………………………………………….

Às quatro horas
parou o movimento eterno…



mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018








05 agosto 2018

bernardo soares / como diógenes a alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol.



Como Diógenes a Alexandre, só pedi à vida que me não tirasse o sol. Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los. O que achei mais valeria tê-lo realmente achado. O sonho (...)

Hesito em tudo, muitas vezes sem saber porquê. Que de vezes busco uma linha recta que me é própria, concebendo-a mentalmente como a linha recta ideal, a distância menos curta entre dois pontos. Nunca tive a arte de estar vivo activamente. Errei sempre os gestos que ninguém erra; o que os outros nasceram para fazer, esforcei-me sempre para não deixar de fazer. Desejo sempre conseguir o que os outros conseguiram quase sem o desejar. Entre mim e a vida houve sempre vidros foscos: não soube deles pela vista, nem pelo tacto; nem a vivi essa vida ou esse plano, fui o devaneio do que quis ser, o meu sonho começou na minha vontade, o meu propósito foi sempre a primeira ficção do que nunca fui.

Nunca soube se era de mais a minha sensibilidade para a minha inteligência ou a minha inteligência para a minha sensibilidade. Tardei sempre, não sei a qual, talvez a ambas, a uma a outra, ou foi a terceira que tardou.

s.d.

fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






04 agosto 2018

al berto / salsugem




6
morriam longas cobras de água verde a estibordo dos lábios
e o nácar dos dentes fendia a geada
navegávamos sem bússola um dentro do outro
com o peso das tristes asas do albatroz no coração

passávamos os dias espremendo polposos frutos
beijos nos músculos tatuados de pin-ups dolorosas virgens
araras panteras brancas mapas geometrias misteriosas
riscavam-se os punhos com silêncios inexplicáveis
não me lembro se alguém gritou e morreu
percorríamos o areal
onde esquecemos os desejos dados-à-costa

a pouco e pouco habituei-me à solidão deste quadrante
sem destino
o fogo devorou as esperanças duma possível felicidade
espero com as aves uma mudança brusca de tempo
ou o regresso às simples profecias

mas ainda estou vivo… acordado
para rasgar o calor tremendo das cinzas
deixo a pouca vida que me resta
emaranhar-se nas quentes lágrimas das ilhas


al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997







03 agosto 2018

herberto helder / poemacto




II
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

— Era uma casa — como direi? — absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no meu esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
— Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta — como
direi? — um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

— Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
— Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996






02 agosto 2018

sylvia plath / ariel




Estase na escuridão.
Depois a bátega de um azul
Imaterial sem fragas nem distância.

Leoa de Deus,
Como fomos sendo uma só,
Eixo de calcanhares e joelhos! – O sulco

Afasta e passa, irmão do
Aro castanho
Do pescoço que não consigo agarrar.

Olhos como os de negro
Bagas lançando escuros
Ganchos –

Bocados de sangue adocicado,
Sombras.
Outra coisa

Me arrasta pêlos ares –
Quadris, cabelo;
Achas dos meus tacões.

Godiva
Branca, não me cai a pele –
Mãos mortas, rigidez de morta.

E agora, eu
Espuma de trigo, um brilho de mares.
O grito de criança

Funde-se na parede.
E eu
Sou a seta.

O relento que voa
Suicida, à uma, em força
Em direcção ao Olho

Vermelho, o caldeiro da manhã.


sylvia plath
ariel
trad. maria fernanda borges
relógio d´ água
1996







01 agosto 2018

nuno júdice / proximidade




A diferença entre o alto e o baixo, o céu
e a terra, a superfície e o fundo, o igual
e o diverso, é imperceptível para quem
não sabe o que está para além de si próprio.
O mundo, que muda a cada instante, não é
mais do que um lago se o coração não se apercebe
de vertas variações, do brilho que
transparece de uns olhos quando o som das
palavras neles se reflecte, ou desse instante
em que, sem que se diga alguma coisa, o
contacto da pele une o princípio e o fim
dos seres. Falo do amor: a melancolia não
tem nada a ver com este sentimento que
nasce das contradições, nem a percepção
da vida pode ignorar a emoção com que
se assiste ao florescer do desejo na terra
estéril da idade. Sim: a emoção de um contacto
rejeita as condições lógicas da razão e o
equilíbrio que sustenta a resignação dos
infelizes. Mas também no dia cinzento há,
por vezes, um fulgor breve e a expectativa
da luz permite que se atravesse a noite
sem ceder à sua treva, adivinhando apenas
o primeiro instante luminoso, e o acordar
do teu rosto na claridade tingida da névoa.




nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997







31 julho 2018

per aage brandt / eu sou apenas uma sombra




*
eu sou apenas uma sombra de mim próprio,
ela atravessa sem resistência
a sala, cai sobre móveis
e papéis, instrumentos musicais,
restos de flores, um casaco vazio nu-
ma cadeira, dentro do qual uiva um telefone
como um lobo, seja para quem for
                               (homo homini lupus)

*



per aage brandt
livro da noite
trad. maria joão reynaud
poetas em mateus
quetzal
2004






30 julho 2018

tai fu ku / numa azáfama constante




Os negócios não os deixam descansar
De noite fazem contas de dia galopam
A sua vida é uma azáfama constante
Desconhecem que sobre as suas casas o céu é azul


tai fu ku
(china c. 1198)
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
trad. jorge de sousa braga
assírio & alvim
2001











29 julho 2018

valerio magrelli / e se estas voltas de fechadura



*

E se estas voltas de fechadura
não acabassem nunca?
E se tivesse de ficar toda a vida
aqui fora, a dar voltas à chave?
Faço a cópia das minhas chaves
faço a cópia das minhas cópias
o que gasto para as multiplicar
serve para tirar a cada uma o seu valor
o meu Valerio. No perfil dos versos
reproduzo o recorte
dentado das chaves.

*



valerio magrelli
a espinha do p
trad. rosa alice branco
poetas em mateus
quetzal
1993






28 julho 2018

ana hatherly / o vermelho por dentro




Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por
dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é
negro. É de noite. O céu está negro e sobre a
água negra tudo é vermelho por dentro.

Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes
A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro
E nos corpos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos
e



ana hatherly
rosa do mundo
2001 poemas para o futuro
assírio & alvim
2001







27 julho 2018

rui diniz / a situação literária em 1968




Ainda nos séculos se pergunta uma respiração.
O poema é a consciência irreversível que gira
cruelmente na tarde.
Consumimos tabaco na penumbra. Aqui estou
rindo convulsivamente o tom pestilento da
opressão, meditando uma bebida e nunca
a imaginar a terra.
No calor incidem as moscas que lembram
lentamente um destino, pétalas que destilam
a necessidade de publicar.

Quentes mãos que temi em dias de olhares.
Compreendendo assim os ares, os espaços…

Põe poema a tua metafísica azulada
nas fendas dos lábios de aldeia.
A literatura do sul é o sono profundo das memórias.
Tudo ali nos entontece confusamente.
As erínias zumbem com o vento nas narinas.
O mar gera as crianças estagnadas. É talvez
Tudo uma intensa visão. O ócio do cansaço…

Ainda nas casas as paredes se idolam.
Os poetas param à beira dos poços, passam
Um dedo pela cal, pensam
em publicar. Vão para as searas,
abraçam friamente as avós, conversam
debaixo do crepitar das uvas, preferem
dizer que as braseiras não existem.

É-lhes a noite propícia às surtidas, à visita.
E ao convencimento da cultura, à virgem idade dos
livros.

Isto leva-nos à contemplação dos demónios, aos
obscuros encandeamentos. Assim as lâmpadas
condenam por todo o sempre a palavra que
foi escrita.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






26 julho 2018

antónio franco alexandre / corto viaggio sentimentale, capriccio italiano




26

não me importa o amor que tenhas
e o amor não se dá nem tem nada para dar
as tuas mãos nas minhas são o tempo que volta
a mover sombras de nanquim, e nos teus lábios
é o sabor a tinta que me atrai.
Ebbro d’ inchiostro é mais bonito, quando
ao calor de agosto as bocas se desatam
e as línguas mordem a brancura do linho.



antónio franco alexandre
quatro caprichos
assírio & alvim
1999