Contemplar
na sua própria trajectória o movimento do corpo que se destrói e do espírito
que envelhece
Conquistar
à intranquilidade, o sentido do eterno, à amargura, o poder da revolta, à
solidão, o direito ao diálogo
Cada deus
definitivamente sepultado é um homem livre sobre a terra
Eu que
circulo no labirinto e dirijo a fatalidade do caminho, espero o abrir da porta
para além da qual alguma coisa se perca desta conjunção que se transporta
comigo
Através o
tempo, através a carne, sem sequer supor do reverso do realizável a
transfiguração que tudo redima
Eu que,
nesta sala hoje imensa, idêntica e sem exaltação possível, me detenho e esqueço
o haver memória, furto-me à provável substituição do homem pela sua semelhança
Cintila por
vezes nestes quartos uma persistência do passado. A história possível da
humanidade também tem a sua corte própria, uma virtualidade imperiosa, quase
essencial, como se o irrealizado fosse a verdadeira alma do mundo
Todo o
possível se eterniza, vive sempre mais que o realizado, prologa-o, ilimita-o,
dá dele a pálida imagem duma realidade profunda, desafiadora
Decerto a
mais pequena ambição humana é sempre maior que o mais alto dos homens
Decerto
a sua transformação em acto é inferior ao ser possível de que provém – e tudo o
que poderia ter sido fica a pesar sobre o silêncio, temporariamente se organiza
também em passado, presente e futuro, ganha pelo menos direito à memória
E como o
peso duma sentença, a memória indestrutível sustenta as nossas vidas e as
nossas cidades
A memória
do que existe e do que faz e prolonga esse existir, e a memória do que poderia
existir e que ocultamente cresce e se renova, longe da teia de actos em que nos
debatemos
Escorrendo
como humidade, a persistência da recordação corrompe o nosso poder, prolonga
nele a tensão constante do realizado e do irrealizado, do real e do possível,
substitui-se à imaginação e à liberdade
Sucessivamente
se irão abrindo as portas, num percurso infindável, numa pálida sucessão de
pequenos actos e adornos mentais, enquanto o labirinto se continua, se contorce
sobre si mesmo, sem regresso possível ou detenção, sem fórmulas ou sagrações,
nu e deserto, alheio e hostil, frio, ante o pavor que se inscreve no olhar mais
subtil e delicado, na alma mais entregue à interrogação do seu fim
Ó
natureza incriada e geradora de afrontas, de homens, mãe absoluta de todos os
nossos gestos e fantasmas, de que parcela mais inútil do teu ventre se gerou
esta minha carne, estes meus remorsos e ousadias
Que inquietação
me criou, se tudo era sossego e silêncio, medida e equilíbrio, repouso e
eternidade
Em cada
gesto se insere o tempo, quando tudo é imóvel e o próprio movimento uma
tendência para o repouso
Da face
plácida do mistério me arrancaram e devolveram à desordem, quando em ti tudo
reclama a perenidade desse mistério – de ti, incriação, assim partimos,
contendo em nós, ocultamente, o apelo que nos marcaste e que de novo nos
conduzirá ao silêncio e à totalidade
Preencho
o caminhar destes passos com o som crescente desse apelo, dessa voz
irresistível, desse chamamento atordoador, desse desejo de regresso, quando não
se regressa nunca e apenas se acelera a vertigem em que nos possui a certeza
dessa aglutinação final, dessa ausência para sempre, como quem entra num
nevoeiro sem fim, e sucessivamente perde o olhar, o sentir, a consciência
Hoje,
sobre a terra rolando pelo tempo, dentro deste labirinto cada vez mais
estreito, onde as paredes mais se comprimem e o ar se rarefaz, coalhado de
ameaças, de sinais indecifráveis, reflexos de povos e de memórias, ecos de
acções e de sonhos, ruir de paredes que outras paredes cercam, gemidos de
naufrágios e tempestades, girar de planetas
Uma voz
abafada, longínqua, do peito do homem se levanta, segura, lenta, uma voz que
não se esquece nunca, vibrátil, ardente, correndo pelo íntimo da terra como um fogo
secular, um murmúrio ameaçador, humano, implacável
ernesto
sampaio
a procura do
silêncio
hiena editora
1986